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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Eu vim. Pelejei. Ao deusdar. Como é que eu sabia destornar contra a minha tristeza? O dito, vim, consoante traçado. Num lugar, o Tuim, me alembro: eu tive de mudar para outro cavalo. E um sitiante, no Lambe-Mel, explicou – que o trecho, dos marimbus, aonde íamos, se chamava mais certo não era Veredas-Mortas, mas Veredas-Altas... Coisa que compadre meu Quelemém mais tarde me confirmou. Daí, mais para adiante, dei para tremer com uma febre. Terçã. Mas o sentido do tempo o senhor entende, resenha duma viagem. Cantar que o senhor fosse. De ai, de mim. Namorei uma palmeira, na quadra do entardecer...

Na morna, baqueei, não podendo mais. Me levaram, por primeiro, de revexo. Depois me botaram para dentro duma casa muito pobre. Desembestei doente. Por último, como perdi meu conhecimento, estavam me deitando num catre.

Que foi febre-tifo, se diz, mas trelada com sezão, mas sezão forte especial – nas altíssimas! Que a febre que eu tinha era tamanha tanta, como nunca se viu – o Alaripe depois me disse ; que no decorrer dos acessos eu tresvariava. Do que, no ouvir contado, recordei a estória dum fazendeiro, o mais maldoso, que o demônio por fim salteou, por suas ruindades: e

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas que, endemoninhado, no quarto de sua casa, uivando lobum, suplicava alivio do calorão, e carecia mesmo que os escravos despejassem nele latas e baldes d’água, ao constantemente, até para evitar que, de tudo devorante tão quente, não viesse e desse de pegar fogo no cômodo, de incêndios... Doidice. Em dança de demônios, que nem não existem. Pois, então, só a doença não bastasse? O tempo que fiquei, deslembrado, detido. O quanto foi? Mas, quando dei acordo de mim, sarando e conferindo o juízo, a luz sem sol, mire e veja, meu senhor, que eu não estava mais no asilo daquela casinha pobre, mas em outra, numa grande fazenda, para onde sem eu saber tinham me levado.

Eu estava na Barbaranha, no Pé-da-Pedra, hóspede de seo Josafá Ornelas. Tomei caldo-de-galinha, deitado em lençóis alvos, recostado. E já parava meio longe aquele pesar, que me quebrantava. Lembro de todos, do dia, da hora. A primeira coisa que eu queria ver, e que me deu prazer, foi a marca dos tempos, numa folhinha de parede. Sosseguei de meu ser. Era feito eu me esperasse debaixo de uma árvore tão fresca. Só que uma coisa, a alguma coisa, faltava em mim. Eu estava um saco cheio de pedras.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Mas aquele seo Ornelas era homem de muita bondade, muita honra. Ele me tratou com categoria, fui príncipe naquela casa. Todos – a senhora dele, as filhas, as parentas – me cuidavam. Mas o que mormente me fortaleceu, foi o repetido saber que eles pelo sincero me prezavam, como talentoso homem-de-bem, e louvavam meus feitos: eu tivesse vindo, corajoso, para derrubar o Hermógenes e limpar estes Gerais da jagunçagem. Fui indo melhor.

Até que, um dia, eu estava repousando, no claro estar, em rede de algodão rendada. Alegria me espertou, um pressentimento. Quando eu olhei, vinha vindo uma moça.

Otacília.

Meu coração rebateu, estava dizendo que o velho era sempre novo. Afirmo ao senhor, minha Otacília ainda se orçava mais linda, me saudou com o salvável carinho, adianto de amor.

Ela tinha vindo com a mãe. E a mãe dela, os parentes, todos se praziam, me davam Otacília, como minha pretendida.

Mas eu disse tudo. Declarei muito verdadeiro e grande o amor que eu tinha a ela; mas que, por destino anterior, outro amor, necessário também, fazia pouco eu tinha perdido. O que confessei. E eu, para nojo e emenda, carecia de uns tempos.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Otacília me entendeu, aprovou o que eu quisesse. Uns dias ela ainda passou lá, me pagando companhia, formosamente.

Ela tinha certeza de que eu ia retornar à Santa Catarina, renovar; e trajar terno de sarjão, flor no peito, sendo o da festa de casamento. Eu fui, com o coração feliz, por Otacília eu estava apaixonado. Conforme me casei, não podia ter feito coisa melhor, como até hoje ela é minha muito companheira – o senhor conhece, o senhor sabe. Mas isto foi tantos meses depois, quando deu o verde nos campos.

Eu já estava de todo bom, firme para as arremessadas, quando ali na Barbaranha se surgiu para mim igualmente a visita de seô Habão – ele com o seo Ornelas se tivessem entre tempos pacificado. Homem baseado. Demonstrou que tinha muita satisfação em me ver, assim como para mim vinha trazendo outro cavalo de presente – o qual era ruço-rodado, ordem de valor e estampa. Ali agraciado aceitei, meu sinceramente. Mas ele portava causa maior – a que tinha ido confirmar e saber, e agenciar, por seus bons préstimos. E era que meu padrinho Selorico Mendes acabara falecido, me abençoando e se honrando, orgulhoso de meus atos; e as duas maiores fazendas ele tinha deixado para mim, em cédula de testamento. Seô Habão

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas queria logo me levar lá, no Curralim, no Corinto, para eu entrar em paz de posses. Rejeitei; adiei, isto é. Porquanto, de fato, fui, e tudo recebi em limpo, sem precisão de tocar demandas, por falta de outros mais legítimos herdeiros, e o que também devido dou ao advogado meu que zelou a sucessão – Dr. Meigo de Lima.

Só que isso foi mais tarde.

Pois, primeiro, eu tinha outra andada que cumprir, conforme a ordem que meu coração mandava. Tudo agradeci, dei a despedida, ao seo Ornelas e os dele – gente-do-evangelho.

Saí somente com o Alaripe e o Quipes, os outros deixei à espera de minha volta, que, por muita companhia numerosa, de nós não cobrassem duvidado. Mas, antes de sair, pedi à dona Brazilina uma tira de pano preto, que pus de funo no meu braço.

Aonde fui, a um lugar, nos gerais de Lassance, Os-Porcos.

Assim lá estivemos. A todos eu perguntei, em toda porta bati; triste pouco foi o que me resultaram. O que pensei encontrar: alguma velha, ou um velho, que da história soubessem – dela lembrados quando tinha sido menina – e então a razão rastraz de muitas coisas haviam de poder me expor, muito mundo. Isso não achamos. Rumamos daí então para bem longe reato: Juramento, o Peixe-Cru, Terra-Branca e Capela, a Capelinha-do-Chumbo. Só

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas um letreiro achei. Este papel, que eu trouxe – batistério. Da matriz de Itacambira, onde tem tantos mortos enterrados. Lá ela foi levada à pia. Lá registrada, assim. Em um 11 de setembro da era de 1800 e tantos... O senhor lê. De Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins – que nasceu para o dever de guerrear e nunca ter medo, e mais para muito amar, sem gozo de amor...

Reze o senhor por essa minha alma. O senhor acha que a vida é tristonha?

Mas ninguém não pode me impedir de rezar; pode algum?

O existir da alma é a reza... Quando estou rezando, estou fora de sujidade, à parte de toda loucura. Ou o acordar da alma é que é?

E, o pobre de mim, minha tristeza me atrasava, consumido.

Eu não tinha competência de querer viver, tão acabadiço, até o cumprimento de respirar me sacava. E, Diadorim, às vezes conheci que a saudade dele não me desse repouso; nem o nele imaginar. Porque eu, em tanto viver de tempo, tinha negado em mim aquele amor, e a amizade desde agora estava amarga falseada; e o amor, e a pessoa dela, mesma, ela tinha me negado.

Para que eu ia conseguir viver? Mas o amor de minha Otacília também se aumentava, aos berços primeiro, esboço de devagar.

Era.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Passado esse tempo, conforme foi, pouca tardança.

Mas, então, quando se estava de volta, m’embora vindo, peguei uma inesperada informação, na Barra do Abaeté. De Zé Bebelo! Tinha mesmo de ser. Não sei por que foi, que com aquilo me renasci. Que Zé Bebelo estava demorando léguas para cima, perto do São Gonçalo do Abaeté, no Porto-Passarinho. Me fiz para lá. E como era, que, antes e antes, eu não tivesse pensado em Zé Bebelo? Trote tocamos, viemos, beirando aquele rio. O

senhor sabe – o rio Abaeté, que é entristecedor audaz de belo: largo tanto, de morro a morro. E em minha vida eu já pensava.

Zé Bebelo gritou: – “Safa! Safas!...” – e me abraçou como amigo cordial, contente de muito me ver, constante se nada tivesse destruído o nosso costume. Conto que estava o mesmo, aposto e condizente.

– “Tudo viva!, Riobaldo, Tatarana, Professor...” – ele concisou. – “Tu quis paz?”

Sagaz assim me olhava, chega me cheirar só faltasse, de tornados a encontrar no curral, como boi a boi. Disse que eu estava feliz, mas emagrecido, e que encovava mais os olhos.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas

– “Estais p’ra trás... Sabe? Negociei um gado... Mudei meus termos! A ganhar o muito dinheiro – é o que vale... Pó d’ouro em pó...” – o que ele me disse.

E era a pura mentira. Mas podia ser verdade.

Porque ele, para se viver, carecia daquela bazófia, forte mestreava. Como logo me pregou:

– “Há-te! Acabou com o Hermógenes? A bem. Tu foi o meu discípulo... Foi não foi?”

Deixei: ele dizer, como essas glórias não me invocavam.

Mas, então, ele não me entendendo, esbarrou e se pôs. Cujo:

– “A bom, eu não te ensinei; mas bem te aprendi a saber certa a vida...” Eu ri, de nós dois.

Três dias falhei com ele, lá, no Porto-Passarinho.

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