- Sim, tive, uma irmãsinha que morreu em pequena... Mas não me lembra. Tenho em Paris o retrato d'ella... Bem linda!
N'esse momento em baixo, na calçada, uma carruagem, a trote largo, estacou. Carlos, surprehendido, correu á janella com o guardanapo na mão.
- É o Ega! exclamou. É aquelle velhaco que chega de Cintra!
Maria erguera-se, inquieta. E um momento, de pé, ambos se olharam, hesitando... Mas o Ega era como um irmão de Carlos. Elle esperava só que o Ega recolhesse de Cintra para o levar á Toca. Melhor seria que o encontro se désse alli, natural, franco e simples...
- Baptista! gritou Carlos, sem vacillar mais. Dize ao snr. Ega que estou a jantar, que entre para aqui.
Maria sentára-se, vermelha, dando um geito rapido aos ganchos do cabello, arranjado á pressa, um pouco desmanchado.
A porta abriu-se, - e o Ega parou, assombrado, intimidado, de chapéo branco, de guarda-sol branco, e com um embrulho de papel pardo na mão.
- Maria, disse Carlos, aqui tens emfim o meu grande amigo Ega.
E ao Ega disse simplesmente:
- Maria Eduarda.
Ega ia largar atarantadamente o embrulho para apertar a mão que Maria Eduarda lhe estendia, córada e sorrindo. Mas o papel pardo, mal atado, desfez-se; e uma provisão fresca de queijadas de Cintra rolou, esmagando-se, sobre as flôres do tapete. Então todo o embaraço findou através d'uma risada alegre - emquanto o Ega, desolado, abria os braços sobre as ruinas do seu dôce.
- Tu já jantaste? perguntou Carlos.
Não, não tinha jantado. E via já alli uns ovos molles nacionaes, que o encantavam, enfastiado como vinha da horrivel cozinha do Victor. Oh, que cozinha! Pratos lugubres, traduzidos do francez em calão, como as comedias do Gymnasio!
- Então avança! exclamou Carlos. Depressa, Baptista!... Traze o caldo de gallinha! Oh, ainda temos tempo!... Tu sabes que vou hoje para Santa Olavia?
Está claro que sabia, recebera a carta d'elle, e por isso viera... Mas não podia jantar ainda, assim coberto do pó da estrada, e com um jaquetão de bucolica...
- Dize que me guardem o caldo, Baptista! Olha, dize que me guardem tudo, que eu trago uma fome de pastor da Arcadia!...
O Baptista servira o café. E a carruagem da senhora, que os devia levar a Santa Apolonia, esperava já á porta com a maleta. Mas Ega agora queria conversar, affirmou que tinham tempo, tirou o relogio. Estava parado. E elle declarou logo que no campo se regulava pelo sol, como as flôres e como as aves...
- Fica agora em Lisboa? perguntou-lhe Maria Eduarda.
- Não, minha senhora, só o tempo de cumprir o meu dever de cidadão, subindo duas ou tres vezes o Chiado... Depois volto para a relva. Cintra começa a ser interessante para mim, agora que não está ninguem... Cintra, de verão, com burguezes, parece-me um idyllio com nodoas de sebo.
Mas Baptista offerecia a Carlos a chartreuse - dizendo que s. exc.ª não se devia demorar se não tencionava perder o comboio, de proposito. Maria ergueu-se logo para ir dentro pôr o chapéo. E os dois amigos, sós, ficaram um momento calados, emquanto Carlos accendia devagar o charuto.
- Tu quanto tempo te demoras? perguntou por fim o Ega.
- Tres ou quatro dias. E tu não voltes para Cintra antes que eu chegue, precisamos communicar... Que diabo tens tu feito lá?
O outro encolheu os hombros.
- Tenho sorvido ar puro, colhido florinhas, murmurado de vez em quando «que lindo que isto é!» etc.
Depois, debruçado sobre a mesa, picando com um palito uma azeitona:
- De resto, nada... O Damaso lá está! Sempre com a Cohen, como te mandei dizer...
Está claro que não ha nada entre elles, aquillo é só para mim, para me irritar... É um canalha aquelle Damaso! Eu só quero um pretexto. Esgano-o!
Deu um puxão forte aos punhos, com uma côr de cólera no rosto queimado:
- Eu, está claro, fallo-lhe, aperto-lhe a mão, chamo-lhe «amigo Damaso», etc. Mas só quero um pretexto! É necessario aniquilar aquelle animal. É um dever de moralidade, d'aceio publico, de gosto varrer aquella bola de lama humana!
- Quem esteve por lá mais? perguntou Carlos.
- Que te interesse?... A Gouvarinho. Mas vi-a uma só vez. Apparecia pouco, coitada, agora que andava de luto.
- De luto?
- Por ti.
Calou-se. Maria entrava, com o véu descido, acabando de apertar as luvas. Então Carlos, suspirando, resignado, estendeu os braços ao Baptista para elle lhe vestir um casaco leve de jornada. Ega ajudava, pedindo um abraço filial para Affonso, e recados para o gordo Sequeira.
Foi acompanhal-os a baixo, em cabello: e fechou elle a portinhola, promettendo a Maria Eduarda uma visita á Toca, apenas Carlos voltasse d'esses penhascos do Douro...
- Não vás para Cintra antes de eu voltar! gritou-lhe ainda Carlos. E a Michaela que tome conta em ti!
- All right, all right, dizia o Ega. Boa jornada! Criado de v. exc.ª, minha senhora... Até á Toca!
O coupé partiu. Ega subiu ao seu quarto, onde outro criado lhe estava preparando o banho. Na saleta deserta, entre as flôres e os restos do jantar, as velas continuavam a arder solitarias, fazendo resaltar no painel escuro a pallidez de Pedro da Maia, e a melancolia dos seus olhos.
No sabbado seguinte, perto das duas horas, Carlos e Ega, ainda á mesa do almoço, acabavam os seus charutos, fallando de Santa Olavia. Carlos chegára de lá essa madrugada, só. O avô decidira ficar entre as suas velhas arvores até ao fim do outono que ia tão luminoso e tão macio...
Carlos fôra-o encontrar muito alegre, muito forte - apesar de ter sido obrigado, por causa d'um toque de rheumatismo, a abandonar emfim o seu culto da agua fria. E esta macissa, resplandecente saude do velho fôra um allivio para o coração de Carlos: parecia-lhe assim mais facil, menos ingrata, a sua partida com Maria para Italia, em outubro. Além d'isso achára um truc, como elle dizia ao Ega, para realisar o supremo desejo da sua vida sem magoar o avô, sem lhe turbar a paz da velhice. Era um truc, simples. Consistia em partir elle só para Madrid, no começo d'uma certa «viagem d'estudo», para que já preparára o avô em Santa Olavia. Maria ficava na Toca, durante um mez. Depois tomava o paquete para Bordeus: e era ahi que Carlos se reunia com ella, a começarem essa existencia de felicidade e romance que as flôres da Italia deviam perfumar... Na primavera elle voltava a Lisboa, deixando Maria installada no seu ninho: e então, pouco a pouco, ia revelando ao avô aquella ligação, a que o prendia a honra, e que o forçaria agora a viver regularmente