Maria Eduarda desprendeu-se, lentamente e perturbada.
- Vamos vêr a casa, disse ella.
Começaram pelo segundo andar. A escada era escura e feia: mas os quartos em cima, alegres, esteirados de novo, forrados de papeis claros, abriam sobre o rio e sobre os campos.
- Os seus aposentos, disse Carlos, hão de ser em baixo, está visto, entre as coisas ricas... Mas Rosa e miss Sarah ficam aqui esplendidamente. Não lhe parece?
E ella percorria os quartos, devagar, examinando a accommodação dos armarios, palpando a elasticidade dos colxões, attenta, cuidadosa, toda no desvelo de alojar bem a sua gente. Por vezes mesmo exigia uma alteração. E era realmente como se aquelle homem que a seguia, enternecido e radiante, fosse apenas um velho senhorio.
- O quarto com as duas janellas, ao fundo do corredor, seria o melhor para Rosa. Mas a pequena não póde dormir n'aquelle enorme leito de pau preto...
- Muda-se!
- Sim, póde mudar-se... E falta uma sala larga para ella brincar, ás horas do calor... Se não houvesse o tabique entre os dois quartos pequenos...
- Deita-se abaixo
Elle esfregava as mãos, encantado, prompto a refundir toda a casa; e ella não recusava nada, para conforto mais perfeito dos seus.
Desceram á sala de jantar. E ahi, diante da famosa chaminé de carvalho lavrado, flanqueada á maneira de cariatides pelas duas negras figuras de Nubios, com olhos rutilantes de crystal, Maria Eduarda começou a achar o gosto do Craft excentrico, quasi exotico... Tambem Carlos não lhe dizia que Craft tivesse o gosto correcto d'um atheniense.
Era um saxonio batido d'um raio de sol meridional: mas havia muito talento na sua excentricidade...
- Oh, a vista é que é deliciosa! exclamou ella chegando-se á janella.
Junto do peitoril crescia um pé de margaridas, e ao lado outro de baunilha que perfumava o ar. Adiante estendia-se um tapete de relva, mal aparada, um pouco amarellada já pelo calor de julho; e entre duas grandes arvores que lhe faziam sombra, havia alli, para os vagares da sésta, um largo banco de cortiça. Um renque de arbustos cerrados parecia fechar a quinta d'aquelle lado como uma sebe. Depois a collina descia, com outras quintarolas, casas que se não viam, e uma chaminé de fabrica; e lá no fundo o rio rebrilhava, vidrado de azul, mudo e cheio de sol, até ás montanhas d'além-Tejo, azuladas tambem na faiscação clara do céo de verão.
- Isto é encantador! repetia ella.
- É um paraiso! Pois não lhe dizia eu? É necessario pôr um nome a esta casa... Como se ha de chamar? Villa-Marie? Não. Château-Rose... Tambem não, crédo! Parece o nome d'um vinho. O melhor é baptisal-a definitivamente com o nome que nós lhe davamos. Nós chamavamos-lhe a Tóca.
Maria Eduarda achou originalissimo o nome de Tóca. Devia-se até pintar em letras vermelhas sobre o portão.
- Justamente, e com uma divisa de bicho, disse Carlos rindo. Uma divisa de bicho egoista na sua felicidade e no seu buraco: Não me mexam!
Mas ella parára, com um lindo riso de surpreza, diante da mesa posta, cheia de fruta, com as duas cadeiras já chegadas, e os crystaes brilhando entre as flôres.
- São as bodas de Canná!
Os olhos de Carlos resplandeceram.
- São as nossas!
Maria Eduarda fez-se muito vermelha; e baixou o rosto a escolher um morango, depois a escolher uma rosa.
- Quer uma gota de champagne? exclamou Carlos. Com um pouco de gelo? Nós temos gelo, temos tudo! Não nos falta nada, nem a benção de Deus... Uma gotinha de champagne, vá!
Ella aceitou: beberam pelo mesmo copo; outra vez os seus labios se encontraram, apaixonadamente.
Carlos accendeu uma cigarrette, continuaram a percorrer a casa. A cozinha agradou-lhe muito, arranjada á ingleza, toda em azulejos. No corredor Maria Eduarda demorou-se diante de uma panoplia de tourada, com uma cabeça negra de touro, espadas e garrochas, mantos de sêda vermelha, conservando nas suas pregas uma graça ligeira, e ao lado o cartaz amarello de la corrida, com o nome de Lagartijo. Isto encantou-a como um quente lampejo de festa e de sol peninsular...
Mas depois o quarto que devia ser o seu, quando Carlos lh'o foi mostrar, desagradou-lhe com o seu luxo estridente e sensual. Era uma alcova, recebendo a claridade d'uma sala forrada de tapeçarias, onde desmaiavam na trama de lá os amores de Venus e Marte: da porta de communicação, arredondada em arco de capella, pendia uma pesada lampada da Renascença, de ferro forjado: e, áquella hora, batida por uma larga facha de sol, a alcova resplandecia como o interior de um tabernaculo profanado, convertido em retiro lascivo de serralho... Era toda forrada, paredes e tectos, de um brocado amarello, côr de botão d'ouro; um tapete de velludo do mesmo tom rico fazia um pavimento d'ouro vivo sobre que poderiam correr nús os pés ardentes d'uma deusa amorosa - e o leito de docel, alçado sobre um estrado, coberto com uma colcha de setim amarello bordada a flôres d'ouro, envolto em solemnes cortinas tambem amarellas de velho brocatel, - enchia a alcova, esplendido e severo, e como erguido para as voluptuosidades grandiosas de uma paixão tragica do tempo de Lucrecia ou de Romeu. E era alli que o bom Craft, com um lenço de sêda da India amarrado na cabeça, resonava as suas sete horas, pacata e solitariamente.
Mas Maria Eduarda não gostou d'estes amarellos excessivos. Depois impressionou-se, ao reparar n'um painel antigo, defumado, resultando em negro do fundo de todo aquelle ouro - onde apenas se distinguia uma cabeça degolada, livida, gelada no seu sangue, dentro d'um prato de cobre. E para maior excentricidade, a um canto, de cima de uma columna de carvalho, uma enorme coruja empalhada fixava no leito d'amor, com um ar de meditação sinistra, os seus dois olhos redondos e agourentos... Maria Eduarda achava impossível ter alli sonhos suaves.
Carlos agarrou logo na columna e no mocho, atirou-os para um canto do corredor; e propoz-lhe mudar aquelles brocados, forrar a alcova de um setim côr de rosa e risonho.
- Não, venho-me a acostumar a todos esses duros... Sómente aquelle quadro, com a cabeça, e com o sangue... Jesus, que horror!
- Reparando bem, disse Carlos, creio que é o nosso velho amigo S. João Baptista.
Para desfazer essa impressão desconsolada levou-a ao salão nobre, onde Craft concentrára as suas preciosidades. Maria Eduarda, porém, ainda descontente, achou-lhe um ar atulhado e frio de museu.
- É para vêr de pé, e de passagem... Não se póde ficar aqui sentado, a conversar.
- Mas esta é materia-prima! exclamou Carlos. Com isto depois faz-se uma sala adoravel... Para que serve o nosso genio decorativo?... Olhe o armario, veja que centro!
Que belleza!
Enchendo quasi a parede do fundo, o famoso armario, o «movel divino» do Craft, obra de talha do tempo da Liga Hanseatica, luxuoso e sombrio, tinha uma magestade architectural: na base quatro guerreiros, armados como Marte, flanqueavam as portas, mostrando cada uma em baixo-relevo o assalto de uma cidade ou as tendas de um acampamento; a peça superior era guardada aos quatro cantos pelos quatro evangelistas, João, Marcos, Lucas e Matheus, imagens rigidas, envolvidas n'essas roupagens violentas que um vento de prophecia parece agitar: depois na cornija erguia-se um trophéo agricola com mólhos d'espigas, fouces, cachos d'uvas e rabiças d'arados; e, á sombra d'estas coisas de labor e fartura, dois Faunos, recostados em symetria, indifferentes aos heroes e aos santos, tocavam n'um desafio bucolico a frauta de quatro tubos.
- Então, hein? dizia Carlos. Que movel! É todo um poema da Renascença, Faunos e Apostolos, guerras e georgicas... Que se póde metter dentro d'este armario? Eu se tivesse cartas suas era aqui que as depositava, como n'um altar-mór.
Ella não respondeu, sorrindo, caminhando devagar entre essas coisas do passado, d'uma belleza fria, e exhalando a indefinida tristeza de um luxo morto: finos moveis da Renascença italiana, exilados dos seus palacios de marmore, com embutidos de Cornalina e agatha que punham um brilho suave de joia sobre a negrura dos ebanos ou setim das madeiras côr de rosa; cofres nupciaes, longos como bahús, onde se guardavam os presentes dos Papas e dos Principes, pintados a purpura e ouro, com graças de miniatura; contadores hespanhoes impertigados, revestidos de ferro brunido e de velludo vermelho, e com interiores mysteriosos, em fórma de capella, cheios de nichos, de claustros de tartaruga...
Aqui e além, sobre a pintura verde-escura das paredes, resplandecia uma colcha de setim toda recamada de flôres e d'aves d'ouro; ou sobre um bocado de tapete do Oriente de tons severos, com versículos do Alcorão, desdobrava-se a pastoral gentil d'um minuete em Cythera sobre a sêda de um leque aberto...
Maria Eduarda terminou por se sentar, cansada, n'uma poltrona Luiz xv, ampla e nobre, feita para a magestade das anquinhas, recoberta de tapeçaria de Beauvais, d'onde parecia exhalar-se ainda um vago aroma d'empoado.