– porque de noite tinha caído uma bruega. Bebi café, comi um naco de carne gorda, repassada na farinha, mastiguei um taco de rapadura. Enquanto vi, meu pessoal discorria na mesma disposição, influentes como antes. Tornamos para o ponto demonstrado de espera, cada um caçando seu atrincheirado.
Chegou o Cavalcânti, vindo do Cererê-Velho, com recado: nenhumas novidades. Para o Cererê-Velho recambiei aviso: nenhumas novidades, minhas também. O que positivo era, e do que os meus vigiadores do rededor davam confirmação. Antes, mesmo, por mais, que eu quisesse ficar prevenido, o dia era de paz. Todos percebessem. Era uma paz gritável. – Será que não vão vir? – algum maldisse, no rifle se escorando. Vez vendo, duvidei.
Chegou a me dar desânimo, fato que não viessem – e a gente ter de adiar fim, recomeço, rodando por esse mundo a fora em vã caçada. – Ah, não! – retemperei. Homem nenhum podia deixar a mulher sojugada presa em mão de outros, e demorar desistido de ataque. Vinha que vinha, mais hora menos hora. Todos esperassem. E eu mesmo de todas minhas armas não larguei, quando
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas desci para momento de lavar o corpo no rio. Que tão perto era.
E, de lá, todo movimento dos meus eu avistava.
Duvido? Desavistei foi na mente, não foi dos olhos. Como que o avio de descangar as armas de sobre mim e as cartucheiras, e o vagar de tirar a roupa e remolhar os pulsos, e fazer menção para entrar na água com conforto – essas ações tiravam conta do meu estar, como um alívio de sossego. Eu tinha a certeza de paz, por horas. E o demo me disse? Disse; mas foi assim: tiros!
Choque que levei – foi feito um trovão. Começou a se bradar.
Os gritos, tiros. Que foi, mesmo, que eu primeiro ouvi?
Primeiro, dum pulo bruto, eu já estava lá, pegando minhas roupas, armado prestes. E vi o mundo fantasmo. A minha gente
– bramando e avisando, e descarregando: e também se desabalando de lá, xamenxame de abelhas bravas. Mas, por quê?
– eu desentendi; e tornei a entender, depressa demais: que o inimigo dera de se estourar, todo de-repentemente, da banda outra, lugar donde não devia de vir, nem ali possível de ser esperado.
Eles eram quantidade. Cru e cru que avançavam, avançando, como que já iam tomar o Paredão, as casas na ponta do arraial.
Estarreci. Que, na prema da minha ausência, o muito mundo se
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas acabava. Tudo diferente da cartada. E eu sei o que é estupor: que eu tinha pegado calça e camisa em mão, e esbarrei, num demorado sem termo, no meio de me revestir, e eu num latejo frouxo pensando: – Não chego em tempo... Não adianta... Não chego em tempo nenhum...
Sei lá o tanto que isso durou? E eu via o meu pessoal avançar também, com brabura e diligência, na outra ponta, a modo de impedir que o arraial fosse tomado... Porque o Paredão era uma rua só; e aquilo ficou de enfiada – um cano de balas.
Mas, no mesmo ar de ar em que eu via aquilo, lavorei pensando: que eu era tonto, e burro, e idiota as mil vezes, porque agora estava perdida irremediavelmente minha ocasião, e a guerra descambava, fora do meu poder... E eu acabei de me enroupar, mal mal, e escutava essas vozes: – Tu não vai lá, tu é doido? Não adianta... Não vai, e deixa que eles mesmos uns e outros resolvam, porque agora eles começaram tudo errado e diferente, sem perfeição nenhuma, e tu não tem mais nada com isso, por causa que eles estragaram a guerra... Assim ouvi, sussurro muito suave, vozinha mentindo de muito amiga minha. O meu medo? Não. Ah, não.
Mas meus pêlos crescendo em todo o corpo. Mas essa horrorizância. Daquela doçura nojenta de voz. E senti meu corpo muito grande. Me xinguei. Um sujeito vinha correndo, nele eu
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas quase atirei. Desertor? Ah, não, esse o Sidurino era, correndo por um cavalo. Ah – e bem fosse! – ia voltear para o Cererê-Velho, chamar, trazer reforço, para darem retaguarda. E eu casei com meu rifle, vim, vim, vim. Desconheci temor nenhum. Vivo em vida, me ajuntei com os companheiros. Meus homens! – dei ordens. As balas estralejavam.
Foi fogo posto. Arrasar que vem de para onde não se olha: feito forte sol; e vem como sol nascendo! Rachavam lascas, espatifavam. Aí podiam descascar os arvoredos de uma dessas, floresta toda inteira... Apraz que os ares!
Ah esses meus jagunços – apragatados pebas – formavam trincheira em chão e em tudo. Eles sabiam a guerra, por si, feito já tivessem sabido, na mãe e no pai. Só se aos uivos urros, se zurrava. Aí – como tomei chegada e peguei postura. Valia ver –
comandar? Gritei: – “Chagas de Cristo!...” Os meus davam ainda outros gritos. A carabina, em mãos, coisa mexedora. A gente disparava dentro dos quintais, avançávamos. E de detrás das casas. E guardávamos o emboque da rua. Diz que lê?; diz-que escreve! Tiro ali era máquina. Aos tantos, juntos, relando – cinco deles, cinco dedos, cinco mãos. A gente tinha de caber em buracos escavacados. A cabeça da gente é que dá voltas, mesmo
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas no esconderijo, como para se desviar. Mas não se tem medo a gasto. Eu dizia: fré! – e botava bililica na agulha. – Amanso! Eu queria que Diadorim não se descuidasse. Diadorim disse: –
“Toma cautela, Riobaldo...” Diadorim se descabelou, bonitamente, o rosto dele se principiava dos olhos. Eu comandava? Um comanda é com o hoje, não é com o ontem. Aí eu era Urutu-Branco: mas tinha de ser o cerzidor, Tatarana, o que em ponto melhor alvejava. Medo não me conheceu, vaca! Carabina. Quem mirou em mim e eu nele, e escapou: milagre; e eu não ter morrido: milagremente. A morte de cada um já está em edital. Dia de minha sorte. O que digo e desdigo; o senhor escute. Mas o inimigo fuzuavatiroteio total.
Tudo ali era à maldição, as sementes de matar. De ouvir o renje uimuim dessas, perto de nossos cabelos – eles sobem, de si
–; e chega a doer de nervoso: mas dói real, como se umas daquelas atravessassem até buracal do olho da gente, mas feito dor que vara do céu-da-boca, por dentro dos ossos, pontudamente, igual quando às vezes se come sorvete de gelo...
Era a cara pura da morte. – Av’ave! Marcelino Pampa, logo esse.
Nem olhou ninguém. Curvou o corpo quase se quebrando em dois, ia encostar testa no chão; e largou tudo, espaireceu as mãos, e bofou da boca diversos dois feixes de sangue. Sangue dele.
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Semelhava que um boi nele tivesse pisado... E eu desfechei dez, para a frente, vingando fosse. Daí, vigiei. Um homem morre mais que vive, sem susto de instantaneamente, e está ainda com re-mela nos olhos, ranho moco no nariz, cuspes na boca, e obra e urina e restos de de-comer, nas barrigas... Mas Marcelino Pampa era ouro, merecia lágrimas dalguma mulher perto, mão tremente que lhe fechasse bem os olhos. Porque não se vê outro assim, com tão legítimo valor, capaz de ser e valer, sem querer parecer.
E uma vela acesa, uma que fosse, ali ao pé, a fim de que o fogo alumiar a primeira indicação para a alma dele – que se diz que o fogo somente é que vige das duas bandas da morte: da de lá, e da de cá... E eu peguei puxei o corpo para não ficar em cima dum vestígio de lama – porque ali de noite tinha chovido; e Diadorim panhou o chapéude-couro, com qual tapou o rosto do dono. A paz no Céu ainda hoje-emdia, para esse companheiro, Marcelino Pampa, que de certo dava para grande homem-de-bem, caso se tivesse nascido em grande cidade. Ah pápá! falei fogo. Aquilo em volta se arrebentava, balalhava.
Mas a gente tinha conseguido de firmar possessão –
agarramos mais da metade do arraial, do arruado. O sobrado restou nosso. Com anseio, olhei, para muito ver, o sobrado rico, da banda da mão direita da rua, com suas portas e janelas
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas pintadas de azul, tão bem esquadriadas. Aquela era a residência alta do Paredão, soberana das outras. Dentro dela estava sobre-guardada a Mulher, de custódia. E o menino Guirigó e o cego Borromeu, a salvos. Da parte de cima, das janelas, e das portas, no rés, vez a vez meus homens descarregavam. Aquele sobrado, sobradão, parava lá, sobre sereno – me prazia tudo comandando.
Ir lá?
– “Atual, em riba, estão dois: um é o José Gervásio.