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Maria desejava essa noite tão ardentemente como elle. Uma tarde ao escurecer, voltando d'um fresco passeio nos campos, experimentaram ambos essa dupla chave - que Carlos já promettia mandar dourar: e elle ficou surprehendido ao vêr que o velho portão, que ouvira sempre ranger abominavelmente, rolava agora nos gonzos com um silencio oleoso.

Veio n'essa mesma noite - tendo deixado na villa para o levar ao amanhecer a caleche do Mulato, um batedor discreto, que elle cevava de gorgetas. O céo, molle e abafado, não tinha uma estrella; e sobre o mar lampejava a espaços, mudamente, a lividez d'um relampago. Caminhando com inuteis cautelas rente do muro Carlos sentia, n'esta proximidade d'uma posse tão desejada, uma melancolia, cerrada de anciedade, que vagamente o acobardava. Abriu quasi a tremer o portão: e mal déra alguns passos estacou, ouvindo ao fundo Niniche ladrar furiosamente. Mas tudo emmudeceu; e da janella do canto, sobre o jardim, surgiu uma claridade que o socegou. Foi encontrar Maria, com um roupão de rendas, junto da porta envidraçada, suffocando quasi entre os braços Niniche que ainda rosnava. Estava toda medrosa, n'uma impaciencia de o sentir ao seu lado: e não quiz recolher logo: um momento ficaram alli, sentados nos degraus, com Niniche que aquietára e lambia Carlos. Tudo em redor era como uma infinita mancha de tinta; só lá em baixo, perdida e mortiça, surdia da treva alguma luzinha vacillando no alto d'um mastro. Maria, conchegada a Carlos, refugiada n'elle, deu um longo suspiro: e os seus olhos mergulhavam inquietos n'aquella mudez negra, onde os arbustos familiares do jardim, toda a quinta, parecia perder a realidade, sumida, diluida na sombra.

- Porque não havemos de partir já para a Italia? perguntou ella de repente, procurando a mão de Carlos. Se tem de ser, porque não ha de ser já?... Escusavamos de ter estes segredos, estes sustos!

- Sustos de que, meu amor? Estamos aqui tão seguros como na Italia, como na China...

De resto podemos partir mais depressa, se quizeres... Dize tu um dia, marca um dia!

Ella não respondeu, deixando cahir dôcemente a cabeça sobre o hombro de Carlos. Elle acrescentou, devagar:

- Em todo o caso, comprehendes bem, preciso primeiro ir a Santa Olavia, vêr o avô...

Os olhos de Maria perdiam-se outra vez na escuridão como recebendo d'ella o presagio d'um futuro, onde tudo seria confuso e escuro tambem.

- Tu tens Santa Olavia, tens teu avô, tens os teus amigos... Eu não tenho ninguem!

Carlos estreitou-a a si, enternecido.

- Não tens ninguem! Isso dito a mim! Nem chega a ser injustiça, nem chega a ser ingratidão! É nervoso; e é tambem o que os inglezes chamam a «impudente adulteração d'um facto.»

Ella ficára aninhada no peito de Carlos, como desfallecida.

- Não sei porque, queria morrer...

Um largo brilho de relampago alumiou o rio. Maria teve medo, entraram na alcova. Os mólhos de velas de duas serpentinas, batendo os damascos e os setins amarellos, embebiam o ar tepido, onde errava um perfume, n'uma refulgencia ardente de sacrario: e as bretanhas, as rendas do leito já aberto punham uma casta alvura de neve fresca n'esse luxo amoroso e côr de chamma. Fóra, para os lados do mar, um trovão rolou lento e surdo. Mas Maria já o não ouviu, cahida nos braços de Carlos. Nunca o desejára, nunca o adorára tanto! Os seus beijos anciosos pareciam tender mais longe que a carne, trespassal-o, querer sorver-lhe a vontade e a alma: - e toda a noite, entre esses brocados radiantes, com os cabellos soltos, divina na sua nudez, ella lhe appareceu realmente como a Deusa que elle sempre imaginára, que o arrebatava emfim, apertado ao seu seio immortal, e com elle pairava n'uma celebração d'amor, muito alto, sobre nuvens de ouro...

Quando sahiu, ao amanhecer, chovia. Foi encontrar o Mulato a dormir n'uma taberna, bebedo. Teve de o meter dentro do carro; e foi elle que governou até ao Ramalhete, embrulhado n'uma manta do taberneiro, encharcado, cantarolando, esplendidamente feliz.

Passados dias, passeando com Maria nos arredores da Toca, Carlos reparou n'uma casita, á beira da estrada, com escriptos: e veio-lhe logo a idéa de a alugar, para evitar aquella desagradavel partida de madrugada com o Mulato estremunhado, borracho, despedaçando o trem pelas calçadas. Visitaram-na: havia um quarto largo, que com tapete e cortinas podia dar um refugio confortavel. Tomou-a logo - e Baptista veio ao outro dia, com moveis n'uma carroça, arranjar este novo ninho. Maria disse, quasi triste:

- Mais outra casa!

- Esta, exclamou Carlos rindo, é a ultima! Não, é a penultima... Temos ainda a outra, a nossa, a verdadeira, lá longe, não sei onde...

Começaram a encontrar-se todas as noites. Ás nove e meia, pontualmente, Carlos deixava a Toca, com o seu charuto accêso: e Domingos, adiante, de lanterna, vinha fechar o portão, tirar a chave. Elle recolhia devagar á sua «choupana» onde o servia um criadito, filho do jardineiro do Ramalhete. Sobre um tapete solto, deitado no velho soalho, havia apenas, além do leito, uma mesa, um sofá de riscadinho, duas cadeiras de palha; e Carlos entretinha as horas que o separavam ainda de Maria, escrevendo para Santa Olavia e sobretudo ao Ega, que se eternisava em Cintra.

Recebera duas cartas d'elle, fallando quasi sómente do Damaso. O Damaso apparecia em toda a parte com a Cohen; o Damaso tornára-se grutesco em Cintra, n'uma corrida de burros; o Damaso arvorára capacete e véo em Sitiaes; o Damaso era uma besta iramundo; o Datmaso, no pateo do Victor, de perna traçada, dizia familiarmente «a Rachel»; era um dever de moralidade publica dar bengaladas no Damaso!... Carlos encolhia os hombros, achando estes ciumes indignos do coração do Ega. E então por quem! Por aquella lambisgoia d'Israel, melada e mollenga, sovada a bengala! «Se com effeito, escrevera elle ao Ega, ella desceu de ti até ao Damaso, tens só a fazer como se fosse um charuto que te cahisse á lama: não o pódes naturalmente levantar: deves deixar fumal-o em paz ao garoto que o apanhou: enfurecer-te com o garoto ou com o charuto, é d'imbecil.» Mas ordinariamente, quando respondia, fallava só ao Ega dos Olivaes, dos seus passeios com Maria, das conversas d'ella, do encanto d'ella, da superioridade d'ella... Ao avô não achava que dizer; nas dez linhas que lhe destinava, descrevia o calor, recommendava-lhe que não se fatigasse, mandava saudades para os hospedes, e dava-lhe recados do Manoelzinho- que elle nunca via.

Quando não tinha que escrever, estirava-se no sofá, com um livro aberto, os olhos no ponteiro do relogio. Á meia noite sahia, encafuado n'um gabão d'Aveiro, e de varapau. Os seus passos resoavam, solitarios na mudez dos campos, com uma indefinida melancolia de segredo e de culpa...

N'uma d'essas noites, de grande calor, Carlos cançado adormeceu no sofá: e só despertou, em sobresalto, quando o relogio na parede dava tristemente duas horas. Que desespero! Ahi ficava perdida a sua noite de amor! E Maria decerto á espera, angustiada, imaginando desastres!... Agarrou o cajado, abalou, correndo pela estrada. Depois, ao abrir subtilmente o portão da quinta, pensou que Maria teria adormecido: Niniche podia ladrar: os seus passos, entre as acacias, abafaram-se, mais cautelosos. E de repente sentiu ao lado, sob as ramagens, vindo do cháo, d'entre a herva, um resfolgar ardente d'homem, a que se misturavam beijos. Parou, varado: e o seu impeto logo foi esmagar a cacete aquelles dois animaes, enroscados na relva, sujando brutamente o poetico retiro dos seus amores. Uma alvura de saia moveu-se no escuro: uma voz soluçava, desfalecida - oh yes, oh yes... Era a ingleza!

Oh santo Deus, era a ingleza, era miss Sarah! Apagando os passos, atordoado, Carlos escoou-se pelo portão, cerrou-o mansamente, foi esperar adiante, n'um recanto do muro, sob as ramarias d'uma faia, sumido na sombra. E tremia de indignação. Era preciso contar immediatamente a Maria aquelle grande horror! Não queria que ella consentisse um momento mais essa impura fêmea, junto de Rosa, roçando a candidez do seu anjo... Oh, era pavorosa uma tal hypocrisia, assim astuta e methodica, sem se desconcertar jámais! Havia dias apenas, vira a creatura desviar os olhos d'uma gravura d'Illustração, onde dois castos pastores se beijavam n'um arvoredo bucolico! E agora rugia, estirada na herva!

Na estrada escura, do lado do portão, brilhou um lume de cigarro. Um homem passou, forte e pesado, com uma manta aos hombros. Parecia um jornaleiro. A boa miss Sarah não escolhera! Bem lavada, toda correcta, com os seus bandós puritanos, aceitava um qualquer, rude e sujo, desde que era um macho! E assim os embaíra, mezes, com aquellas suas duas existencias, tão separadas, tão completas! De dia virginal, severa, córando sempre, com a Biblia no cesto da costura: á noite a pequena adormecia, todos os seus deveres sérios acabavam, a santa transformava-se em cabra, chale aos hombros, e lá ia para a relva, com qualquer!... Que bello romance para o Ega!

Voltou; tornou a abrir devagarinho o portão: de novo subiu, amollecendo os passos, a sombria rua d'acacias. Mas agora ia sentindo uma hesitação em contar a Maria aquelle horror. A seu pezar pensava que tambem Maria o esperava, com o leito aberto, no silencio da casa adormecida; e que tambem elle penetrava alli, as escondidas, como o homem da manta... De certo era bem differente! Toda a immensuravel differença que vai do divino ao bestial... E todavia receava despertar os melindrosos escrupulos de Maria, mostrando-lhe, parallelo ao seu amor cheio de requintes e passado entre brocados côr d'ouro, aquelle outro rude amor, secreto e illegitimo como o d'ella, e arrastado brutamente na relva... Era como mostrar-lhe um reflexo da sua propria culpa, um pouco esfumada, mais grosseira, mas parecida nos seus contornos, lamentavelmente parecida... Não, não diria nada. E a pequena?... Oh, nas suas relações com Rosa a creatura continuaria a ser, como sempre, a puritana laboriosa, grave e cheia d'ordem.

A porta envidraçada sobre o jardim tinha ainda luz: elle atirou aos vidros uma pouca de terra solta, depois bateu de leve. Maria appareceu, mal embrulhada n'um roupão, juntando os cabellos que se tinham desenrolado, e meia adormecida.

- Porque vieste tão tarde? Carlos beijou longamente os seus bellos olhos pesados, quasi cerrados.

- Adormeci estupidamente, a lêr... Depois, quando entrei pareceu-me ouvir passos na quinta, andei a rebuscar... Era imaginação,

tudo deserto.

- Precisavamos ter um cão de fila, murmurou ella, espreguiçando-se.

Sentada á beira do leito, com os braços cahidos e adormentados, sorria da sua preguiça.

- Estás tão fatigada, filha! queres tu que me vá embora ?...

Ella puxou-o para o seu seio perfumado e quente.

- Je veux que tu m'aimes beaucoup, beaucoup, et longtemps...

Ao outro dia Carlos não fôra a Lisboa, e appareceu cedo na Toca. Melanie, que andava espanejando o kiosque, disse-lhe que Madame, um pouco cançada, tinha justamente tomado o seu chocolate na cama. Elle entrou no salão: defronte da janella aberta, sentada no banco de cortiça, miss Sarah costurava, á sombra das arvores.

- Good morning, disse-lhe Carlos, chegando-se ao peitoril, todo curioso de a observar.

- Good morning, sir, respondeu ella com o seu ar modesto e tímido.

Carlos fallou do calor. Miss Sarah já áquella hora o achava intoleravel. Felizmente a vista do rio, lá em baixo, refrescava...

Sobretudo a noite passada, insistiu Carlos accendendo a cigarrette, fôra tão abafada!

Elle mal pudera dormir. E ella?

Oh, ella dormira d'um somno só. Carlos quiz saber se tivera bonitos sonhos.

- Oh yes, sir.

- Oh yes! mas agora um yes pudico, sem gemidos, com os olhos baixos. E tão correcta, tão pregada, fresca como se nunca tivesse servido!... Positivamente era extraordinaria! E

Carlos, torcendo o bigode, pensava que ella devia ter um seiosinho bem alvo e bem redondinho!

Assim ia passando o verão nos Olivaes. No começo de setembro, Carlos soube por uma carta do avô que Craft devia chegar a Lisboa, n'um sabbado, ao Hotel Central: e correu lá cedo, logo n'essa manhã, a ouvir as novidades de Santa Olavia. Achou Craft já a pé, diante do espelho, fazendo a barba. A um canto do sofá, Eusebiosinho, que viera na vespera á noite de Cintra e estava tambem no Hotel, limpava as unhas com um canivete, em silencio, coberto de negro.

Craft vinha encantado com Santa Olavia. Nem comprehendia como Affonso, beirão forte, tolerava a rua de S. Francisco, e o quintalejo abafado do Ramalhete. Tinha-se passado régiamente! O avô, cheio de saude, d'uma hospitalidade que lembrava Abrahão e a Biblia.

O Sequeira optimo comendo tanto que ficava inutil depois de jantar, a estoirar e a gemer no fundo d'uma poltrona. Lá conhecera o velho Travassos, que fallava sempre com os olhos cheios de lagrimas do «talento do seu caro collega Carlos.» E o marquez esplendido, com abraços de primo a todos os fidalgotes de Lamego, e apaixonado por uma barqueira... De resto soberbos jantares, alguns tiros aos coelhos, uma romaria, danças de raparigas no adro, guitarradas, esfolhadas, todo o dôce idyllio portuguez...

- Mas a respeito de Santa Olavia temos a fallar mais sériamente, disse por fim Craft, entrando na alcova, a ensaboar a cabeça.

- E tu, perguntou então Carlos, voltando-se para o Eusebiosinho. Tens estado em Cintra, hein? Que se faz lá?... O Ega?

O outro ergueu-se guardando o canivete, ageitando as lunetas.

Are sens