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Alencar riu, levemente afogueado, com um brilho de genebra no olho cavo. Ao lado, grave, o ancião de barbas calçava as suas luvas pretas.

- Pois eu é o contrario! exclamava o poeta. Estou precisado d'um banho de pantheismo!

A bella natureza! O prado! O bosque!... De modo que talvez me mimoseie com Cintra, para a semana. Estão lá os Cohens, alugaram uma casita muito bonita, logo adiante do Victor...

Os Cohens! Carlos comprehendeu então a fuga do Ega e a «sua saudade do verde.»

- Ouve lá, dizia-lhe o poeta baixo, e puxando-o pela manga, para o lado. Tu não conheces este meu amigo? Pois foi muito de teu pai, fizemos muita troça juntos... Não era nenhum personagem, era apenas um alquilador de cavallos... Mas tu sabes, cá em Portugal, sobretudo n'esses tempos, havia muita bonhomia, o fidalgo dava-se com o arrieiro... Mas, que diabo, tu deves conhecel-o! É o tio do Damaso!

Carlos não se recordava.

- O Guimarães, o que está em Paris!

- Ah, o communista!

- Sim, muito republicano, homem de idéas humanitarias, amigo do Gambetta, escreve no Rappel... Homem interessante!... Veio ahi por causa d'umas terras que herdou do irmão, d'esse outro tio do Damaso que morreu ha mezes... E demora-se, creio eu... Pois jantamos hoje juntos, beberam-se uns liquidos, e até estivemos a fallar de teu pai... Queres tu que eu t'o apresente?

Carlos hesitou. Seria melhor n'outra occasião mais intima, quando podessem fumar um charuto tranquillo, e conversar do passado...

- Valeu! Has de gostar d'elle. Conhece muito Victor Hugo, detesta a padraria... Espírito largo, espirito muito largo!

O poeta sacudiu ardentemente as duas mãos de Carlos. O snr. Guimarães ergueu de leve o seu chapéo, carregado de crepe.

Todo o caminho, até ao Ramalhete, Carlos foi pensando em seu pai e n'esse passado, assim rememorado e estranhamente resurgido pela presença d'aquelle patriarcha, antigo alquilador, que fizera com elle tantas troças! E isto trazia conjuntamente outra idéa, que n'esses ultimos dias já o atravessára, pertinaz e torturante, dando-lhe, no meio da sua radiante felicidade, um sombrio arripio de dôr... Carlos pensava no avô.

Estava agora decidido que Maria Eduarda e elle partiriam para Italia, nos fins de outubro. Castro Gomes, na sua ultima carta do Brazil, sêcca e pretenciosa, fallava «em apparecer por Lisboa, com as elegancias do frio, lá para meado de novembro»; e era necessario antes d'isso que estivessem já longe, entre as verduras d'Isola Bella, escondidos no seu amor e separados por elle do mundo como pelos muros d'um claustro. Tudo isto era facil, considerado quasi legitimo pelo seu coração, e enchia a sua vida d'esplendor...

Somente havia n'isto um espinho - o avô!

Sim, o avô! Elle partia com Maria, elle entrava na ventura absoluta; mas ia destruir de uma vez e para sempre a alegria d'Affonso, e a nobre paz que lhe tornava tão bella a velhice. Homem de outras eras, austero e puro, como uma d'essas fortes almas que nunca desfalleceram - o avô, n'esta franca, viril, rasgada solução d'um amor indominavel, só veria libertinagem! Para elle nada significava o esponsal natural das almas, acima e fóra das ficções civis; e nunca comprehenderia essa subtil ideologia sentimental, com que elles, como todos os transviados, procuravam azular o seu erro. Para Affonso haveria apenas um homem que leva a mulher d'outro, leva a filha d'outro, dispersa uma família, apaga um lar, e se atola para sempre na concubinagem: todas as subtilezas da paixão, por mais finas, por mais fortes, quebrar-se-hiam, como bolas de sabão, contra as tres ou quatro idéas

fundamentaes de Dever, de Justiça, de Sociedade, de Familia, duras como blocos de marmore, sobre que assentára a sua vida quasi durante um seculo... E seria para elle como o horror d'uma fatalidade! Já a mulher de seu filho fugira com um homem, deixando atraz de si um cadaver; seu neto agora fugia tambem, arrebatando a familia d'outro: é a historia da sua casa tornava-se assim uma repetição d'adulterios, de fugas, de dispersões, sob o bruto aguilhão da carne!... Depois as esperanças que Affonso fundára n'elle -

consideral-as-hia tombadas, mortas no lodo! Elle passava a ser para sempre, na imaginação angustiada do avô, um foragido, um inutilisado, tendo partido todas as raízes que o prendiam ao seu sólo, tendo abdicado toda a acção que o elevaria no seu paiz, vivendo por hoteis de refugio, fallando linguas estranhas, entre uma familia equivoca crescida em torno d'elle como as plantas de uma ruina... Sombrio tormento, implacavel e sempre presente, que consumiria os derradeiros anhos do pobre avô!... Mas, que podia elle fazer? Já o dissera ao Ega. A vida é assim! Elle não tinha o heroismo nem a santidade que tornam facil o sacrificio... E depois os dissabores do avô, de que provinham? De preconceitos. E a sua felicidade, justo Deus, tinha direitos mais largos, fundados na natureza!...

Chegára ao fim do Aterro. O rio silencioso fundia-se na escuridão. Por alli entraria em breve do Brazil, o outro - que nas suas cartas se esquecia de mandar um beijo a sua filha!

Ah, se elle não voltasse! Uma onda providencial podia leval-o... Tudo se tornaria tão facil, perfeito e limpido! De que servia na vida esse resequido? Era como um saco vazio que cahisse ao mar! Ah, se elle morresse!... E esquecia-se, enlevado n'uma visão em que a imagem de Maria o chamava, o esperava, livre, serena, sorrindo e coberta de luto...

No seu quarto, Baptista, vendo-o atirar-se para uma poltrona com um suspiro de fadiga, de desconsolação, - disse, depois de tossir risonhamente, e dando mais luz ao candieiro:

- Isto agora, sem o snr. Ega, parece um bocadinho mais só...

- Está só, está triste, murmurou Carlos. É necessario sacudirmo-nos... Eu já te disse que talvez fossemos viajar este inverno...

O menino não lhe tinha dito nada.

- Pois talvez vamos a Italia... Appetece-te voltar a Italia?

Baptista reflectiu.

- Eu, da outra vez não vi o Papa... E antes de morrer não se me dava de vêr o Papa...

- Pois sim, ha de se arranjar isso, has de vêr o Papa.

Baptista, depois d'um silencio, perguntou, lançando um olhar ao espelho:

- Para vêr o Papa vai-se de casaca, creio eu?

- Sim, recommendo-te a casaca... O que tu devias ter, para esses casos, era um habito de Christo... Hei de vêr se te arranjo um habito de Christo.

Baptista ficou um instante assombrado. Depois fez-se escarlate, d'emoção:

- Muito agradecido a v. exc.ª Ha por ahi gente que o tem, ainda talvez com menos merecimentos que eu... Dizem que até há barbeiros...

- Tens razão, replicou Carlos muito sério. Era uma vergonha. O que hei de vêr se te arranjo com effeito é a commenda da Conceição.

Todas as manhãs, agora, Carlos percorria o poeirento caminho dos Olivaes. Para poupar aos seus cavallos a soalheira ia na tipoia do Mulato, o batedor favorito do Ega - que recolhia a parelha na velha cavalhariça da Toca, e, até á hora em que Carlos voltava ao Ramalhete, vadiava pelas tabernas.

Ordinariamente ao meio dia, ao acabar de almoçar, Maria Eduarda, ouvindo rodar o trem na estrada silenciosa, vinha esperar Carlos á porta da casa, no topo dos degraus ornados de vasos e resguardados por um fresco toldo de fazenda côr de rosa. Na quinta usava sempre vestidos claros; ás vezes trazia, á antiga moda hespanhola, uma flôr entre os cabellos; o forte e fresco ar do campo avivava com um brilho mais quente o mate eburneo do seu rosto; - e assim, simples e radiante, entre sol e verdura, ella deslumbrava Carlos cada dia com um encanto inesperado e maior. Cerrando o portão d'entrada, que rangia nos gonzos, Carlos sentia-se logo envolvido n'um «extraordinario conforto moral», como elle dizia, em que todo o seu sêr se movia mais facilmente, fluidamente, n'uma permanente impressão de harmonia e doçura... Mas o seu primeiro beijo era para Rosa, que corria pela rua de acacias ao seu encontro, com uma onda de cabello negro a bater-lhe os hombros, e Niniche ao lado, pulando e ladrando de alegria. Elle erguia Rosa ao collo. Maria de longe sorria-lhes, sob o toldo côr de rosa. Em redor tudo era luminoso, familiar e cheio de paz.

A casa dentro resplandecia com um arranjo mais delicado. Já se podia usar o salão nobre, que perdera o seu ar rigido de museu, exhalando a tristeza d'um luxo morto: as flôres que Maria punha nos vasos, um jornal esquecido, as lãs de um bordado, o simples roçar dos seus frescos vestidos, tinham communicado já um subtil calor de vida e de conchego aos mais impertigados contadores do tempo de Carlos V, revestidos de ferro brunido: - e era alli que elles ficavam conversando emquanto não chegava a hora das lições de Rosa.

A essa hora apparecia miss Sarah, séria e recolhida - sempre de preto, com uma ferradura de prata em broche sobre o collarinho direito de homem. Recuperára as suas côres fortes de boneca, e as pestanas baixas tinham uma timidez mais virginal sob o liso dos bandós puritanos. Gordinha, com o peito de pomba farta estalando dentro do corpete severo, mostrava-se toda contente da vida calma e lenta de aldêa. Mas aquellas terras trigueiras d'olivedo não lhe pareciam campo: «é muito sêcco, é muito duro,» dizia ella, com uma indefinida saudade dos verdes molhados da sua Inglaterra, e dos céos de nevoa, cinzentos e vagos.

Davam duas horas; e começavam logo nos quartos de cima as longas lições de Rosa.

Carlos e Maria iam então refugiar-se n'uma intimidade mais livre, no kiosque japonez, que uma phantasia de Craft, o seu amor do Japão, construira ao pé da rua d'acacias, aproveitando a sombra e o retiro bucolico de dois velhos castanheiros. Maria affeiçoara-se áquelle recanto, chamava-lhe o seu pensadoiro. Era todo de madeira, com uma só janellinha redonda, e um telhado agudo á japoneza, onde roçavam os ramos - tão leve que através d'elle nos momentos de silencio se sentiam piar as aves. Craft forrára-o todo de esteiras finas da India; uma mesa de xarão, algumas faianças do Japão, ornavam-no sobriamente; o tecto não se via, occulto por uma colcha de sêda amarella, suspensa pelos quatro cantos, em laços, como o rico docel de uma tenda; - e todo o ligeiro kiosque parceia ter sido armado só com o fim d'abrigar um divan baixo e fôfo, d'uma languidez de serralho, profundo para todos os sonhos, amplo para todas as preguiças...

Elles entravam, Carlos com algum livro que escolhera na presença de miss Sarah, Maria Eduarda com um bordado ou uma costura. Mas bordado e livro cahiam logo no chão

- e os seus labios, os seus braços uniam-se arrebatadamente. Ella escorregava sobre o divan: Carlos ajoelhava n'uma almofada, tremulo, impaciente depois da forçada reserva diante de Rosa e diante de Sarah - e alli ficava, abraçado á sua cintura, balbuciando mil coisas pueris e ardentes, por entre longos beijos que os deixavam frouxos, com os olhos cerrados, n'uma doçura de desmaio. Ella queria saber o que elle tinha feito durante a longa, longa noite de separação. E Carlos nada tinha a contar senão que pensára n'ella, que sonhára com ella...

Depois era um silencio: os pardaes piaram, as pombas arrulhavam por cima do leve telhado

: e Niniche, que os acompanhava sempre, seguia os seus murmurios, os seus silencios, enroscada a um canto, com um olho negro, reluzindo desconfiadamente por entre as repas prateadas.

Fóra, por aquelles dias de calma, sem aragem, a quinta sêcca, d'um verde empoeirado, dormia com as folhagens immoveis, sob o peso do sol. Da casa branca, através das persianas fechadas, vinha apenas o som amodorrado das escalas que Rosa fazia no piano. E

no kiosque havia tambem um silencio satisfeito e pleno - sómente quebrado por algum dôce suspiro de lassidão que sahia do divan, d'entre as almofadas de sêda, ou algum beijo mais longo e d'um remate mais profundo... Era Niniche que os tirava d'aquelle suave entorpecimento, farta de estar alli quieta, encerrada entre as madeiras quentes, n'um ar molle já repassado d'esse aroma indefinido em que havia jasmim.

Lenta, e passando as mãos no rosto Maria erguia-se - mas para cahir logo aos pés de Carlos, no seu reconhecimento infinito... Meu Deus, o que lhe custava então esse momento de separação! Para que havia de ser assim? Parecia tão pouco natural, esposos como eram, que ella ficasse alli toda a noite, sósinha, com o seu desejo d'elle, e elle fosse, sem as suas carícias, dormir solitariamente ao Ramalhete!... E ainda se demoravam muito tempo, n'uma mudez d'extasi, em que os olhos humidos, trespassando-se, continuavam o beijo insaciado que morrera nos seus labios cançados. Era Niniche que os fazia sahir por fim trotando impacientemente da porta para o divan, rosnando, ameaçando ladrar.

Muitas vezes ao recolherem Maria tinha uma inquietação. Que pensaria miss Sarah d'esta sésta assim enclausurada, sem um rumor,

com a janella do pavilhão cerrada? Melanie, desde pequena ao serviço de Maria, era uma confidente: o bom Domingos, um imbecil, não contava: mas miss Sarah?... Maria confessava sorrindo que se sentia um pouco humilhada, ao encontrar depois á mesa os candidos olhos da ingleza sob os seus bandós virginaes... Está claro! se a boa miss tivesse a ousadia de resmungar ou franzir de leve a testa, recebia logo seccamente a sua passagem no Royal Mail para Southampton! Rosa não a lamentaria, Rosa não lhe tinha affeição. Mas, emfim, era tão séria, admirava tanto a senhora! Ella não gostava de perder a admiração d'uma rapariga tão séria. E assim decidiram despedir miss Sarah, régiamente paga, e substituil-a, mais tarde, em Italia, por uma governante allemã, para quem elles fossem como casados, «Monsieur et Madame...»

Mas pouco a pouco o desejo d'uma felicidade mais intima, mais completa, foi crescendo n'elles. Não lhes bastava já essa curta manhã no divan com os passaros cantando por cima, a quinta cheia de sol, tudo acordado em redor: appeteciam o longo contentamento d'uma longa noite, quando os seus braços se podessem enlaçar sem encontrar o estofo dos vestidos, e tudo dormisse em torno, os campos, a gente e a luz... De resto era bem facil! A sala de tapeçarias, communicando com a alcova de Maria, abriu sobre o jardim por uma porta envidraçada; a governante, os criados, subiam ás dez horas para os seus quartos no andar alto; a casa adormecia profundamente; Carlos tinha uma chave do portão; e o unico cão, Niniche, era o confidente fiel dos seus beijos...

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