longos mezes n'uma outra terra que se tornára a patria do seu coração. E que havia de dizer o avô ? Aceitar esse romance, a que não veria os lados desagradaveis, esbatido assim pela distancia e pela nevoa da paixão. Seria para Affonso uma vaga e mal sabida coisa d'amor que se passava em Italia... Poderia lamental-a apenas por lhe levar pontualmente todos os annos o neto para longe; e cada anno se consolaria pensando na curta duração dos idyllios humanos. De resto Carlos contava com essa larga benevolencia que amollece as almas mais rígidas quando apenas alguns passos as separam do tumulo... Emfim o seu truc parecia-lhe bom. Ega, em resumo, approvou o truc.
Depois, mais alegremente, fallaram da instailação d'esse amor. Carlos permanecia na sua idéa romantica um cottage á beira d'um lago. Mas Ega não approvava o lago. Ter todos os dias diante dos olhos uma agua sempre mansa e sempre azul, parcia-lhe perigoso para a durabilidade da paixão. Na quietação continua d'uma paizagem igual, dois amantes solitarios, dizia elle, não sendo botanicos nem pescando á linha, vêem-se forçados a viver exclusivamente do desejo um do outro, e a tirar d'ahi todas as suas idéas, sensações, occupações, gracejos e silencios... E, que diabo, o mais forte sentimento não póde dar para tanto! Dois amantes, cuja unica profissão é amarem-se, deviam procurar uma cidade, uma vasta cidade, tumultuosa e creadora, onde o homem tenha durante o dia os clubs, o cavaco, os museus, as idéas, o sorriso d'outras mulheres - e a mulher tenha as ruas, as compras, os theatros, a attenção d'outros homens; de sorte que á noite, quando se reunam, não tendo passado o infindavel dia a observarem-se um no outro e a si proprios, trazendo cada um a vibração da vida forte que atravessaram - achem um encanto novo e verdadeiro no conchego da sua solidão, e um sabor sempre renovado na repetição dos seus beijos...
- Eu, continuava Ega, erguendo-se, se levasse para longe uma mulher, não era para um lago, nem para a Suissa, nem para os montes da Sicilia; era para Paris, para o boulevard dos Italianos, alli á esquina do Vaudeville, com janellas deitando para a grande vida, a um passo do Figaro, do Louvre, da Philosophia e da blague... Aqui tens tu a minha doutrina!...
E ahi temos nós o amigo Baptista com o correio.
Não era o correio. Era apenas um bilhete que o Baptista trazia n'uma salva: e vinha tão perturbado que annunciou «um sujeito, alli fóra, na antecamara, n'uma carruagem, á espera...»
Carlos olhou o bilhete, empallideceu terrivelmente. E ficou a reviral-o, lento e como atordoado, entre os dedos que tremiam... Depois, em silencio, atirou-o ao Ega por cima da mesa.
- Caramba! murmurou Ega, assombrado.
Era Castro Gomes!
Bruscamente Carlos erguera-se, decidido.
- Manda entrar... Para o salão grande!
Baptista apontou para o jaquetão de flanella com que Carlos tinha almoçado, e perguntou baixo se s. exc.ª queria uma sobrecasaca.
- Traze.
Sós, Ega e Carlos olharam-se um instante, anciosamente.
- Não é um desafio, está claro, balbuciou Ega.
Carlos não respondeu. Examinava outra vez o bilhete: o homem chamava-se Joaquim Alvares de Castro Gomes: por baixo tinha escripto a lapis «Hotel Bragança»... Baptista voltára com a sobrecasaca: e Carlos, abotoando-a devagar, sahiu sem outra mais palavra ao Ega, que ficára de pé junto da mesa, limpando estupidamente as mãos ao guardanapo.
No salão nobre, forrado de brocados côr de musgo d'outono, Castro Gomes examinava curiosamente, com um joelho apoiado á borda do sofá, a esplendida tela de Constable, o retrato da condessa de Runa, bella e forte no seu vestido de velludo escarlate de caçadora ingleza. Ao rumor dos passos de Carlos sobre o tapete, voltou-se, de chapéo branco na mão, sorrindo, pedindo perdão de estar assim a pasmar familiarmente para aquelle soberbo Constable... Com um gesto rigido, Carlos, muito pallido, indicou-lhe o sofá. Saudando e risonho Castro Gomes sentou-se vagarosamente. No peito da sobrecasaca muito justa trazia um botão de rosas, os seus sapatos de verniz resplandeciam sob as polainas de linho; no rosto chupado, queimado, a barba negra, terminava em bico; os cabellos rareavam-lhe na risca; e mesmo a sorrir tinha um ar de seccura, de fadiga.
- Eu possuo tambem em Paris um Constable muito chic, disse elle, sem embaraço, n'um tom arrastado, cheio de rr, que o sutaque brazileiro adocicava. Mas é apenas uma pequena paizagem, com duas figurinhas. É um pintor que não me diverte, a dizer a verdade... Todavia da muito tom a uma galeria. É necessario tel-o.
Carlos, defronte n'uma cadeira, com os punhos fortemente fechados sobre os joelhos, conservava a immobilidade d'um marmore. E, perante aquelle modo affavel, uma idéa ia-o atravessando, lacerante, angustiosa, pondo-lhe já nos olhos largos que não tirava de sobre o outro, uma irreprimivel chamma de cólera. Carlos Gomes decerto não sabia nada! Chegára, desembarcára, correra aos Olivaes, dormira nos Olivaes! Era o marido, era novo, tivera-a já nos braços - a ella! E agora alli estava, tranquillo, de flôr ao peito, fallando de Constable! O
unico desejo de Carlos, n'esse instante, era que aquelle homem o insultasse.
No emtanto Castro Gomes, amavelmente, desculpava-se de se apresentar assim, sem o conhecer, sem ao menos ter pedido por um bilhete uma entrevista...
- O motivo porém que me traz é tão urgente, que cheguei esta manhã ás dez horas do Rio de Janeiro, ou antes do Lazareto, e estou aqui!... E esta mesma noite, se puder, parto para Madrid.
Fez-se um allivio infinito no coração de Carlos. Ainda não vira então Maria Eduarda, aquelles seccos labios não a tinham tocado! E sahiu emfim da sua rigidez de marmore, teve um movimento attento, aproximando de leve a cadeira.
Castro Gomes no emtanto, tendo pousado o chapéo, tirára do bolso interior da sobrecasaca uma carteira com um largo monogramma de ouro; e, vagaroso, procurava entre os papeis uma carta... Depois, com ella na mão, muito tranquillamente:
- Eu recebi no Rio de Janeiro, antes de partir, este escripto anonymo... Mas não creia v.
exc.ª que foi elle que me levou a atravessar á pressa o Atlantico. Seria o maior dos ridiculos... E desejo tambem afirmar-lhe que todo o conteudo d'elle me deixou perfeitamente indiferente... Aqui o tem. Quer v. exc.ª lêl-o, ou quer que eu leia?
Carlos murmurou com um esforço:
- Leia v. exc.ª
Castro Gomes desdobrou o papel, e revirou-o um instante entre os dedos.
- Como v. exc.ª vê, é a carta anonyma em todo o seu horror: papel de mercearia, pautadinho de azul; calligraphia reles; tinta reles; cheiro reles. Um documento odioso. E
aqui está como elle se exprime: «Um homem «que teve a honra de apertar a mão de v.
exc.ª» Eu dispensava a honra... «que teve a hora de apertar a mão de v. exc.ª e d'apreciar o seu «cavalheirismo, julga dever prevenil-o que sua mulher é, á vista de toda a «Lisboa, a amante d'um rapaz muito conhecido aqui, Carlos Eduardo da «Maia, que vive n'uma casa ás Janelas Verdes, chamada o Ramalhete. Este «heroe, que é muito rico, comprou expressamente uma quinta nos Olivaes, «onde installou a mulher de v. exc.ª e onde a vai
vêr todos os dias, ficando «ás vezes, com escandalo da visinhança, até de madrugada.
Assim o nome «honrado de v. exc.ª anda pelas lamas da capital. » É tudo o que diz a carta; e eu só devo acrescentar, porque o sei, que tudo quanto ella diz é incontestavelmente exacto... O snr. Carlos da Maia é pois publicamente, com conhecimento de toda a Lisboa, o amante d'essa senhora.
Carlos ergueu-se, muito sereno. E abrindo de leve os braços, n'uma aceitação inteira de todas as responsabilidades:
- Não tenho então nada a dizer a v. exc.ª senão que estou ás suas ordens!...
Uma fugitiva onda de sangue avivou a pallidez morena de Castro Gomes. Dobrou a carta, guardou-a com todo o vagar na carteira. Depois, sorrindo friamente:
- Perdão... O snr. Carlos da Maia sabe, tão bem como eu, que se isto tivesse de ter uma solução, violenta, eu não viria aqui pessoalmente, a sua casa, lêr-lhe este papel... A coisa é inteiramente outra.
Carlos recahira na cadeira, assombrado. E agora a lentidão adocicada d'aquella voz ia-se-lhe tornando intoleravel. Um confuso terror do que viria d'esses labios, que sorriam com uma pallidez impertinente, quasi fazia estalar o seu pobre coração. E era um desejo brutal de lhe gritar que acabasse, que o matasse, ou que sahisse d'aquella sala, onde a sua presença era uma inutilidade ou uma torpeza!...
O outro passou os dedos no bigode, e proseguiu, devagar, arranjando as suas palavras com cuidado e com precisão:
- O meu caso é este, snr. Carlos da Maia. Ha pessoas em Lisboa que me não conhecem decerto, mas que sabem a esta hora que existe algures, em Paris, no Brazil ou no inferno, um certo Castro Gomes, que tem uma mulher bonita, e que a mulher d'esse Castro Gomes tem em Lisboa um amante. Isto é desagradavel, sobretudo por ser falso. E v. exc.ª