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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas fato: que a carta, aquela, eu somente terminei de escrever, e remeti, quase em data dum ano muito depois... Digo o porquê?

Próprio porque não pude. Guarde o senhor: não pude completo.

Mas, guarde, por outra: o dia vindo depois da noite-esse é o motivo dos passarinhos...

Falo por palavras tortas. Conto minha vida, que não entendi. O senhor é homem muito ladino, de instruída sensatez.

Mas não se avexe, não queira chuva em mês de agosto. Já conto, já venho – falar no assunto que o senhor está de mim esperando.

E escute.

Tinha o Maligno?

Às vezes, penso. Um boneco de capim, vestido com um paletó velho e um chapéu roto, e com os braços de pau abertos em cruz, no arrozal, não é mamolengo? O passopreto vê e não vem, os passarinhos se piam de distância. Homem, é. O senhor nunca pense em cheio no demo. O mato é dos porcos-do-mato...

O sertão aceita todos os nomes: aqui é o Gerais, lá é o Chapadão, lá acolá é a caatinga. Quem entende a espécie do demo? Ele não fura: rascrava. Demorar comigo ele podia. E, o que não existe de se ver, tem força completa demais, em certas ocasiões. A ele vazio assim, como é que eu ia dizer: - “Te arreda desta minha

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas conversa!”?... Ao que, pois, o que eu ia pondo, na carta, era quase que uma ordenada lembrança, a igualzinha repetição daquilo de Diadorim: – que ela rezasse por mim, Otacília, orações rezasse...

Ia. Ah, mas, aí, houve. Amoleci mão antes de coração: não pude.

Não pude, diabralmente, desarrazoado – por outras fortes ordens... –; e então de repente tive vergonha, desgostei de estar querendo escrever aquela carta. Desisti, guardei na mochila aquela metade. Um homem é um homem, no que não vê e no que consome. Ah, não. Otacília, eu não merecia. Diadorim era um impossível. Demiti de tudo.

O demo, tive raiva dele? Pensei nele? Em vezes. O que era em mim valentia, não pensava; e o que pensava produzia era dúvidas de me-enleios. Repensava, no esfriar do dia. A quando é o do sol entrar, que então até é o dia mesmo, por seu remorso.

Ou então, ainda melhor, no madrugal, logo no instante em que eu acordava e ainda não abria os olhos: eram só os minutos, e, ali durante, em minha rede, eu preluzia tudo claro e explicado.

Assim: – Tu vigia, Riobaldo, não deixa o diabo te pôr sela...-isto eu divulgava. Aí eu queria fazer um projeto: como havia de escapulir dele, do Temba, que eu tinha mal chamado. Ele rondava por me governar? Mas, então, governar pudesse, eu não era o Urutu-Branco, não vinha a ser chefe de nada, coisa

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas nenhuma! Ah, eu carecia dum jeito, dum esperto socorro, para tentear com o Sujo em suas próprias portas, e mediante me pôr livre de fim fatal. De que modo?

Mas acontece que o instante entre o sono e o acordado era assaz curto, só perpassava, não dava pé. Eu não podia me firmar em coisa nenhuma, a clareza logo cessava. Daqueles avisos e propósitos, o montante movimento do mundo me delia, igual a um secar. E eu mesmo estava contra mim, o resto do tempo.

Não estava? Todo o mundo, cada dia, me obedecia mais, e mais me exaltavam. Com o que peguei, aos poucos, o costume de pular, num átimo, da rede, feito fosse para evitar aquela inteligencinha benfazeja, que parecia se me dizer era mesmo do meio do meu coração. Num arranco, desfazia aquilo – faísca de folga, presença de beija-flor, que vai começa e já se apaga – e daí já estava inteirado no comum, nas meias-alegrias: a meia-bondade misturada com maldade a meio. Agora levantava, puxava e arreava meu Siruiz, cavalo para alvoradas. Saía sozinho.

Sair na escuridão, o senhor sabe: aqueles galhos de árvores batendo na cabeça da gente. Sempre eu ia até longe; quando voltava, encontrava o pessoal se aprontando, café já coado,

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas cavalaria em fila para a viagem. Uma vez, inda mais longe fui, do que nas outras. E dei com o lázaro.

Ele se achava como que tocaiando, no alto duma árvore, por se esconder, feito uma cobra ararambóia. Quase levei o susto. E era um homem em chagas nojentas, leproso mesmo, um terminado. Para não ver coisas assim, jogo meus olhos fora!

Promovi meu revólver. Aquele de repente se encolheu, tremido; e tremeu tanto depressa, que as ramagens da árvore enroscaram um rumor de vento forte. Não gritou, não disse nada. Será que possuía sobra dalguma voz? Eu tinha de esmagalhar aquela coisa desumana.

Dum fato, na hora, me lembrei: do que tinham me contado, da vez em que Medeiro Vaz avistou um enfermo desses num goiabal. O homem tinha vindo lamber de língua as goiabas maduras, por uma e uma, no pé, com o fito de transpassar o mal para outras pessoas, que depois comessem delas. Uns assim fazem. Medeiro Vaz, que era justo e prestimoso, acabou com a vida dele. Isso contavam, já de dentro do meu ouvido. A quizília que em mim, ânsia forte: o lázaro devia de feder; onde estivesse, adonde fosse, lambuzava pior do que lesma grande, e tudo empestava da doença amaldita. Arte de que as goiabas de todo

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas goiabal viravam fruta peçonhenta... – e d’eu dar no gatilho: lei leal essa, de Medeiro Vaz...

- “Ô guaimoré!” – xinguei. E gritei pulhas. Acho que insultava era por de certo modo retardar meu dever? Ele não respondeu. Em ante mim, assim, ninguém não respondesse? Mas fincava de me olhar: ah, ele tinha dois olhos, no meio das folhas da folhagem. Muito coitado ele era – o senhor esteja de acordo.

Mas, aí, foi que vi e repeli o que que é ódio de leproso! Na cabeça daqueles olhos, eu armei minha pontaria.

E ouvi o vir dum cavaleiro. Esperei. Não dissessem que eu tinha baleado à traição o maldelazento, com escondidos de não ter testemunhas. Quem vinha? Em já madruga-manhã, tudo clareado, reconheci: Diadorim! Embolsei a arma, sem razão.

Diadorim me perseguia? “Vigia, Diadorim: tu pune por este?!” –

eu havia de indagar, apontando o esconso do leproso. “Estou aqui, te vejo é você mesmo, Riobaldo...” – ele ia dizer - “...

Riobaldo, tem tento!”... A imaginação dessa conversa, eu pensei de relance, como uma brasa chia em dentro de vasilha d’água.

Assim estremeci, eu ente. Porque, do bafo mesmo de minha idéia vã, eu estava catando tal anúncio de acusação: – Tu traz o Arrenegado... Eu e ele – o Dê?! Então, num sutil, podia mesmo

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas ser que ele quisesse estar tomando conta de mim? – Aí, nem nunca, nem! – eu rosnei, riso. Espinoteei na sela, feito acordado dum cochilo de cão. E Diadorim tropeava chegando. Mas eu virei rédea e roseteei, com brado, meu animal cumprindo: rompemos em galope que era um abismo...

-Eh, diogo! dianho!... Eh diogo, eh dião...

Retos, fomos, desabalando, que um quarto-de-légua quase, por doidejo. Nós três? Que eu pensei. E esbarrei, por tanto; meu cavalo sacudiu o pescoço todo. Espiei em roda, até com a mão.

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