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Eu estendi as mãos para tocar naquele corpo, e estremeci, retirando as mãos para trás, incendiável: abaixei meus olhos. E a Mulher estendeu a toalha, recobrindo as partes. Mas aqueles olhos eu beijei, e as faces, a boca. Adivinhava os cabelos.

Cabelos que cortou com tesoura de prata... Cabelos que, no só ser, haviam de dar para baixo da cintura... E eu não sabia por que nome chamar; eu exclamei me doendo:

– “Meu amor!...”

Foi assim. Eu tinha me debruçado na janela, para poder não presenciar o mundo.

A Mulher lavou o corpo, que revestiu com a melhor peça de roupa que ela tirou da trouxa dela mesma. No peito, entre as mãos postas, ainda depositou o cordão com o escapulário que tinha sido meu, e um rosário, de coquinhos de ouricuri e contas de lágrimas-de-nossa-senhora. Só faltou – ah! – a pedra-de-ametista, tanto trazida... O Quipes veio, com as velas, que acendemos em quadral. Essas coisas se passavam perto de mim.

Como tinham ido abrir a cova, cristamente. Pelo repugnar e

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas revoltar, primeiro eu quis: – “Enterrem separado dos outros, num aliso de vereda, adonde ninguém ache, nunca se saiba...”

Tal que disse, doidava. Recaí no marcar do sofrer. Em real me vi, que com a Mulher junto abraçado, nós dois chorávamos extenso. E todos meus jagunços decididos choravam. Daí, fomos, e em sepultura deixamos, no cemitério do Paredão enterrada, em campo do sertão.

Ela tinha amor em mim.

E aquela era a hora do mais tarde. O céu vem abaixando.

Narrei ao senhor. No que narrei, o senhor talvez até ache mais do que eu, a minha verdade. Fim que foi.

Aqui a estória se acabou. Aqui, a estória acabada. Aqui a estória acaba.

Resoluto saí de lá, em galope, doidável. Mas, antes, reparti o dinheiro, que tinha, retirei o cinturão-cartucheiras – aí ultimei o jagunço Riobaldo! Disse adeus para todos, sempremente. Ao que eu ia levar comigo era só o menino, o cego, e os dos catrumanos vivos sobrados: esses eu carecia de repor de volta, na terra deles, nos lugares. E, a Mulher, também dela me despedi, há-de ver que esturdiamente, sem continuação de

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas continuação. Ainda encomendei a João Curiol, que era um baiano bom, na palavra e no caráter, que providenciasse o retorno daquela, para onde quisesse ir outra vez.

Desapoderei.

Aonde ia, eu retinha bem, mesmo na doidagem. A um lugar só: às Veredas-Mortas... De volta, de volta. Como se, tudo revendo, refazendo, eu pudesse receber outra vez o que não tinha tido, repor Diadorim em vida? O que eu pensei, o pobre de mim. Eu queria me abraçar com uma serrania? Mas, nessa parte, de muito mal me lembro, pelo revés em minha saúde. Ao que eu ia, de repente, me vinha um assombramento de espírito, muita vez tonteei, de ter de me segurar, de cair; e, depois, durante muitos espaços, eu restava esquecido de tudo, de quem eu era, de meu nome. Mas o Alaripe, Pacamã-de-Presas, o Quipes, o Triol, Jesualdo, o Acauã, João Concliz, e o Paspe, me cuidavam; esses tinham, por toda a lei, forçado de me acompanharem, vinham comigo; e o Fafafa, mais João Nonato e Compadre Ciril, que vieram depois. Amigos meus. Aí eu vinha.

Chapadão. Morreu o mar, que foi.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Eu vim. Pelejei. Ao deusdar. Como é que eu sabia destornar contra a minha tristeza? O dito, vim, consoante traçado. Num lugar, o Tuim, me alembro: eu tive de mudar para outro cavalo. E um sitiante, no Lambe-Mel, explicou – que o trecho, dos marimbus, aonde íamos, se chamava mais certo não era Veredas-Mortas, mas Veredas-Altas... Coisa que compadre meu Quelemém mais tarde me confirmou. Daí, mais para adiante, dei para tremer com uma febre. Terçã. Mas o sentido do tempo o senhor entende, resenha duma viagem. Cantar que o senhor fosse. De ai, de mim. Namorei uma palmeira, na quadra do entardecer...

Na morna, baqueei, não podendo mais. Me levaram, por primeiro, de revexo. Depois me botaram para dentro duma casa muito pobre. Desembestei doente. Por último, como perdi meu conhecimento, estavam me deitando num catre.

Que foi febre-tifo, se diz, mas trelada com sezão, mas sezão forte especial – nas altíssimas! Que a febre que eu tinha era tamanha tanta, como nunca se viu – o Alaripe depois me disse ; que no decorrer dos acessos eu tresvariava. Do que, no ouvir contado, recordei a estória dum fazendeiro, o mais maldoso, que o demônio por fim salteou, por suas ruindades: e

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas que, endemoninhado, no quarto de sua casa, uivando lobum, suplicava alivio do calorão, e carecia mesmo que os escravos despejassem nele latas e baldes d’água, ao constantemente, até para evitar que, de tudo devorante tão quente, não viesse e desse de pegar fogo no cômodo, de incêndios... Doidice. Em dança de demônios, que nem não existem. Pois, então, só a doença não bastasse? O tempo que fiquei, deslembrado, detido. O quanto foi? Mas, quando dei acordo de mim, sarando e conferindo o juízo, a luz sem sol, mire e veja, meu senhor, que eu não estava mais no asilo daquela casinha pobre, mas em outra, numa grande fazenda, para onde sem eu saber tinham me levado.

Eu estava na Barbaranha, no Pé-da-Pedra, hóspede de seo Josafá Ornelas. Tomei caldo-de-galinha, deitado em lençóis alvos, recostado. E já parava meio longe aquele pesar, que me quebrantava. Lembro de todos, do dia, da hora. A primeira coisa que eu queria ver, e que me deu prazer, foi a marca dos tempos, numa folhinha de parede. Sosseguei de meu ser. Era feito eu me esperasse debaixo de uma árvore tão fresca. Só que uma coisa, a alguma coisa, faltava em mim. Eu estava um saco cheio de pedras.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Mas aquele seo Ornelas era homem de muita bondade, muita honra. Ele me tratou com categoria, fui príncipe naquela casa. Todos – a senhora dele, as filhas, as parentas – me cuidavam. Mas o que mormente me fortaleceu, foi o repetido saber que eles pelo sincero me prezavam, como talentoso homem-de-bem, e louvavam meus feitos: eu tivesse vindo, corajoso, para derrubar o Hermógenes e limpar estes Gerais da jagunçagem. Fui indo melhor.

Até que, um dia, eu estava repousando, no claro estar, em rede de algodão rendada. Alegria me espertou, um pressentimento. Quando eu olhei, vinha vindo uma moça.

Otacília.

Meu coração rebateu, estava dizendo que o velho era sempre novo. Afirmo ao senhor, minha Otacília ainda se orçava mais linda, me saudou com o salvável carinho, adianto de amor.

Ela tinha vindo com a mãe. E a mãe dela, os parentes, todos se praziam, me davam Otacília, como minha pretendida.

Mas eu disse tudo. Declarei muito verdadeiro e grande o amor que eu tinha a ela; mas que, por destino anterior, outro amor, necessário também, fazia pouco eu tinha perdido. O que confessei. E eu, para nojo e emenda, carecia de uns tempos.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Otacília me entendeu, aprovou o que eu quisesse. Uns dias ela ainda passou lá, me pagando companhia, formosamente.

Ela tinha certeza de que eu ia retornar à Santa Catarina, renovar; e trajar terno de sarjão, flor no peito, sendo o da festa de casamento. Eu fui, com o coração feliz, por Otacília eu estava apaixonado. Conforme me casei, não podia ter feito coisa melhor, como até hoje ela é minha muito companheira – o senhor conhece, o senhor sabe. Mas isto foi tantos meses depois, quando deu o verde nos campos.

Eu já estava de todo bom, firme para as arremessadas, quando ali na Barbaranha se surgiu para mim igualmente a visita de seô Habão – ele com o seo Ornelas se tivessem entre tempos pacificado. Homem baseado. Demonstrou que tinha muita satisfação em me ver, assim como para mim vinha trazendo outro cavalo de presente – o qual era ruço-rodado, ordem de valor e estampa. Ali agraciado aceitei, meu sinceramente. Mas ele portava causa maior – a que tinha ido confirmar e saber, e agenciar, por seus bons préstimos. E era que meu padrinho Selorico Mendes acabara falecido, me abençoando e se honrando, orgulhoso de meus atos; e as duas maiores fazendas ele tinha deixado para mim, em cédula de testamento. Seô Habão

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas queria logo me levar lá, no Curralim, no Corinto, para eu entrar em paz de posses. Rejeitei; adiei, isto é. Porquanto, de fato, fui, e tudo recebi em limpo, sem precisão de tocar demandas, por falta de outros mais legítimos herdeiros, e o que também devido dou ao advogado meu que zelou a sucessão – Dr. Meigo de Lima.

Só que isso foi mais tarde.

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