- Que lhe disse eu? exclamou o Ega, tocando no cotovêlo do marquez. É sentimento...
Aposto que é o festim!
E era com effeito o festim, já cantado na Flôr de Martyrio, festim romantico, n'um vago jardim onde vinhos de Chypre circulam, caudas de brocado rojam entre macissos de magnolias, e das aguas do lago sobem cantos ao gemer dos violoncellos... Mas bem depressa transpareceu a severa idéa social da Poesia. Emquanto, sob as arvores radiantes de luar, tudo são «risos, brindes, lascivos murmurios» - fôra, junto ás grades douradas do parque, assustada com o latir dos molossos, uma mulher macilenta, em farrapos, chora, aconchegando ao seio magro o filho que pede pão... E o poeta, sacudindo os cabellos para traz, perguntava porque havia ainda esfomeados n'este orgulhoso seculo XIX? De que servira então, desde Spartacus, o esforço desesperado dos homens para a Justiça e
para a Igualdade? De que servira então a cruz do grande Martyr, erguida além na collina, onde, por entre os abetos:
Os raios do sol se somem,
O vento triste se cala...
E as aguias revolteando
D'entre as nuvens estão olhando
Morrer o filho do Homem!
A sala permanecia muda e desconfiada. E o Alencar, com as mãos tremendo no ar, desolava-se de que todo o Genio das gerações fosse impotente para esta coisa simples - dar pão á criança que chora!
Martyrio do coração!
Espanto da consciencia!
Que toda a humana sciencia
Não solva a negra questão!
Que os tempos passem e rolem
E nenhuma luz assome,
E eu veja d'um lado a fome
E do outro a indigestão!
Ega torcia-se, fungando dentro do lenço, jurando que rebentava. «E do outro a indigestão!» Nunca, nas alturas lyricas, se gritára nada tão extraordinario! E sujeitos graves, em redor, sorriam d'aquelle realismo sujo. Um jocoso lembrou que para indigestões já havia o bi-carbonato de potassa.
- Quando não são das minhas! rosnou um cavalheiro esverdinhado, que alargava a fivela do colete.
Mas tudo emmudeceu ante um chut terrível do marquez, que desapertára o cache-nez, já excitado, no enternecimento que sempre lhe davam estes humanitarismos poeticos. E
entretanto, no estrado, o Alencar achára a solução do soffrimento humano! Fôra uma Voz que lh'a ensinára! Uma Voz sahida do fundo dos seculos, e que através d'elles, sempre suffocada, viera crescendo todavia irresistivelmente desde o Golgotha até á Bastilha! E
então, mais solemne por traz da mesa, com um arranque de Precursor e uma firmeza de Soldado, como se aquelle honesto movel de mogno fosse um pulpito e uma barricada - o Alencar, alçando a fronte n'uma grande audacia á Danton, soltou o brado temeroso. Alencar queria a Bepublica!
Sim, a Republica! Não a do Terror e a do odio, mas a da mansidão e do Amor. Aquella em que o Millionario sorrindo abre os braços ao Operario! Aquella que é Aurora, Consolação, Refugio, Estrella mystica e Pomba...
Pomba da Fraternidade,
Que estendendo as brancas azas
Por sobre os humanos lodos,
Envolve os seus filhos todos
Na mesma santa Igualdade!...
Em cima, na galeria, resoou um bravo ardente. E immediatamente, para o suffocar, sujeitos sérios lançaram, aqui e além: «Chut, silencio!» Então Ega ergueu as mãos magras, bem alto, berrou com um destaque atrevido:
- Bravo! Muito bem! Bravo!
E todo pallido da sua audacia, entalando o monoculo, declarou para os lados:
- Aquella democracia é absurda... Mas que os burguezes se dêem ares intolerantes, isso não! Então applaudo eu!
E as suas mãos magras de novo se ergueram, bem alto, junto das do marquez que retumbavam como malhos. Outros em volta, immediatamente, não se querendo mostrar menos democratas que o Ega e aquelle fidalgo de tão grande linhagem, reforçaram os bravos com calor. Já pela sala se voltavam olhares inquietos para aquelle grupo cheio de revolução. Mas um silencio cahiu, mais commovido e grave, quando o Alencar (que inspiradamente previra a intolerancia burgueza) perguntou em estrophes iradas o que detestavam, o que receavam elles, no advento sublime da Republica? Era o pão carinhoso dado á criança? Era a mão justa estendida ao proletario? Era a esperança? Era a aurora?
Receaes a grande luz?
Tendes medo do Abecê?...
Então castigai quem lê,
Voltai á plebe soez!
Recuai sempre na Historia,
Apagai o gaz nas ruas,
Deixai as crianças nuas,
E venha a forca outra vez!
Palmas, mais numerosas, já sinceras, estalaram pela sala, que cedia emfim ao repetido encanto d'aquelle lyrismo humanitario e sonoro. Já não importava a Republica, os seus perigos. Os versos rolavam, cantantes e claros; e a sua onda larga arrastava os espiritos mais positivos. Sob aquelle bafo de sympathia Alencar sorria, com os braços abertos, annunciando uma a uma, como perolas que se desfiam, todas as dadivas que traria a Republica. Debaixo da sua bandeira, não vermelha mas branca, elle via a terra coberta de searas, todas as fomes satisfeitas, as nações cantando nos valles sob o olhar risonho de Deus. Sim, porque Alencar não queria uma Republica sem Deus! A Democracia e o Christianismo, como um lirio que se abraça a uma espiga, completavam-se, estreitando os seios! A rocha do Golgotha tornava-se a tribuna da Convenção! E para tão dôce ideal não se necessitavam cardeaes, nem missaes, nem novenas, nem igrejas. A Republica, feita só de pureza e de fé, reza nos campos; a lua cheia é hostia; os rouxinoes entoam o tantum ergo nos ramos dos loureiraes. E tudo prospéra, tudo refulge - ao mundo do Conflicto substitue-se o mundo do Amor...
Á espada succede o arado,
A Justiça ri da Morte,
A escóla está livre e forte,
E a Bastilha derrocada.
Róla a tiára no lodo,
Brota o lirio da Igualdade,
E uma nova Humanidade