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- Mandar-me desafiar, a mim! A mim, que todo o mundo conhece!...

Calou-se, engasgado. E Ega, estendendo a mão, observou placidamente que se desviavam do ponto vivo da questão. O Damaso concebera, rascunhára, pagára o artigo da Corneta. Isso não o negava, nem o podia negar: as provas estavam alli, abertas sobre a mesa: elles tinham além d'isso a declaração do Palma...

- Esse desavergonhado! gritou o Damaso, levado n'outra rajada d'indignação que o fez redemoinhar, estonteado, tropeçando nos moveis. Esse descarado do Palma! Com esse é que eu me quero vêr!... Lá a questão com o Carlos não vale nada, arranja-se, somos todos rapazes finos... Com o Palma é que é! Esse traidor é que eu quero rachar! Um homem a quem eu tenho dado ás meias libras, aos sete mil reis! E ceias, e tipoias! Um ladrão que pediu o relogio ao Zeferino para figurar n'um baptisado, e pôl-o no prégo!... E faz-me uma d'estas!... Mas hei de escavacal-o! Onde é que você o viu, Ega? Diga lá, homem! Que quero ir procural-o, hoje mesmo, correl-o a chicotadas... Traições não, não admitto a ninguem!

Ega, com a tranquillidade paciente de quem sente a prêsa certa, lembrou de novo a inutilidade d'aquellas divagações:

- Assim nunca acabamos, Damaso... O nosso ponto é este: o Damaso injuriou Carlos da Maia: ou se retracta publicamente d'essa injuria, ou dá uma reparação pelas armas...

Mas o Damaso, sem escutar, appellava desesperadamente para o Cruges, que se não movera do sofá de velludo, esfregando, um contra o outro, com um ar arripiado e de dôr, os dois sapatos novos de verniz.

- Aquelle Carlos! Um homem que se dizia meu amigo intimo! Um homem que fazia de mim tudo! Até lhe copiava coisas... Você bem viu, Cruges. Diga! Falle, homem! Não sejam vocês todos contra mim!... Até ás vezes ia á alfandega despachar-lhe caixotes...

O maestro baixava os olhos, vermelho, n'um infinito mal-estar. E Ega, por fim, já farto, lançou uma intimação derradeira:

- Em resumo, Damaso, desdiz-se ou bate-se?

- Desdizer-me? tartamudeou o outro, impertigando-se, n'um penoso esforço de dignidade, a tremer todo. E de quê? Ora essa! É

boa! Eu sou lá homem que me desdiga!

- Perfeitamente, então bate-se...

Damaso cambaleou para traz, desvairado:

- Qual bater-me! Ee sou lá homem que me bata! Eu cá é a sôcco. Que venha para cá, não tenho medo d'elle, arrombo-o...

Dava pulinhos curtos de gordo, através do tapete, com os punhos fechados e em riste. E

queria Carlos alli para o escavacar! Não lhe faltava mais senão bater-se... E então duellos em Portugal, que acabavam sempre por troça!

Ega no emtanto, como se a sua missão estivesse finda, abotoára a sobrecasaca e recolhia os papeis espalhados sobre a Biblia.

Depois, serenamente, fez a ultima declaração de que fôra incumbido. Como o snr. Damaso Salcede recusava retractar-se e rejeitara tambem uma reparação pelas armas, Carlos da Maia prevenia-o de que em qualquer parte que o encontrasse d'ahi por diante, fosse uma rua, fosse um theatro, lhe escarraria na face...

- Escarrar-me! berrou o outro, livido, recuando, como se o escarro já viesse no ar.

E de repente, espavorido, coberto de bagas de suor, precipitou-se sobre o Ega, agarrando-lhe as mãos, n'uma agonia:

- Ó João, ó João, tu, que és meu amigo, por quem és, livra-me d'esta entaladella!

Ega foi generoso. Desprendeu-se d'elle, empurrou-o brandamente para a poltrona, calmando-o com palmadinhas fraternaes pelo hombro. E declarou que, desde que Damaso appellava para a sua amizade, desapparecia o enviado de Carlos necessariamente exigente, ficava só o camarada, como no tempo dos Cohens e da villa Balzac. Queria pois o amigo Damaso um conselho? Era assignar uma carta affirmando que tudo o que fizera publicar na Corneta sobre o snr. Carlos da Maia e certa senhora fôra invenção falsa e gratuita. Só isto o salvava. D'outro modo, Carlos um dia, no Chiado, em S. Carlos, escarrava-lhe na cara. E, dado esse desastre, Damasosinho, a não querer ser apontado em Lisboa como um incomparavel cobarde, tinha de se bater á espada ou á pistola...

- Ora, em qualquer d'esses casos, você era um homem morto.

O outro escutava, esbarrondado no fundo do assento de velludo, com a face emparvecida para o Ega. Alargou mollemente os braços, murmurou da profundidade do seu terror:

- Pois sim, eu assigno, João, eu assigno...

- É o que lhe convém... Arranje então papel. Você está perturbado, eu mesmo redijo.

Damaso ergueu-se, com as pernas frouxas, atirando um olhar tonto e vago por sobre os moveis:

- Papel de carta? É para carta?

- Sim, está claro, uma carta ao Carlos!

Os passos do desgraçado perderam-se emfim no corredor, pesados e succumbidos.

- Coitado! suspirou o Cruges levando de novo, com um ar de arripio, a mão aos sapatos.

Ega lançou-lhe um chut severo. Damaso voltava com o seu sumptuoso papel de monogramma e corôa. Para envolver em silencio e segredo aquelle transe amargo, cerrou o reposteiro; e o vasto pano de velludo, desdobrando-se, mostrou o brazão de Salcede, onde havia um leão, uma torre, um braço armado, e por baixo, a letras d'ouro, a sua formidavel divisa: SOU FORTE! Immediatamente Ega afastou os livros na mesa, abancou, atirou largamente ao papel a data e a adresse do Damaso...

- Eu faço o rascunho, você depois copía...

- Pois sim! gemeu o outro, de novo, aluido na poltrona, passando o lenço pelo pescoço e pela face.

Ega no emtanto escrevia muito lentamente, com amor. E n'aquelle silencio, que o embaraçava, Cruges terminou por se erguer, foi coxeando até ao espelho onde se desenrolavam, entalados na frincha do caixilho, bilhetes e photographias. Eram as glorias sociaes do Damaso, os documentos do chic a valer que era a paixão da sua vida: bilhetes com titulos, retratos de cantoras, convites para bailes, cartas de entrada no Hippodromo, diplomas de membro do Club Naval, de membro do Jockey Club, de membro do Tiro aos Pombos:

- até pedaços cortados de jornaes annunciando os annos, as partidas, as chegadas do snr.

Salcede, «um dos nossos mais distinctos sportmen».

Desventuroso sportman! Aquella folha de papel, onde o Ega rascunhava, ia-o enchendo pouco a pouco d'um terror angustioso.

Santo Deus! Para que eram tantos apuros n'uma carta ao Carlos, um rapaz intimo? Uma linha bastaria: - «Meu querido carlos, não te zangues, desculpa, foi brincadeira.» Mas não!

Toda uma pagina de letra miuda com entrelinhas! Já mesmo Ega voltava a folha, molhava a penna, como se d'ella devessem escorrer sem cessar coisas humilhadoras! Não se conteve, estendeu a face por sobre a mesa, até o papel:

- Ó Ega, isso não é para publicar, pois não é verdade?

Ega reflectiu, com a penna no ar:

- Talvez não... Estou certo que não. Naturalmente Carlos, vendo o seu arrependimento, deixa isto esquecido no fundo d'uma gaveta.

Damaso respirou com allivio. Ah, bem! Isso parecia-lhe mais decente entre amigos!

Que lá isso, mostrar o seu arrependimento, até elle desejava! Com effeito o artigo fôra uma tolice... Mas então! Em questões de mulheres era assim, assomado, um leão...

Abanou-se com o lenço, desanuviado, recomeçando a achar sabôr á vida. Findou mesmo por accender um charuto, levantar-se sem rumor acercar-se do Cruges - que, coxeando através das curiosidades da sala, encalhára sobre o piano e sobre os livros de musica, com o pé dorido no ar.

- Então tem-se feito alguma coisa de novo, Cruges?

Cruges, muito vermelho, resmungou que não tinha feito nada.

Damaso ficou alli um momento, a mascar o charuto. Depois, atirando um olhar inquieto á mesa onde o Ega rascunhava interminavelmente, murmurou, sobre o hombro do maestro:

- Uma entaladella assim! Eu é por causa da gente conhecida... Senão não me importava! Mas veja você tambem se arranja as coisas e se o Carlos deixa aquillo na gaveta...

Are sens