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– o Quipes disse, conhecedor alertamente. Alguma onça, à espera de lua. Otacília a tudo estava exposta, por culpa de maus conselhos. – O seô Habão entregou a ela a pedra de ametista... – eu falei. Alto falei; e não queria que o Alaripe ressoasse: “... entregou a ela a pedra...” Isto é: a pedra era de topázio! – só no bocal da idéia de contar é que erro e troco – o confuso assim. Diadorim sofria mais de tudo, quem sabe, por conta da dádiva daquela pedra. Otacília não devia de ter vindo. Eu... Essas andanças!

Agora, aonde era que se ia encontrar viajor, ou aquele beida-mãe de vaqueiro, para obrigar a definir notícia? Mas o vaqueiro aquele não teria o certo pouso. Só atrás de seu gado urucuiano. Todo o mundo se fugia, do Paredão e de toda parte, suas trouxas nas costas. A quando se divisou um foguinho adiante no campo, seja que pensei: gente arranchada no ar, em caminho para lugar nenhum... Não era. Somente foguinhozinho avoável assim azulmente, que em leve vento se espalhava: fogo-fá, jan-dla-foz.

O que não se achava, o que eu pensava. Eu era diferente de todos? Era. Susto disso – como me divulguei. Alaripe, o Quipes, mesmo o calado deles, sem visagens, devia de ser diverso do

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas meu, com menos pensamentos. Era? Sei que eles deviam de sentir por outra forma o aperto dos cheiros do cerradão, ouvir desparelhos comigo o comprido ir de tantos mil grilos campais.

Isso me dava ojeriza, mas também com certo consolo –

misturado. Como quando viajando assim, no escuro da noite, a idéia da gente cheia de atormentamentos, e de repente o cavalo bufa, batendo o vulto da cabeça branquenta, e chamando atenção para o cheiro do suor dele, que vale por uma persistência, com paciência de responsabilidade... Aquela noite estava podendo mais do que a minha decisão? Soubesse não sei. Noite lembrada em mim, de sereno a orvalho.

Revi madrugar, quando esbarramos, na beira duma vereda pagã, por repouso. Aurora: é o sol assurgente – e os passarinhos arrozeiros. Cá o céu tomou as tintas. Aí retoquei muita lembrança madraça, como se estivesse no antigamente. Fez falta foi um café; mas comemos farofa, bebemos gole d’água. O

Quipes apanhou araticum maduro, ele vivia cuidando de achar as frutas em árvores e moitas. E Àlaripe ajuntou gravetos e acendeu um fogo; só por calor e costume, só, que não se tinha o que quentar nem assar. Medito como aos poucos e poucos um passarinho maior ia cantando esperto e chamando outros e outros, para a lida deles, que se semelha trabalho. Me passavam

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas inveja, de como devia de ser o ninho que fizessem-tão reduzido em artinha, mas modo mandado cabido, com o aos-fins-e-fatos.

E o que pensei: que aquela água de vereda sempre tinha permanecido ali, permeio às touças de sassafrás e os buritis dos ventos – e eu, em esse dia, só em esse dia, justo, tinha carecido de vir lá, para avistar com eles; por que que era? Bobéia... Eu estava cansado, com uma dor na ilharga.

Por desenfastiar, conversei. – A veja, Alaripe: que nome será que esta vereda havia de ter, o que merecesse denominado? Alaripe, agachado ali mesmo, se virou para mim, esbarrando de assoprar o fogo: – Figuro que ela algum nome já tem, só que não se saiba. A modo que, pegando algum morador de por perto, se indaga... – ele melhor me respondeu. Mas eu contradisse que não se precisava.

Forrei chão, para um cochilo. De qualquer jeito, a paragem ali tinha de ter demora, carecia de se dar um lombo aos cavalos.

Para o que o dia ia ser, eles requeriam um descanso, e pastar; cavalo são desdenha de dormir, o senhor sabe: bicho que só come, come, come. O sono me conseguiu. Ferrei em mais de umas duas horas.

Por que tudo refiro ao senhor, de tantas passagens? Ah, pelo que quando acordei, retenha o seguinte. Acordei sentido e

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas mal à parte. Amargava. Devia de ir ter cólicas. As ânsias essas, mesmo com outro cansaço. Feito sem repouso nenhum, daquelas horas. Assim: eu sem segurança nenhuma, só as dúvidas, e nem soubesse o que tinha de fazer. Acordei foi com o vozeio de Alaripe e o Quipes, que já esperavam por mim, e estavam naquela pauteação trivial deles, coisas sem nenhum fundamento. Depois, Alaripe tirou da capanga um vidro que tinha cachaça dentro, me ofereceu o primeiro gole. Era um vidro meão, claro, feito remédio de frasco. Com alívio, tomei. Mas era um alívio mesmo assim triste, e eu descri; eu quis discorrer qualquer noção. – O que é que tu acha do que acha, Alaripe? Ele não me conheceu: principiou a definir o Paredão, do CererêVelho, do Hermógenes. Atalhei: – que não isso; que da vida, vagada em si, no resumo? – A pois, isto... Homem, sei? Como que já vivi tanto, grossamente, que degastei a capacidade de querer me entender em coisa nenhuma... Ele disse, disse bem. Mas eu entiquei:

– Não podendo entender a razão da vida, é só assim que se pode ser vero bom jagunço... Alaripe esbarrou, como ia quebrar em duas uma palma seca de buritirana. Me olhou, me falou: – Se só de entender, é comigo, eu entendo. Entendo as coisas e as pessoas...

Respondeu, disse bem. De mim, então, entendia? Desjuízo, que me veio. Eu ia formar, em roda, ali mesmo, com o Alaripe e o

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Quipes, relatar a eles dois todo tintim de minha vida, cada desarte de pensamento e sentimento meu, cada caso mais ignorável: ventos e tardes. Eu narrava tudo, eles tinham de prestar atenção em me ouvir. Daí, ah, de rifle na mão, eu mandava, eu impunha: eles tinham de baixar meu julgamento... Fosse bom, fosse ruim, meu julgamento era. Assim. Desde depois, eu me estava: rogava para a minha vida um remir – da outra banda de um outro sossego...

Pensei; quase disse. Aquilo durou o de um pingo no ar. Eu havia de? Ah, não, meu senhor. Deu um momento, me tirou disso; e tanto bastou. Doidice, tontura de espírito... – eu repensei, reposto em pé. Xô! O ypsilone dum jegue eu era – zote, do que arrenego, cabeça orelhalmente? Ali eu era era o Chefe, estava para reger e sentenciar: eu era quem passava julgamentos! Então, falei:

– “Vão sozinhos, vocês dois, beira-rio, procurando. Eu não posso ir mais, por meu dever. Retorno, já, para o Paredão...”

Alaripe ainda cruzcruzou: – “A gente – pode ser que lá a gente faz falta...

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Mas eu fechei. Sendo o que eu mesmo não podia, ao menos esses eu mandava. Fossem, já fossem. Eles tinham de encontrar a minha Otacília, a ela render boa proteção. Amontamos, os três.

Ainda esperei a saída deles.

Até me lembro de que, escabreado, na hora de saudar e tocar, Alaripe ainda apontou para a linha de mato, vereda-acima, achando: – Como que avisto, por detrás d’árvores, passar a marcha dum cavaleiro... Não era. Não era, porque o Quipes não viu, conforme confirmou que não viu; e o Quipes tinha olho de gavião-grande. Aí, pensei: será, o Alaripe estava sendo um homem se envelhecendo? Amigo meu – e meu estranho. Até me lembro, pensei assim.

Retornei, enquanto eles dois iam para a outra banda. Agora eu mudava, para motivos: chega estremeci de influência, aos aos-ares de guerra. Deixei de parte a cisma, do mesmo jeito com que, ainda fazia pouquinho, eu tinha afrouxado ânimo; ah, a gente larga urgente o real desses estados. Agora minha alegria era mais minha, por outro destino. Otacília ia ter boa guarda. E então, por uma vez, eu peguei o pensamento em Diadorim, com certo susto, na liberdade. Constante o que relembrei: Diadorim, no CererêVelho, no meio da chuva – ele igual como sempre, como

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas antes, no seco do inverno-de-frio. A chuva água se lambia a brilhos, tão tanto riachos abaixo, escorrendo no gibão de couro.

Só esses pressentimentos, sozinho eu senti. O sertão se abalava?

Desfechei. Naquela corrida, meu cavalo teve as dez pernas.

E cheguei no Paredão, na derradeira boa-luz da tarde.

Diadorim, me esperava, demais. Ainda vi a alegria no rosto dele.

O Paredão. O senhor ponha. Como esvoaça mosca gorda, de donde se matou boi. Tudo estava perfeito tranqüilo. Diadorim

– com chapéu xíspeto, alteado. Nele o nenhum negar: no firme do nuto, nas curvas da boca, em o rir dos olhos, na fina cintura; e em peito a torta-cruz das cartucheiras. Os mais, zelando nas armas, corriam os dedos, apalpavam por afago. Conversei com todos. Aqui a guerra – que queriam guerra. Assim os meus catrumanos: quais as caras deles iam ficando de demônios; mais feio no demônio é o nariz e os beiços...

Conferi as sentinelas. Fui ver onde tinham botado a Mulher

– ela fechada num quarto, no sobrado. Ficasse remetida lá, sobpé de guarda. O sobrado marcava o meio quase da rua. Mas, para a gente em armas, de que é que valia aquele arraial inteiro, tão

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