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- Eu sabia d'essa mulher!... Vive na rua de S. Francisco, passou todo o verão nos Olivaes... É a amante d'elle!

Ega ainda balbuciou: «Não, não, snr. Affonso da Maia!» Mas o velho pôz o dedo nos labios, indicou Carlos dentro que podia ouvir... E afastou-se, todo dobrado sobre a bengala, vencido emfim por aquelle implacavel destino que depois de o ter ferido na idade de força com a desgraça do filho - o esmagava ao fim de velhice com a desgraça do neto.

Ega enervado, exhausto, voltou para o quarto - onde Carlos recomeçára n'aquelle agitado passeio que abalava o soalho, fazia tilintar finamente os frascos de crystal sobre o marmore da console. Calado, junto da mesa, Ega ficou percorrendo outros papeis da Monforte - cartas, um livrinho de marroquim com adresses, bilhetes de visita de membros do Jockey Club e de senadores do imperio. Subitamente Carlos parou diante d'elle, apertando desesperadamente as mãos:

- Estarem duas creaturas em pleno céo, passar um quidam, um idiota, um Guimarães, dizer duas palavras, entregar uns papeis e quebrar para sempre duas existencias!... Olha que isto é horrivel, Ega!

Ega arriscou uma consolação banal:

- Era peor se ella morresse...

- Peor porque? exclamou Carlos. Se ella morresse, ou eu, acabava o motivo d'esta paixão, restava a dôr e a saudade, era outra coisa... Assim estamos vivos, mas mortos um para o outro, e viva a paixão que nos unia!... Pois tu imaginas que por me virem provar que ella é minha irmã, eu gósto menos d'ella do que gostava hontem, ou gósto d'um modo differente? Está claro que não! O meu amor não se via d'uma hora para a outra accommodar a novas circumstancias, e transformar-se em amizade... Nunca! Nem eu quero!

Era uma brutal revolta - o seu amor defendendo-se, não querendo morrer, só porque as revelações d'um Guimarães e uma caixa de charutos cheia de papeis velhos o declaravam impossivel, e lhe ordenavam que morresse!

Houve outro melancolico silencio. Ega accendeu uma cigarrette, foi-se enterrar ao canto do sofá. Uma fadiga ia-o vencendo, feita de toda aquella emoção, da noitada do Augusto, da estremunhada manhã na alcova da Carmen. Todo o quarto foi entristecendo, á luz mais triste da tarde d'inverno que descia. Ega terminou por cerrar os olhos. Mas bem depressa o sacudiu outra exclamação de Carlos, que de novo, diante d'elle, apertava as mãos com desespero:

- E o peor ainda não é isto, Ega! O peor é que temos de lhe dizer tudo, a ella!...

Ega já pensára n'isso... E era necessario que se lhe dissesse immediatamente, sem hesitações.

- Vou-lhe eu mesmo contar tudo, murmurou Carlos.

- Tu!?

- Pois quem, então? Querias que fosse o Villaça?...

Ega franzia a testa:

- O que tu devias fazer era metter-te esta noite no comboio, e partir para Santa Olavia.

De lá contavas-lhe tudo. Estavas assim mais seguro.

Carlos atirou-se para uma poltrona, com um grande suspiro de fadiga:

- Sim, talvez, ámanhã, no comboio da noite... Já pensei n'isso, era o melhor... Agora o que estou é muito cansado!

- Tambem eu, disse o Ega espreguiçando-se. E já não adiantamos nada, atolamo-nos mais na confusão. O melhor é serenar... Eu vou-me estirar um bocado na cama.

- Até logo!

Ega subiu ao quarto, deitou-se por cima da roupa; e no seu immenso cansaço bem depressa adormeceu. Acordou tarde a um rumor da porta. Era Carlos que entrava, raspando um phosphoro. Anoitecera, em baixo tocava a campainha para o jantar.

- Demais a mais esta massada do jantar! dizia Carlos accendendo as velas no toucador.

Não termos um pretexto para irmos fóra, a uma taverna, conversar em socego! Ainda por cima convidei hontem o Steinbroken.

Depois voltando-se:

- Ó Ega, tu achas que o avô sabe tudo?

O outro saltára da cama, e diante do lavatorio arregaçava as mangas:

- Eu te digo... Parece-me que teu avô desconfia... O caso fez-lhe a impressão de uma catastrophe... E, se não suspeitasse o que ha, devia-lhe causar simplesmente a surpreza de quem descobre uma neta perdida.

Carlos teve um lento suspiro. D'ahi a um instante desciam para o jantar.

Em baixo encontraram, além de Steinbroken e D. Diogo - o Craft, que viera «pedir as sopas». E em tôrno áquella mesa, sempre alegre, coberta de flôres e de luzes, uma melancolia fluctuava n'essa tarde através d'uma conversa dormente sobre doenças, - o Sequeira que tinha rheumatismo, o pobre marquez peorára.

De resto Affonso, no escriptorio, queixára-se d'uma forte dôr de cabeça, que justificava o seu ar consumido e pallido. Carlos, a quem Steinbroken achára «má cara», explicou tambem que passára uma noite abominavel. Então Ega, para desanuviar o jantar, pediu ao amigo Steinbroken as suas impressões sobre o grande orador do sarau da Trindade, o Rufino. O diplomata hesitou. Surprehendera-o bastante saber que o Rufino era um politico, um parlamentar... Aquelles gestos, o bocado da camisa a vêr-se-lhe no estomago, a pera, a grenha, as botas, não lhe pareciam realmente d'um Homem d'Estado:

- Mais cependant, cependant... Dans ce genre à, dans le genre sublime, dans le genre de Demosthènes, il m'a paru très fort... Oh, il m'a paru excessivement fort!

- E você, Craft?

Craft, no sarau, só gostára do Alencar. Ega encolheu violentamente os hombros. Ora historias! Nada podia haver mais comico que a democracia romantica do Alencar, aquella Republica meiga e loura, vestida de branco como Ophelia, orando no prado, sob o olhar de Deus... Mas Craft justamente achava tudo isso excellente por ser sincero. O que feria sempre nas exhibições da litteratura portugueza? A escandalosa falta de sinceridade Ninguem, em verso ou prosa, parecia jámais acreditar n'aquillo que declamava com ardor, esmurrando o peito. E assim fôra na vespera. Nem o Rufino parecia acreditar na influencia da religião; nem o homem da barba bicuda no heroismo dos Castros e dos Albuquerques; nem mesmo o poeta dos olhinhos bonitos na bonitice dos olhinhos... Tudo contrafeito e postiço! Com o Alencar, que differença! Esse tinha uma fé real no que cantava, na Fraternidade dos povos, no Christo republicano, na Democracia devota e coroada d'estrellas...

- Já deve ser bem velho esse Alencar, observou D. Diogo que rolava bolinhas de pão entre os longos dedos pallidos.

Carlos, ao lado, emergiu emfim do seu silencio:

- O Alencar deve ter bons cincoenta annos.

Ega jurou pelo menos sessenta. Já em 1836 o Alencar publicava coisas delirantes, e chamava pela morte, no remorso de tantas virgens que seduzira...

- Ha que annos, com effeito, murmurou lentamente Affonso, eu ouvi fallar d'esse homem!

D. Diogo, que levára os labios ao copo, voltou-se para Carlos:

- O Alencar tem a idade que havia de ter teu pai... Eram intimos, d'essa roda distinguée d'então. O Alencar ia muito a Arroios com o pobre D. João da Cunha, que Deus haja, e com os outros. Era tudo uma fina flôr, e regulavam pela mesma idade... Já nada resta, já nada resta!

- Carlos baixára os olhos: todos por acaso emmudeceram: um ar de tristeza passou entre as flôres e as luzes como vinda do fundo d'esse passado, cheio de sepulturas e dôres.

- E o pobre Cruges, coitado, que fiasco! exclamou Ega, para sacudir aquella nevoa.

Craft achava o fiasco justo. Para que fôra elle dar Beethoven a uma gente educada pela chulice de Offenbach? Mas Ega não admittia esse desdem por Offenbach, uma das mais finas manifestações modernas do scepticismo e da ironia! Steinbroken accusou Offenbach de não saber contra-ponto. Durante um momento discutiu-se musica. Ega acabou por sustentar que nada havia em arte tão bello como o fado. E appellou para Affonso, para o despertar.

- Pois não é verdade, snr. Affonso da Maia? V. exc.ª tambem é como eu, um dos fieis ao fado, á nossa grande creação nacional.

- Sim, com effeito, murmurou o velho, levando a mão á testa, como a justificar o seu modo desinteressado e murcho. Ha muita poesia no fado...

- Craft porém atacava o fado, as malagueñas, as peteneras - toda essa musica meridional, que lhe parecia apenas um garganteado gemebundo, prolongado infinitamente, em ais de esterilidade e de preguiça. Elle, por exemplo, ouvira uma noite uma malagueña, uma d'essas famosas malagueñas, cantada em perfeito estylo por uma senhora de Malaga.

Era em Madrid, em casa dos Villa-Rubia. A senhora põe-se ao piano, rosna uma coisa sobre piedra e sepultura, e rompe a gemer n'um gemido que não findava - ã-ã-ã-ã-ã-ah... Pois senhores, elle aborrece-se, passa para a outra sala, vê jogar todo um robber de whist, folheia um immenso album, discute a guerra carlista com o general Jovellos, e quando volta, lá estava ainda a senhora, de cravos na trança e olhos no tecto, a gemer o mesmo - ã-ã-ã-ã-ã-ah!...

Todos riram. Ega protestou com impeto, já excitado. O Craft era um sêcco inglez, educado sobre o chato seio da Economia Politica, incapaz de comprehender todo o mundo de poesia que podia conter um ai! Mas elle não fallava das malagueñas. Não estava encarregado de defender a Hespanha. Ella possuia, para convencer o Craft e outros britannicos, bastante pilheria e bastante navalha... A questão era o fado!

- Onde é que você tem ouvido o fado? Ahi pelas salas, ao piano... Com effeito assim, concordo, é chôcho. Mas ouça-o você por tres ou quatro guitarristas, uma noite, no campo, com uma bella lua no céo... Como nos Olivaes este verão, quando o marquez lá levou o Vira-vira! Lembras-te, Carlos?... E estacou, como enlatado, no arrependimento d'aquella memoria da toca que levianamente evocára. Carlos permanecera silencioso, com uma sombra na face. Craft ainda rosnou que, n'uma linda noite de luar, todos os sons do campo eram bonitos, mesmo o chiar dos sapos. E de novo uma estranha desanimação amolleceu a sala; os escudeiros serviam os dôces.

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