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- Com effeito, disse elle, espreguiçando-se de leve, tenho estado hoje languido e mono... É o começo do verão... Mas é necessario sacudir-me... Quer você fazer uma partida de bilhar, ó marquez?

- Vá lá, homem. Se isso o resuscita...

Foram, Ega seguiu-os. E apenas no corredor o marquez parando, e como recordando-se, perguntou sela rebuço ao Ega noticias dos Cohens. Tinham-se encontrado? Estava tudo acabado? Para o marquez, uma flôr de lealdade, não havia segredos: Ega contou-lhe que o romance findára, e agora o Cohen, quando o cruzava, baixava prudentemente os olhos...

- Eu perguntei isto, disse o marquez, porque já vi a Cohen duas vezes...

- Onde? foi a exclamação sôfrega do Ega.

- No Price, e sempre com o Damaso. A ultima vez foi já esta semana. E lá estava o Damaso, muito chegadinho, palrando muito... Depois veio sentar-se um bocado ao pé de mim, e sempre d'olho n'ella... E ella de lá, com aquelle ar de lambisgoia, de luneta n'elle...

Não havia que duvidar, era um namoro... Aquelle Cohen é um predestinado.

Ega fez-se livido, torceu nervosamente o bigode, terminou por dizer:

- O Damaso é muito intimo d'elles... Mas talvez se atire, não duvido... São dignos um do outro.

No bilhar, emquanto os dois carambolavam preguiçosamente, elle não cessou de passear, n'uma agitação, trincando o charuto apagado. De repente estacou em frente do marquez, com os olhos chammejantes:

- Quando é que você a viu ultimamente no Price, essa torpe iliba d'Israel?

- Terça-feira, creio eu.

O Ega recomeçou a passear, sombrio.

N'esse instante Baptista, apparecendo á porta do bilhar, chamau Carlos em silencio, com um leve olhar. Carlos veio, surprehendido.

- É um cocheiro de praça, murmurou Baptista. Diz que está alli uma senhora dentro d'uma carruagem que lhe quer fallar.

- Que senhora?

Baptista encolheu os hombros. Carlos, de taco na mão, olhava para elle, aterrado. Uma senhora! Era decerto Maria... Que teria suceedido, santo Deus, para ella vir n'uma tipoia, ás nove da noite, ao Ramalhete!

Mandou Baptista, a correr, buscar-lhe um chapéo baixo; e assim mesmo, de casaca, sem paletot, desceu n'uma grande anciedade. No peristyllo topou com Eusebiosinho que chegava, e sacudia cuidadosamente com o lenço a poeira dos botins. Nem fallou ao Eusebiosinho. Correu ao coupé, parado á porta particular dos seus quartos, mudo, fechado, mysterioso, aterrador...

Abriu a pertinhola. Do canto da velha traquitana, um vulto negro, abafado n'uma mantilha de renda, debruçou-se, perturbado, balbuciou:

- É só um instante! Quero-lhe fallar!

Que allivio! Era a Gouvarinho! Então, na sua indignação, Carlos foi brutal.

- Que diabo de tolice é esta? Que quer?

Ia bater com a portinhola; ella empurrou-a para fóra, desesperada; e não se conteve, desabafou logo alli, diante do cocheiro, que mexia tranquillamente na fivela d'um tirante.

- De quem é a culpa? Para que me trata d'este modo?... É só um instante, entre, tenho de lhe fallar!...

Carlos saltou para dentro, furioso:

- Dá uma volta pelo Aterro, gritou ao cocheiro. Devagar!

O velho calhambeque desceu a calçada; e durante um momento, na escuridão, recuando um do outro no assento estreito, tiveram as mesmas palavras, bruscas e colericas, através do barulho das vidraças.

- Que imprudencia! que tolice!...

- E de quem é a culpa? De quem é a culpa?

Depois, na rampa de Santos, o coupé rolou mais silenciosamente no macadam. Carlos então, arrependido da sua dureza, voltou-se para ella, e com brandura, quasi no tom carinhoso d'outr'ora, reprehendeu-a por aquella imprudencia... Pois não era melhor ter-lhe escripto?

- Para quê? exclamou ella. Para não me responder? Para não fazer caso das minhas cartas, como se fossem as de um importuno a pedir-lhe uma esmola!...

Suffocava, arrancou a mantilha da cabeça. No vagaroso rolar do coupé, sem ruido, ao longo do rio, Carlos sentia a respiração d'ella, tumultuosa e cheia d'angustia. E não dizia nada, immovel, n'um infinito mal-estar, entrevendo confusamente, através do vidro embaciado, na sombra triste do rio adormecido, as mastreações vagas de falúas. A parelha

parecia ir adormecendo; e as queixas d'ella desenrolavam-se, profundas, mordentes, repassadas d'amargura.

- Peço-lhe que venha a Santa Isabel, não vem... Escrevo-lhe, não me responde... Quero ter uma explicação franca comsigo, não apparece... Nada, nem um bilhete, nem uma palavra, nem um aceno... Um desprezo brutal, um desprezo grosseiro... Eu nem devia ter vindo... Mas não pude, não pude!... Quiz saber o que lhe tinha feito. O que é isto? Que lhe fiz eu?

Carlos percebia os olhos d'ella, faiscantes sob a nevoa de lagrimas retidas, supplicando e procurando os seus. E sem coragem sequer de a fitar, murmurou, torturado:

- Realmente, minha amiga... As coisas fallam bem por si, não são necessarias explicações.

- São! É necessario saber se isto é uma coisa passageira, um amuo, ou se é uma coisa definitiva, um rompimento

Elle agitava-se no seu canto, sem achar uma maneira suave, affectuosa ainda, de lhe dizer que todo o seu desejo d'ella findára. Terminou por afirmar que não era um amuo. Os seus sentimentos tinham sido sempre elevados, não cahiria agora na pieguice de ter um amuo...

- Então é um rompimento?...

- Não, tambem não... Um rompimento absoluto, para sempre, não...

- Então é um amuo? Porquê?

Carlos não respondeu. Ella, perdida, sacudiu-o pelo braço.

- Mas falle! Diga alguma coisa, santo Deus! Não seja cobarde, tenha a coragem de dizer o que é!

Sim, ella tinha razão... Era uma cobardia, era uma indignidade, continuar alli, gôchemente, dissimulado na sombra, a balbuciar coisas mesquinhas. Quiz ser claro, quiz ser forte.

- Pois bem, ahi está. Eu entendi que as nossas relações deviam ser alteradas...

E outra vez hesitou, a verdade amolleceu-lhe nos labios, sentindo aquella mulher ao seu lado a tremer d'agonia.

- Alteradas, quero dizer... Podiamos transformar um capricho apaixonado, que não podia durar, n'uma amizade agradavel, e mais nobre...

E pouco a pouco as palavras voltavam-lhe faceis, habeis, persuasivas, através do rumor lento das rodas. Onde os podia levar aquella ligação? Ao resultado costumado. A que a um dia se descobrisse tudo, e o seu bello romance acabasse no escandalo e na vergonha; ou a que, envolvendo-os por muito tempo o segredo, elle viesse a descahir na banalidade d'uma união quasi conjugal, sem interesse e sem requinte. De resto era certo que, continuando a encontrarem-se, aqui, em Cintra, n'outros sitios, a sociedadesinha curiosa e mexeriqueira viria a perceber a sua affeição. E havia por acaso nada mais horroroso, para quem tem orgulho e delicadeza d'alma, do que uns amores que todo o publico conhece, até os cocheiros de praça? Não... O bom senso, o bom gosto mesmo, tudo indicava a necessidade d'uma separação. Ella mesmo mais tarde lhe seria grata... Decerto, esta primeira interrupção d'um habito dôce era desagradavel, e elle estava bem longe de se sentir feliz. Fôra por isso que não tivera a coragem de lhe escrever... Emfim deviam ser fortes, e não se vêrem pelo menos durante alguns mezes... Depois, pouco a pouco, o que era capricho fragil, cheio de inquietação, tornar-se-hia uma boa amizade, bem segura e bem duradoura.

Calou-se; e então, no silencio, sentiu que ella, cahida para o canto do coupé, como uma coisa miseravel e meio morta, encolhida no seu véo, estara chorando baixo.

Foi um momento intoleravel. Ella chorava sem violencia, mansamente, com um chôro lento, que parecia não dever findar. E Carlos só achava esta palavra banal e desenxabida:

Are sens