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Os olhos de Carlos resplandeceram.

- São as nossas!

Maria Eduarda fez-se muito vermelha; e baixou o rosto a escolher um morango, depois a escolher uma rosa.

- Quer uma gota de champagne? exclamou Carlos. Com um pouco de gelo? Nós temos gelo, temos tudo! Não nos falta nada, nem a benção de Deus... Uma gotinha de champagne, vá!

Ella aceitou: beberam pelo mesmo copo; outra vez os seus labios se encontraram, apaixonadamente.

Carlos accendeu uma cigarrette, continuaram a percorrer a casa. A cozinha agradou-lhe muito, arranjada á ingleza, toda em azulejos. No corredor Maria Eduarda demorou-se diante de uma panoplia de tourada, com uma cabeça negra de touro, espadas e garrochas, mantos de sêda vermelha, conservando nas suas pregas uma graça ligeira, e ao lado o cartaz amarello de la corrida, com o nome de Lagartijo. Isto encantou-a como um quente lampejo de festa e de sol peninsular...

Mas depois o quarto que devia ser o seu, quando Carlos lh'o foi mostrar, desagradou-lhe com o seu luxo estridente e sensual. Era uma alcova, recebendo a claridade d'uma sala forrada de tapeçarias, onde desmaiavam na trama de lá os amores de Venus e Marte: da porta de communicação, arredondada em arco de capella, pendia uma pesada lampada da Renascença, de ferro forjado: e, áquella hora, batida por uma larga facha de sol, a alcova resplandecia como o interior de um tabernaculo profanado, convertido em retiro lascivo de serralho... Era toda forrada, paredes e tectos, de um brocado amarello, côr de botão d'ouro; um tapete de velludo do mesmo tom rico fazia um pavimento d'ouro vivo sobre que poderiam correr nús os pés ardentes d'uma deusa amorosa - e o leito de docel, alçado sobre um estrado, coberto com uma colcha de setim amarello bordada a flôres d'ouro, envolto em solemnes cortinas tambem amarellas de velho brocatel, - enchia a alcova, esplendido e severo, e como erguido para as voluptuosidades grandiosas de uma paixão tragica do tempo de Lucrecia ou de Romeu. E era alli que o bom Craft, com um lenço de sêda da India amarrado na cabeça, resonava as suas sete horas, pacata e solitariamente.

Mas Maria Eduarda não gostou d'estes amarellos excessivos. Depois impressionou-se, ao reparar n'um painel antigo, defumado, resultando em negro do fundo de todo aquelle ouro - onde apenas se distinguia uma cabeça degolada, livida, gelada no seu sangue, dentro d'um prato de cobre. E para maior excentricidade, a um canto, de cima de uma columna de carvalho, uma enorme coruja empalhada fixava no leito d'amor, com um ar de meditação sinistra, os seus dois olhos redondos e agourentos... Maria Eduarda achava impossível ter alli sonhos suaves.

Carlos agarrou logo na columna e no mocho, atirou-os para um canto do corredor; e propoz-lhe mudar aquelles brocados, forrar a alcova de um setim côr de rosa e risonho.

- Não, venho-me a acostumar a todos esses duros... Sómente aquelle quadro, com a cabeça, e com o sangue... Jesus, que horror!

- Reparando bem, disse Carlos, creio que é o nosso velho amigo S. João Baptista.

Para desfazer essa impressão desconsolada levou-a ao salão nobre, onde Craft concentrára as suas preciosidades. Maria Eduarda, porém, ainda descontente, achou-lhe um ar atulhado e frio de museu.

- É para vêr de pé, e de passagem... Não se póde ficar aqui sentado, a conversar.

- Mas esta é materia-prima! exclamou Carlos. Com isto depois faz-se uma sala adoravel... Para que serve o nosso genio decorativo?... Olhe o armario, veja que centro!

Que belleza!

Enchendo quasi a parede do fundo, o famoso armario, o «movel divino» do Craft, obra de talha do tempo da Liga Hanseatica, luxuoso e sombrio, tinha uma magestade architectural: na base quatro guerreiros, armados como Marte, flanqueavam as portas, mostrando cada uma em baixo-relevo o assalto de uma cidade ou as tendas de um acampamento; a peça superior era guardada aos quatro cantos pelos quatro evangelistas, João, Marcos, Lucas e Matheus, imagens rigidas, envolvidas n'essas roupagens violentas que um vento de prophecia parece agitar: depois na cornija erguia-se um trophéo agricola com mólhos d'espigas, fouces, cachos d'uvas e rabiças d'arados; e, á sombra d'estas coisas de labor e fartura, dois Faunos, recostados em symetria, indifferentes aos heroes e aos santos, tocavam n'um desafio bucolico a frauta de quatro tubos.

- Então, hein? dizia Carlos. Que movel! É todo um poema da Renascença, Faunos e Apostolos, guerras e georgicas... Que se póde metter dentro d'este armario? Eu se tivesse cartas suas era aqui que as depositava, como n'um altar-mór.

Ella não respondeu, sorrindo, caminhando devagar entre essas coisas do passado, d'uma belleza fria, e exhalando a indefinida tristeza de um luxo morto: finos moveis da Renascença italiana, exilados dos seus palacios de marmore, com embutidos de Cornalina e agatha que punham um brilho suave de joia sobre a negrura dos ebanos ou setim das madeiras côr de rosa; cofres nupciaes, longos como bahús, onde se guardavam os presentes dos Papas e dos Principes, pintados a purpura e ouro, com graças de miniatura; contadores hespanhoes impertigados, revestidos de ferro brunido e de velludo vermelho, e com interiores mysteriosos, em fórma de capella, cheios de nichos, de claustros de tartaruga...

Aqui e além, sobre a pintura verde-escura das paredes, resplandecia uma colcha de setim toda recamada de flôres e d'aves d'ouro; ou sobre um bocado de tapete do Oriente de tons severos, com versículos do Alcorão, desdobrava-se a pastoral gentil d'um minuete em Cythera sobre a sêda de um leque aberto...

Maria Eduarda terminou por se sentar, cansada, n'uma poltrona Luiz xv, ampla e nobre, feita para a magestade das anquinhas, recoberta de tapeçaria de Beauvais, d'onde parecia exhalar-se ainda um vago aroma d'empoado.

Carlos triumphava, vendo a admiração de Maria. Então, ainda considerava uma extravagancia aquella compra, feita n'um rasgo de enthusiasmo?

- Não, ha aqui coisas adoraveis... Nem eu sei se me atreverei a viver uma vida pacata de aldêa no meio de todas estas raridades...

- Não diga isso, exclamava Carlos rindo, que eu pégo fogo a tudo!

Mas o que lhe agradou mais foram as bellas faianças, toda uma arte immortal e fragil espalhada por sobre o marmore das consolas. Uma sobretudo attrahiu-a, uma esplendida taça persa, d'um desenho raro, com um renque de negros cyprestes, cada um abrigando uma flôr de côr viva: e aquillo fazia lembrar breves sorrisos reapparecendo entre longas tristezas. Depois eram as apparatosas majolicas, de tons estridentes e desencontrados, cheias de grandes personagens, Carlos V passando o Elba, Alexandre coroando Roxane; os lindos Nevers, ingenuos e sérios; os Marselhas, onde se abre voluptuosamente, como uma nudez que se mostra, uma grossa rosa vermelha; os Derby, com as suas rendas de ouro sobre o azul-ferrete de céo tropical; os Wedgewood, côr de leite e côr de rosa, com transparencias fugitivas de concha na agua...

- Só um instante mais, exclamou Carlos vendo-a outra vez sentar-se, é necessario saudar o genio tutelar da casa!

Era ao centro, sobre uma larga peanha, um idolo japonez de bronze, um deus bestial, nú, pellado, obeso, de papeira, faceto e banhado de riso, com o ventre óvante, distendido na

indigestão de todo um universo - e as duas perninhas bambas, molles e flaccidas como as pelles mortas d'um feto. E este monstro triumphava, encanchado sobre um animal fabuloso, de pés humanos, que dobrava para a terra o pescoço submisso, mostrando no focinho e no olho obliquo todo o surdo resentimento da sua humilhação...

- E pensarmos, dizia Carlos, que gerações inteiras vieram ajoelhar-se diante d'este ratão, rezar-lhe, beijar-lhe o embigo, offerecer-lhe riquezas, morrer por elle...

- O amor que se tem por um monstro, disse Maria, é mais meritorio, não é verdade?

- Por isso não acha talvez meritorio o amor que se tem por si...

Sentaram-se ao pé da janella, n'um divan baixo e largo, cheio de almofadas, cercado por um biombo de sêda branca, que fazia entre aquelle luxo do passado um fôfo recanto de conforto moderno: e como ella se queixava um pouco de calor, Carlos abriu a janella. Junto do peitotil crescia tambem um grande pé de margaridas; adiante, n'um velho vaso de pedra, pousado sobre a relva, vermelhejava a flôr d'um cacto; e dos ramos de uma nogueira cahia uma fina frescura.

Maria Eduarda veio encostar-se á janella, Carlos seguiu-a; e ficaram alli juntos, calados, profundamente felizes, penetrados pela doçura d'aquella solidão. Um passaro cantou de leve no ramo da arvore; depois calou-se. Ella quiz saber o nome de uma povoação que branquejava ao longe ao sol na collina azulada. Carlos não se lembrava.

Depois brincando, colheu uma margarida, para a interrogar: Elle m'aime, un peu, beaucoup... Ella arrancou-lh'a das mãos.

- Para que precisa perguntar ás flôres?

- Porque ainda m'o não disse claramente, absolutamente, como eu quero que m'o diga...

Abraçou-a pela cinta, sorriam um ao outro. Então Carlos, com os olhos mergulhados nos d'ella, disse-lhe baixínho e implorando:

- Ainda não vimos a saleta de banho...

Maria Eduarda deixou-se levar assim enlaçada pelo salão, depois através da sala de tapeçarias onde Marte e Venus se amavam entre os bosques. Os banhos eram ao lado, com um pavimento de azulejo, avivado por um velho tapete vermelho da Caramania. Elle, tendo-a sempre abraçada, pousou-lhe no pescoço um beijo longo e lento. Ella abandonou-se mais, os seus olhos cerraram-se, pesados e vencidos. Penetraram na alcova quente e côr d'ouro: Carlos ao passar desprendeu as cortinas do arco de capella, feitas de uma sêda leve que coava para dentro uma claridade loura: e um instante ficaram immoveis, sós emfim, desatado o abraço, sem se tocarem, como suspensos e suffocados pela abundancia da sua felicidade.

- Aquella horrivel cabeça! murmurou ella.

Carlos arrancou a coberta do leito, escondeu a tela sinistra. E então todo o rumor se extinguiu, a solitaria casa ficou adormecida entre as arvores, n'uma demorada sésta, sob a calma de julho...

Os annos de Affonso da Maia foram justamente no dia seguinte, domingo. Quasi todos os amigos da casa tinham jantado no Ramalhete; e tomára-se o café no escriptorio d'Affonso, onde as janellas se conservavam abertas. A noite estava tepida, estrellada e serenissima. Craft, Sequeira e o Taveira passeavam fumando no terraço. Ao canto d'um sofá Cruges escutava religiosamente Steinbroken que lhe contava, com gravidade, os progressos da musica na Filandia. E em redor de Affonso, estendido na sua velha poltrona, de cachimbo na mão, fallava-se do campo.

Ao jantar Affonso annunciára a intenção de ir visitar, para o meado do mez, as velhas arvores de Santa Olavia; e combinára-se logo uma grande romaria de amizade ás margens do Douro. Craft e Sequeira acompanhavam Affonso. O marquez promettera uma visita para agosto «na companhia melodiosa», dizia elle, do amigo Steinbroken. D. Diogo hesitava, com receio da longa jornada, da humidade da aldêa. E agora tratava-se de persuadir Ega a ir tambem, com Carlos - quando Carlos acabasse emfim de reunir esses materiaes do seu livro que o retinham em Lisboa «á banca do labor...» Mas o Ega resistiu. O campo, dizia elle, era bom para os selvagens. O homem, á maneira que se civilisa, afasta-se da natureza; e a realisação do progresso, o paraíso na Terra, que presagiam os Idealistas, concebia-o elle como uma vasta cidade occupando totalmente o Globo, toda de casas, toda de pedra, e tendo apenas aqui e além um bosquesinho sagrado de roseiras, onde se fossem colher os ramalhetes para perfumar o altar da Justiça...

- E o milho? A bella fruta? A hortaliçasinha? perguntava Villaça, rindo com malicia.

Imaginava então Villaça, replicava o outro, que d'aqui a seculos ainda se comeriam hortaliças? O habito dos vegetaes era um resto da rude animalidade do homem. Com os tempos o sêr civilisado e completo vinha a alimentar-se unicamente de productos artificiaes, em frasquinhos e em pilulas, feitos nos laboratorios do Estado...

- O campo, disse então D. Diogo, passando gravemente os dedos pelos bigodes, tem certa vantagem para a sociedade, para se fazer um bonito pic-nic, para uma burficada, para uma partida de croquet... Sem campo não ha sociedade.

- Sim, rosnou o Ega, como uma sala em que tambem ha arvores ainda se admitte...

Enterrado n'uma poltrona, fumando languidamente, Carlos sorria em silencio. Todo o jantar estivera assim calado, sorrindo esparsamente a tudo, com um ar luminoso e de deliciosa lassidão. E então o marquez, que já duas vezes, dirigindo-se a elle, encontrára a mesma abstracção radiosa, impacientou-se:

- Homem, falle, diga alguma coisa!... Você está hoje com um ar extraordinario, um arzinho de beato que se regalou de papar o Santissimo!

Todos em redor, com sympathia, se affirmaram em Carlos: Villaça achava-lhe agora melhor cara, côr d'alegria: D. Diogo, com um ar entendido, sentindo mulher, invejou-lhe os annos, invejou-lhe o vigor. E Affonso reenchendo o cachimbo olhava o neto, enternecido.

Carlos ergueu-se immediatamente, fugindo áquelle exame affectuoso.

Are sens