- O Evangelho lá o diz bem claro... Ou é a Biblia que o diz...? Não; é S. Paulo... S.
Paulo ou Santo Agostinho?... Emfim a authoridade não faz ao caso. N'um d'esses santos livros se affirma que este mundo é um valle de lagrimas...
- Em que a gente se ri bastante, disse Carlos alegremente.
O poeta tornou a encolher os hombros. Lagrimas ou risos, que importava?... Tudo era sentir, tudo era viver! Ainda na vespera elle dissera isso mesmo em casa dos Cohens...
E de repente, estacando no meio da rua, tocando no braço de Carlos:
- E agora por fallar nos Cohens, dize-me uma coisa com franqueza, meu rapaz. Eu sei que tu és intimo do Ega, e, que diabo, ninguem lhe admira mais o talento do que eu!... Mas, realmente, tu approvas que elle, apenas soube da chegada dos Cohens, se viesse metter em Lisboa? Depois do que houve!...
Carlos afiançou ao poeta que o Ega só no dia mesmo da chegada, horas depois, soubera pela Gazeta Illustrada a vinda dos Cohens... E de resto se não podessem habitar, conjuntas na mesma cidade, as pessoas entre as quaes tivesse havido attritos desagradaveis, as sociedades humanas tinham de se desfazer...
Alencar não respondeu, caminhando ao lado de Carlos, com a cabeça baixa. Depois parou de novo, franzindo a testa:
- Outra coisa em que te quero fallar. Houve entre ti e o Damaso alguma péga? Eu pergunto-te isto porque n'outro dia, lá em casa dos Cohens, elle veio com uns ditos, umas insinuações... Eu declarei-lhe logo: «Damaso, Carlos da Maia, filho de Pedro da Maia, é como se fosse meu irmão.» E o Damaso calou-se... Calou-se, porque me conhece, e sabe que eu n'estas coisas de lealdade e de coração sou uma fera!
Carlos disse simplesmente:
- Não, não ha nada, não sei nada... Nem sequer tenho visto o Damaso.
- Pois é verdade, continuou Alencar tomando o braço de Carlos, lembrei-me muito de ti em Cintra. Até fiz lá um coisita que me não sahiu má, e que te dediquei... Um simples soneto, uma paizagem, um quadrosinho de Cintra ao pôr do sol. Quiz provar ahi a esses da Idéa Nova, que, sendo necessario, tambem por cá se sabe cinzelar o verso moderno e dar o traço realista. Ora espera ahi, eu te digo, se me lembrar. A coisa chama-se - Na estrada dos Capuchos...
Tinham parado á esquina do Seixas; e o poeta tossira já de leve, antes de recitar, -
quando justamente lhes appareceu o Ega, vindo de baixo, vestido de campo, com uma bella rosa branca no jaquetão de flanella azul.
Alencar e elle não se encontravam desde a fatal soirée dos Cohens. E ao passo que o Ega conservava um resentimento feroz contra o poeta vendo n'elle o inventor d'essa perfida lenda da «carta obscena»- Alencar odiava-o pela certeza secreta de que elle fôra o amante amado da sua divina Rachel. Ambos se fizeram pallidos; o aperto de mão que deram foi incerto e regelado; e ficaram calados, todos tres, emquanto Ega nervoso levava uma eternidade a accender o charuto no lume de Carlos. Mas foi elle que fallou, por entre uma fumaça, affectando uma superioridade amavel:
- Acho-te com boa côr, Alencar!
O poeta foi amavel tambem, um pouco d'alto, passando os dedos no bigode:
- Vai-se andando. E tu que fazes? Quando nos dás essas Memorias homem?
- Estou á espera que o paiz aprenda a lêr.
- Tens que esperar! Pede ao teu amigo Gouvarinho que apresse isso, elle occupa-se da Instrucção publica... Olha, alli o tens tu, grave e ôco como uma columna do Diario do Governo...
O poeta apontava com a bengala para o outro lado da rua, por onde o Gouvarinho descia, muito devagar, a conversar com o Cohen; e ao lado d'elles, de chapéo branco, de collete branco, o Damaso deitava olhares pelo Chiado, risonho, ovante, barrigudo, como um conquistador nos seus dominios. Já aquelle arzinho gordo de tranquillo triumpho irritou Carlos. Mas quando o Damaso parou defronte, no outro passeio, todo de costas para elle, ostentando rir alto com o Gouvarinho, não se conteve, atravessou a rua.
Foi breve, e foi cruel: sacudiu a mão do Gouvarinho, saudou de leve o Cohen: e sem baixar a voz, disse ao Damaso friamente:
- Ouve lá. Se continúas a fallar de mim e de pessoas das minhas relações, do modo como tens fallado, e que não me convém, arranco-te as orelhas.
O conde acudiu, mettendo-se entre elles:
- Maia, por quem é! Aqui no Chiado...
- Não é nada, Gouvarinho, disse Carlos detendo-o, muito sério e muito sereno. É
apenas um aviso a este imbecil.
- Eu não quero questões, eu não quero questões!... balbuciou o Damaso, livido, enfiando para dentro d'uma tabacaria.
E Carlos voltou, com socego, para junto dos seus amigos, depois de ter saudado o Cohen e sacudir a mão ao Gouvarinho.
Vinha apenas um pouco pallido: mais perturbado estava o Ega, que julgára vêr de novo, n'um olhar do Cohen, uma provocação intoleravel. Só o Alencar não reparára em nada: continuava a discursar sobre coisas litterarias, explicando ao Ega as concessões que se podiam fazer ao naturalismo...
- Fiquei aqui a dizer ao Ega... É evidente que quando se trata de paizagem é necessario copiar a realidade... Não se póde descrever um castanheiro a priori, como se descreveria uma alma... E lá isso faço eu... Ahi está esse soneto de Cintra que eu te dediquei, Carlos. É
realista, está claro que é, realista... Pudéra, se é paizagem! Ora eu vol-o digo... Ia justamente dizel-o, quando tu appareceste, Ega... Mas vejam lá vocês se isto os massa...
Qual massava! E até, para o escutarem melhor, penetraram na rua de S. Francisco, mais silenciosa. Ahi, dando um passo lento, depois outro, o poeta murmurou a sua ecloga. Era em Cintra, ao pôr do sol: uma ingleza, de cabellos soltos, toda de branco, desce n'um burrinho por uma vereda que domina um vale; as aves cantam de leve, ha borboletas em torno das madresilvas; então a ingleza pára, deixa o burrinho, olha enlevada o céo, os arvoredos, a paz das casas; - e ahi, no ultimo terceto, vinha «a nota realista» de que se ufanava o Alencar:
Ella olha a flôr dormente, a nuvem casta,
Emquanto o fumo dos casae se eleva
E ao lado o burro, pensativo, pasta.
- Ahi têm vocês o traço, a nota naturalista... Ao lado o burro, pensativo, pasta... Eis ahi a realidade, está-se a vêr o burro pensativo... Não ha nada mais pensativo que um burro... E
são estas pequeninas coisas da natureza que é necessario observar... Já vêem votos que se póde fazer realismo, e do bom, sem vir logo com obscenidades... Vocês que lhes parece o soneto?
Ambos o elogiaram profundamente - Carlos arrependido de não ter completado a humilhação do Damaso, dando-lhe bengaladas; Ega pensando que decerto, n'uma d'essas tardes, no Chiado, teria de esbofetear o Cohen. Como elles recolhiam ao Ramalhete, Alencar, já desanuviado, foi acompanhal-os pelo Aterro. E fallou sempre, contando o plano de um romance historico, em que elle queria pintar a grande figura d'Affonso d'Albuquerque, mas por um lado mais humano, mais intimo: Affonso d'Albuquerque namorado: Affonso d'Albuquerque, só, de noite, na pôpa do seu galeão, diante d'Ormuz incendiada, beijando uma flôr secca, entre soluços. Alencar achava isto sublime.
Depois de jantar, Carlos vestia-se para ir á rua de S. Francisco - quando o Baptista veio dizer que o snr. Telles da Gama lhe desejava fallar com urgencia. Não o querendo receber, alli, em mangas de camisa, mandou-o entrar para o gabinete escarlate e preto. E veio d'ahi a um instante encontrar Telles da Gama admirando as bellas faianças hollandezas.