Pois, primeiro, eu tinha outra andada que cumprir, conforme a ordem que meu coração mandava. Tudo agradeci, dei a despedida, ao seo Ornelas e os dele – gente-do-evangelho.
Saí somente com o Alaripe e o Quipes, os outros deixei à espera de minha volta, que, por muita companhia numerosa, de nós não cobrassem duvidado. Mas, antes de sair, pedi à dona Brazilina uma tira de pano preto, que pus de funo no meu braço.
Aonde fui, a um lugar, nos gerais de Lassance, Os-Porcos.
Assim lá estivemos. A todos eu perguntei, em toda porta bati; triste pouco foi o que me resultaram. O que pensei encontrar: alguma velha, ou um velho, que da história soubessem – dela lembrados quando tinha sido menina – e então a razão rastraz de muitas coisas haviam de poder me expor, muito mundo. Isso não achamos. Rumamos daí então para bem longe reato: Juramento, o Peixe-Cru, Terra-Branca e Capela, a Capelinha-do-Chumbo. Só
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas um letreiro achei. Este papel, que eu trouxe – batistério. Da matriz de Itacambira, onde tem tantos mortos enterrados. Lá ela foi levada à pia. Lá registrada, assim. Em um 11 de setembro da era de 1800 e tantos... O senhor lê. De Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins – que nasceu para o dever de guerrear e nunca ter medo, e mais para muito amar, sem gozo de amor...
Reze o senhor por essa minha alma. O senhor acha que a vida é tristonha?
Mas ninguém não pode me impedir de rezar; pode algum?
O existir da alma é a reza... Quando estou rezando, estou fora de sujidade, à parte de toda loucura. Ou o acordar da alma é que é?
E, o pobre de mim, minha tristeza me atrasava, consumido.
Eu não tinha competência de querer viver, tão acabadiço, até o cumprimento de respirar me sacava. E, Diadorim, às vezes conheci que a saudade dele não me desse repouso; nem o nele imaginar. Porque eu, em tanto viver de tempo, tinha negado em mim aquele amor, e a amizade desde agora estava amarga falseada; e o amor, e a pessoa dela, mesma, ela tinha me negado.
Para que eu ia conseguir viver? Mas o amor de minha Otacília também se aumentava, aos berços primeiro, esboço de devagar.
Era.
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Passado esse tempo, conforme foi, pouca tardança.
Mas, então, quando se estava de volta, m’embora vindo, peguei uma inesperada informação, na Barra do Abaeté. De Zé Bebelo! Tinha mesmo de ser. Não sei por que foi, que com aquilo me renasci. Que Zé Bebelo estava demorando léguas para cima, perto do São Gonçalo do Abaeté, no Porto-Passarinho. Me fiz para lá. E como era, que, antes e antes, eu não tivesse pensado em Zé Bebelo? Trote tocamos, viemos, beirando aquele rio. O
senhor sabe – o rio Abaeté, que é entristecedor audaz de belo: largo tanto, de morro a morro. E em minha vida eu já pensava.
Zé Bebelo gritou: – “Safa! Safas!...” – e me abraçou como amigo cordial, contente de muito me ver, constante se nada tivesse destruído o nosso costume. Conto que estava o mesmo, aposto e condizente.
– “Tudo viva!, Riobaldo, Tatarana, Professor...” – ele concisou. – “Tu quis paz?”
Sagaz assim me olhava, chega me cheirar só faltasse, de tornados a encontrar no curral, como boi a boi. Disse que eu estava feliz, mas emagrecido, e que encovava mais os olhos.
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas
– “Estais p’ra trás... Sabe? Negociei um gado... Mudei meus termos! A ganhar o muito dinheiro – é o que vale... Pó d’ouro em pó...” – o que ele me disse.
E era a pura mentira. Mas podia ser verdade.
Porque ele, para se viver, carecia daquela bazófia, forte mestreava. Como logo me pregou:
– “Há-te! Acabou com o Hermógenes? A bem. Tu foi o meu discípulo... Foi não foi?”
Deixei: ele dizer, como essas glórias não me invocavam.
Mas, então, ele não me entendendo, esbarrou e se pôs. Cujo:
– “A bom, eu não te ensinei; mas bem te aprendi a saber certa a vida...” Eu ri, de nós dois.
Três dias falhei com ele, lá, no Porto-Passarinho.
E Zé Bebelo corrigiu, para eu ouvir, os projetos que tinha.
Aí, ai, fanfarrices. Não queria saber do sertão, agora ia para capital, grande cidade. Mover com comércio, estudar para advogado. – “Lá eu quero deduzir meus feitos em jornal, com retratos... A gente descreve as passagens de nossas guerras, fama devida...” – “Da minha, não senhor!” – eu fechei. Distrair gente
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas com o meu nome... Então ele desconversou. Mas, naqueles três dias, não descansou de querer me aliviar, e de formar outros planejamentos para encaminhar minha vida. Nem indenizar completa a minha dor maior ele não pudesse. Só que Zé Bebelo não era homem de não prosseguir. Do que a Deus dou graças!
Porque, por fim, ele exigiu minha atenção toda, e disse:
– “Riobaldo, eu sei a amizade de que agora tu precisa. Vai lá. Mas, me promete: não adia, não desdenha! Daqui, e reto, tu sai e vai lá. Diz que é de minha parte... Ele é diverso de todo o mundo.”
Mesmo escreveu um bilhete, que eu levasse. Ao quando despedi, e ele me abraçou, senti o afeto em ser de pensar. Será que ainda tinha aquele apito, na algibeira? E gritou: – “Safas!” –; maximé.
Tinha de ser Zé Bebelo, para isso. Só Zé Bebelo, mesmo, para meu destino começar de salvar. Porque o bilhete era para o Compadre meu Quelemém de Góis, na Jijujã – Vereda do Buriti Pardo. Mais digo? O senhor vá lá. No tempo de maio, quando o algodão lãla. Tudo o branquinho. Algodão é o que ele mais planta, de todas as modernas qualidades: o rasga-letras, bibol, e
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas mussulim. O senhor vai ver pessoa de tal rareza, como perto dele todo-o-mundo pára sossegado, e sorridente, bondoso... Até com o Vupes lá topei.