Zumba! levou não sei quantas esburacadoras, na tampa de suas costas... Ah, ali valia; donde que eu estava. Ao mesmo quando revingaram, com umas descargas, despejadas. Dei atrás, mas sobranceei, de talaia. Fazia bem duas horas que aquela batalha tinha principiado. Se estava no poder do meio-dia.
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas De graça berra é o boi, tirante a vaca. Dessa daquela vez, tudo não acabava sem um fim – ferrado que o Hermógenes não era cão de desmorder os dentes; e ele vinha de cinqüenta léguas!
Toada tinha de ter um prazo. E há um vero jeito de tudo se contar – uma vivença dessas? Os tiros, gritos, eco, baque boléu, urros nos tiros e coisas rebentáveis. Dava até silêncio. Pois porque variava, naquele compasso: que bater, papocar, lascar, estralar e trovejar – truxe – cerrando fogo; e daí marasmar, o calado de repente, ou vindo aos tantos se esmorecendo, de devagar. Tempo que me mediu. Tempo? Se as pessoas esbarrassem, para pensar – tem uma coisa! : eu vejo é o puro tempo vindo de baixo, quieto mole, como a enchente duma água... Tempo é a vida da morte: imperfeição. Bobices minhas –
o senhor em mim não medite. Mas, sobre uns assuntos assim, reponho, era que eu almejava ter perguntado a Diadorim, na véspera, de noite, conforme quando com ele passeei. Naquela hora, eu cismasse de perguntar a Diadorim:
– “Tu não acha que todo o mundo é doido? Que um só deixa de doido ser é em horas de sentir a completa coragem ou o amor? Ou em horas em que consegue rezar?”
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Não indaguei. Mas eu sabia que Diadorim havia de me dar resposta: – “Doca Ramiro não era doido nenhum, Riobaldo; e ele, mataram...” Então, eu podia, revia:
– “... Mas, porém, quando isto tudo findar, Diá, Di, então, quando eu casar, tu deve de vir viver em companhia com a gente, numa fazenda, em boa beira do Urucuia... O Urucuia, perto da barra, também tem belas troas de areia, e ilhas que forma, com verdes árvores debruçadas. E a lá se dão os pássaros: de todos os mesmos prazentes pássaros do Rio das Velhas, da saudade – jaburu e galinhol e garça-branca, a garça-rosada que repassa em extensos no ar, feito vestido de mulher...
E o manuelzinho-da-troa, que pisa e se desempenha tão catita –
o manuelzinho não é mesmo de todos o passarinho lindo de mais amor?...”
Podia ser? Impossivelmente.
Eu não tinha sido capaz de perguntar aqueles ensalmos a Diadorim, de fato só em coisa à-toa se conversou, trivial a respeito de munição e meus armamentos, e avio de guerra.
Véspera. As horas é que formam o longe. Mas, agora, ali, em ocasiões de morte, eu repisei; e, mesmo, amontado no momento, que era que eu ia dizer a Diadorim, se perto de mim
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas ele parasse? Hoje, não sei. Não soubesse, naqueles adiantes. Ali, por onde eu estava, eu marcava muito suave a mão da morte; feito um boiadeiro, que, em janela ou porta, ou tábua de curral ou parede de casa, por todas as partes por onde anda, carimba remarcada a amostra do ferro dele de seu gado, para se conhecer. Assim. Como lembro, que eu tinha uma dor-de-cabeça; era uma dor-de-cabeça forte, fincada num ai só, furante de verrumas. Agüentei. Devia de ser da sede.
Dá, deu: bala beija-florou. Zuos – ao que rachavam ombreiras das janelas, estraçalhavam, esfarelavam fasquia. Umas que caíam quase como colhidas, no assoalho do chão – tinham dançado de ricochete – e ficavam para lá, amolgadas, feito pedaço de cano, ou aveladas de maduras. Essas podiam se esfriar, de vagarinho. Perdiam sem valia aquele feio calor que, podia ter sido a vida de uma pessoa. O José Gervásio e o Araruta recuaram para o meio da sala, me recomendaram me acautelasse. Mas eu permaneci. Disse que não, não, não. Minhas duas mãos tinham tomado um tremer, que não era de medo fatal. Minhas pernas não tremiam. Mas os dedos se estremecitavam esfiapado, sacudindo, curvos, que eu tocasse sanfona. Aí, gritei: – “Estrumes!” Deram fuzilada. Fogo fechado, as cargas de pólvora e o despejar e assoviar – como o
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas vento ronda, no final das águas... Mesmo assim eu queria e visava, dali não saí, do vão aberto, não dando de meu poder.
Desfechei bem. Por mim, meu desprezo, como essas assoviantes deles varejavam... Eu não estava caçando a morte –
o senhor bem me entenda. Eu queria era a coragem maior.
Macho com meu fuzil reiúno, dei salvas. Tive fechado o corpo?
Quero que não; não pergunto. Não morri, e matei. E vi. Sem perigo de minha pessoa.
Aí, quando foi, monumental, peguei susto: lá embaixo, muito estava demudando. Só se fez que, inesperadamente, parte do povo do Hermógenes, que tantos eram – a rascorja! – tinham alcançado de rodear por trás da minha gente, na ponta da rua, tomando retaguarda. Iam vencer, fosse possível? Temi por todos.
Ah, não, que não regiam. D’ind’hoje, o amigo meu João Vaqueiro eu estou vendo: mais homem, mais moreno, arrenegando de todos os macacos, nem suor ele não desperdiçava... o que ele vestiu, vestiu, couro é... e vai embora, dando muito as costas... lá adiante, acometendo, contra outros outros... Morreu, que mataram. Em obra de umas cem braças.
Ah, não! Os nossos agüentavam o relance, arre disparando, a mastro de balas; foi um fogo...
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas E eu, hesitado nos meus pés, refiz fé: teve o instante, eu sabia meu dever de fazer. Descer para lá, me ajuntar com os meus, para ajudar? Não podia, não devia de; daí, conheci. Ali, um homem, um chefe, carecia de ficar – naquele meu lugar, no sobrado. Mas, resoluto, mandei ao Araruta e ao José Gervásio, que fossem, mas fossem! Eles mesmos queriam ir. Eles desceram a escada. Estado daquele fogo era um pipoco mal-acreditado.
Tudo não sendo guerra? – entendi. Um panelão na trempe, o que se cozinhava... Sobrestive. Surgindo o fim, eu restava desandado ao para trás, sozinho só, com os dois. O menino Guirigó – uma mão apertando as costas da outra, seguidos esses estremecimentos, repuxava a cara, mas com os beiços abertos em dor, tudo uma careta. Ele era um menino. E o cego Borromeu fechava os olhos.
Tive pena. Não ouvi nada; eu disse: – “Deveras?” Eu disse:
– “Vocês têm paciência, meus filhos. O mundo é meu, mas é demorado...” A arte que prometi: que, mais baque, mais retumbo, a gente ganhava: a gente ganhava... a gente ganhava! Antes bati uma palmada firme, no liso da minha coronha. A vitória! Ah – a vitória – eu no meio dela, que com os ventos arrastado...
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas E não era? Durou dali a meia-hora, nem bem, e vislumbrei outro alvoroço, mas da ponta da outra banda, e festivo para mim, me dando milagre. – Eli, do ar! Eh, dunga! Ao que era que tal era que: repentemente, o pessoal meu do Cererê-Velho, sequazes de João Goanhá suprachegavam também, enfrentando os Hermógenes pelas costas – davam a toda retaguarda! De alegre ser, destampei tiro sobre tiro. A guerra, agora, tinha ficado enorme.
O senhor supute: lado a lado, somando, derramavam de ser os trezentos e tantos – reinando ao estral de ser jagunços... Teria restado mais algum trabuco simples, nos Gerais? Não tinha. E ali era para se confirmar coragem contra coragem, à rasga de se destruir a toda munição. Dessa guisa enrolada: como que lavrar uma guerra de dentro e outra de fora, cada um cercado e cercando. Recompor aquilo, no final? Só com a vitória. Duvidei não. Nasci para ser. Esbarrando aquele momento, era eu, sobre vez, por todos, eu enorme, que era, o que mais alto se realçava. E conheci: oficio de destino meu, real, era o de não ter medo. Ter medo nenhum. Não tive! Não tivesse, e tudo se desmanchava delicado para distante de mim, pelo meu vencer: ilha em águas claras... Conheci. Enchi minha história. Até
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas que, nisso, alguém se riu de mim, como que escutei. O que era um riso escondido, tão exato em mim, como o meu mesmo, atabafado. Donde desconfiei. Não pensei no que não queria pensar; e certifiquei que isso era idéia falsa próxima; e, então, eu ia denunciar nome, dar a cita: ... Satanão! Sujo!... e dele disse somentes – S... – Sertão... Sertão...
Na meia-detença, ouvi um limpado de garganta. Virei para trás. Só era o cego Borromeu, que moveu os braços e as mãos; feio, feito negro que embala clavinote. Sem nem sei por que, mal que perguntei:
– “Você é o Sertão?!”
– “Ossenhor perfeitamém, ossenhor perfeitamém... Que sou é o cego Borromeu... Ossenhor meussenhor...” – ele retorquiu.
– “Voxe, uai! Não entendo...” – tartamelei.