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- Brutalidade romantica!... Isso já vem na Dama das Camelias... Sobretudo é não vêr com boa philosophia as nuances.

O outro atalhou, impaciente:

- Bem, Ega, não fallemos mais n'isso... Eu estou horrivelmente nervoso!... Até logo. Tu jantas em casa, não é verdade? Bem, até logo.

Sahia atirando a porta, quando Ega agora tranquillo, disse, erguendo-se muito lentamente do sofá:

- O homemzinho foi para lá.

Carlos voltou-se, com os olhos chammejantes:

- Foi para os Olivaes? Foi ter com ella?

Sim, pelo menos mandára a tipoia á quinta do Craft. Ega, para conhecer esse snr.

Castro Gomes, fôra metter-se no cubiculo do guarda-portão. E vira-o descer, accender um charuto... Era com effeito um d'esses rastaquouèros que, n'esse infeliz Paris que tudo tolera, veem ao Café de la Paix às duas horas para tomar a sua groseille, tesos e embrutecidos... E fôra o guarda-portão que lhe dissera que o sujeito parecia muito alegre e mandára o cocheiro bater para os Olivaes...

Carlos parecia aniquilado:

- Tudo isso é nojento!... No fim talvez até se entendam ambos... Estou como tu dizias aqui há tempos: «Cahiu-me a alma a uma latrina, preciso um banho por dentro!»

Ega murmurou melancolicamente:

- Essa necessidade de banhos moraes está-se tornando com effeito tão frequente!...

Devia haver na cidade um estabelecimento para elles.

Carlos, no seu quarto, passeava diante da mesa onde a folha branca de papel, em que ia escrever a Maria Eduarda, já tinha a data d'esse dia, depois - Minha senhora, n'uma letra que elle se esforçára por traçar firme e serena: - e não achava outra palavra. Estava

bem decidido a mandar-lhe um cheque de duzentas libras, paga esplendidamente ultrajante das semanas que passára no seu leito. Mas queria juntar duas linhas regeladas, impassiveis, que a ferissem mais que o dinheiro: não encontrava senão phrases de grande cólera, revelando um grande amor.

Olhava a folha branca: e a banal expressão Minha senhora dava-lhe uma saudade dilacerante por aquella a quem na vespera ainda dizia «minha adorada», pela mulher que se não chamava ainda Mac-Gren, que era perfeita, e que uma paixão indomavel, superior á razão, entontecera e vencera. E o seu amor por essa Maria Eduarda, nobre e amante, que se transformára na Mac-Gren, amigada e falsa, era agora maior infinitamente, desesperado por ser irrealisavel - como o que se tem por uma morta e que palpita mais ardente junto da frialdade da cova. Oh! se ella pudesse resurgir outra vez, limpa, clara, do lodo em que afundára, outra vez Maria Eduarda, com o seu casto bordado!... De que amor mais delicado a cercaria, para a compensar das affeições domesticas que ella deixasse de merecer! Que veneração maior lhe consagraria - para supprir o respeito que o mundo superficial e affectado lhe retirasse! E ella tinha tudo para reter amor e respeito - tinha a belleza, a graça, a intelligencia, a alegria, a maternidade, a bondade, um incomparavel gosto... E com todas estas qualidades dôces e fortes - era apenas uma intrujona! Mas porque? porque?

Porque entrára ella n'esta longa fraude, tramada dia a dia, mentindo em tudo, desde o pudor que fingia até ao nome que usava!

Apertava a cabeça entre as mãos, achava a vida intoleravel. Se ella mentia - onde havia então a verdade? Se ella o trahia assim, com aquelles olhos claros, o universo podia bem ser todo uma immensa traição muda. Punha-se um mólho de rosas n'um vaso, exhalava-se d'elle a peste! Caminhava-se para uma relva fresca, ella escondia um lamaçal! E para que, para que mentira ella? Se, desde o primeiro dia em que o vira, tremulo e rendido, a contemplar o seu bordado como se contempla uma acção de santidade - lhe tivesse dito que não era esposa do snr. Castro Gomes, mas só amante do snr. Castro Gomes - teria a sua paixão sido menos viva, menos profunda? Não era a estola do padre que dava belleza ao seu corpo e valor ás suas caricias... Para que fôra então essa mentira tenebrosa e descarada -

que lhe fazia suppôr agora que eram imposturas os seus mesmos beijos, imposturas os seus mesmos suspiros!... E com este longo embuste o levava a expatriar-se, dando a sua vida inteira por um corpo por que outros davam apenas um punhado de libras! E por esta mulher, tarifada ás horas como as caleches da Companhia, elle ia amarguarar a velhice do avô, estragar irreparavelmente o seu destino, cortar a sua livre acção de homem!

Mas porque? Porque fôra esta farça banal, arrastada por todos os palcos de opera comica, da cocotte que se finge senhora? Porque o fizera ella, com aquelle fallar honesto, o puro perfil e a doçura de mãi? Por interesse? Não. Castro Gomes era mais rico do que elle, mais largamente lhe podia satisfazer o appetite mundano de toilettes, de carruagens... Sentia ella que Castro Gomes a ia aabandonar, e queria ter ao lado aberta e prompta outra bolsa rica? Então mais simples teria sido dizer-lhe: «eu sou livre, gósto de ti, toma-me livremente, como eu me dou.» Não! Havia alli alguma coisa secreta, tortuosa, impenetravel... O que daria por a conhecer!

E então pouco a pouco foi surgindo n'elle o desejo de ir aos Olivaes... Sim, não lhe bastaria desforrar-se arrogantemente, atirando-lhe ao regaço um cheque embrulhado n'uma insolencia! O que precisava, para sua plena tranquillidade, era arrancar do fundo d'aquella turva alma o segredo d'aquella torpe farça... Só isso amansaria o seu incomparavel tormento. Queria entrar outra vez na tóca,

vêr como era aquella outra mulher que se chamava Mac-Gren, e ouvir as suas palavras. Oh!

iria sem violencia, sem recriminações, muito calmo, sorrindo! Só para que ella lhe dissesse qual fôra a razão d'aquella mentira tão laboriosa, tão vã... Só para lhe perguntar serenamente: «Minha rica senhora para quer foi toda esta intrujice?» E depois vêl-a chorar... Sim, tinha esta anciedade cheia d'amor de a vêr chorar. A agonia que elle sentira no salão côr de musgo do outono, emquanto o outro arrastava os rr, queria vêl-a repetida n'esse seio, onde elle atá ahi dormira tão dôcemente, esquecido de tudo, e que era bello, tão divinamente bello!...

Bruscamente, decidido, deu um puxão á campainha. Baptista appareceu todo abotoado na sua sobrecasaca, com um ar resoluto, como armado e prompto a ser util n'aquella crise que adivinhava...

- Baptista, corre ao hotel Central e pergunta se já entrou o snr. Castro Gomes!... Não, escuta... Põe-te á porta do Central, e espera até que entre aquelle sujeito que aqui esteve...

Não, é melhor perguntar!... Emfim, certifica-te de que o sujeito ou voltou ou está no hotel.

E apenas estejas bem certo d'isso, volta aqui, á desfilada, n'uma tipoia... Um batedor seguro, que é para me levar depois aos Olivaes!...

Immediatamente, dada esta ordem, serenou. Era já um allivio immenso não ter de escrever a carta, e achar palavras acerbas que a deviam dilacerar. Rasgou o papel devagar.

Depois fez o cheque de duzentas libras, ao portador. Elle mesmo lh'o levaria... Oh, decerto, não lh'o atirava romanticamente ao regaço... Deixal-o-hia sobre uma mesa, sobrescriptado a Madame Mac-Gren... E de repente sentiu uma compaixão por ella. Via-a já, abrindo o enveloppe com duas grandes lagrimas, lentas, caladas, a rolarem-lhe na face... E os seus proprios olhos se humedeceram.

N'esse momento Ega, de fóra, perguntou se era importuno.

- Entra! gritou.

E continuou passeando, calado, com as mãos nos bolsos: o outro, em silencio tambem, foi encostar-se á janella sobre o jardim.

- Preciso escrever ao avô a dizer-lhe que cheguei, murmurou Carlos por fim, parando junto da mesa.

- Dá-lhe recados meus.

Carlos sentára-se, tomára languidamente a penna: mas bem depressa a arremessou: cruzou as mãos por detraz da cabeça no espaldar da cadeira, cerrou os olhos, como exhausto.

- Sabes uma coisa que me parece certa? disse de repente o Ega da janella. Quem escreveu a carta anonyma ao Castro Gomes foi o Damaso!

Carlos olhou para elle:

- Achas?... Sim, talvez... Com effeito quem havia de ser?

- Não foi mais ninguem, menino. foi o Damaso!

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