Elle deu um puxãosinho á cadeira, mais para junto d'ella, e outra vez risonho:
- Agora, minha senhora, ninguem me arranca de Lisboa! Podem-me morrer... Isto é, credo! teria grande ferro se me morresse alguem. O que quero dizer é que ha de custar a arrancar-me d'aqui!
Carlos continuava muito socegadamente a acariciar os pêllos da Niniche. E houve então um pequeno silencio. Maria Eduarda retomára o bordado. E Damaso, depois de sorrir, de tossir, de dar um geito ao bigode, estendeu a mão para acariciar tambem Niniche sobre os joelhos de Carlos. Mas a cadellinha, que havia momentos o espreitava com o olho desconfiado, ergueu-se, rompeu a ladrar furiosa.
- C'est moi Niniche! dizia Damaso, recuando a cadeira. C'est moi, ami... Alors, Niniche...
Foi necessario que Maria Eduarda reprehendesse severamente Niniche. E, aninhada de novo no collo de Carlos, ella continuou a espreitar Damaso, rosnando, e com rancor.
- Já me não conhece, dizia elle embaçado, é curioso...
- Conhece-o perfeitamente, acudiu Maria Eduarda muito séria. Mas não sei o que o snr.
Damaso lhe fez, que ella tem-lhe odio. É sempre este escandalo.
Damaso balbuciava, escarlate:
- Ora essa, minha senhora! O que lhe fiz?... Caricias, sempre caricias...
E então não se conteve, fallou com ironia, amargamente, das amizades novas de Mademoiselle Niniche. Alli estava nos braços d'outro, emquanto que elle, o amigo velho, era deitado ao canto...
Carlos ria.
- Ó Damaso, não a accuses de ingratidão... Pois se a snr.ª D. Maria Eduarda esta a dizer que ella sempre te teve odio...
- Sempre! exclamou Maria.
Damaso sorria tambem, lividamente. Depois, rirando um lenço de barra negra, limpando os beiços e mesmo o suor do pescoço, lembrou a Maria Eduarda como ella o tinha desapontado no dia das corridas... Elle toda a tarde á espera...
- Eram vesperas de partida, disse ella.
- Sim, bem sei, o marido de v. exc.ª... E como vai o snr. Castro Gomes? V. excª já recebeu noticias?
- Não, respondeu ella com o rosto sobre o bordado.
Damaso cumpriu ainda outros deveres. Perguntou por Mademoiselle Rosa. Depois por Cri-cri. Era necessario não esquecer Cri-cri...
- Pois v. excª - continuou elle, cheio subitamente de loquacidade - perdeu, que as corridas estiveram esplendidas... Nós ainda não nos vimos depois das corridas, Carlos. Ah, sim, vimo-nos na estação... Pois não é verdade que estiveram muito chics? Olhe, minha senhora, d'uma coisa póde v. excª estar certa, é que hippodromo mais bonito não ha lá fóra.
Uma vista até á barra, que é d'appetite... Até se vêem entrar os navios... Pois não é assim, Carlos?
- Sim, disse Carlos, sorrindo. Não é propriamente um campo de corridas... É verdade que não ha tambem propriamente cavallos de corridas... Verdade seja que não ha jockeys...
Ora é verdade que não ha apostas... Mas é verdade tambem que não ha publico...
Maria Eduarda ria, alegremente.
- Mas então?
- Vêem-se entrar os navios, minha senhora...
Damaso protestava, com as orelhas vermelhas. Era realmente querer dizer mal á força...
Não senhor, não senhor!... Eram muito boas corridas. Tal qual como lá fóra, as mesmas regras, tudo...
- Até na pesagem, acrescentou elle muito sério, fallamos sempre inglez!
Repetiu ainda que as corridas eram chics. Depois não achou mais nada: - e fallou de Penafiel, onde chovera sempre tanto que elle vira-se forçado a ficar em casa, estupidamente, a lêr...
- Uma massada! Ainda se houvesse alli umas mulheres para ir dar um bocado de cavaco... Mas qual! Uns monstros. E eu, lavradeiras, raparigas de pé descalço, não tolero...
Ha gente que gosta... Mas eu, acredite v. exc.ª não tolero...
Carlos corára: mas Maria Eduarda parceia não ter ouvido, occupada a contar attentamente as malhas do seu bordado.
De repente Damaso recordou-se que tinha alli um presentinho para a snr.ª D. Maria Eduarda. Mas não imaginasse que era alguma preciosidade... Verdadeiramente até o presente era para Mademoiselle Rosa.
- Olhe, para não estar com mysterios, sabe o que é? Tenho-o alli. no embrulhosinho de papel pardo... São seis barrilinhos d'ovos molles d'Aveiro. É um dôce muito célebre, mesmo lá fóra. Só o de Aveiro é que tem chic... Pergunte v. exc.ª ao Carlos. Pois não é verdade, Carlos, que é uma delicia, até conhecido lá fóra?
- Ah, certamente, murmurou Carlos, certamente...
Pousára Niniche no chão, erguera-se, fôra buscar o seu chapéo.
- Já?... perguntou-lhe Marla Eduarda, com um sorriso que era só para elle. Até ámanhã, então!
E voltou-se logo para o Damaso, esperando vêl-o erguer-se tambem. Ello conservou-se installado, com um ar de demora, familiar, e bamboleando a perna. Carlos estendeu-lhe dois dedos.
- Au revoir, disse o outro. Recados lá no Ramalhete, hei de apparecer!...