bala batia e rebatia. Cortavam capim do chão, que riscavam com punhado de terra. Tch’avam partes de ramos da árvore por cima de mim, e vagens do angico, que então reconheci por isso. Como quieto fiquei. Eu não era o chefe? Mesmo que uma carga de rifle se passou em meu chapéu-de-couro-de-vaca, e que outra, zoante, em meu jaleco raspou. A mil, que não movi mão, mas dei desprezo. Mas, eu tivesse alargado braço e movido mão, para com tiros de meu revólver ripostar, e eu mal morto estava –
ponto que enquadrado de passantes balas, que rentes, até quentes. – Urutu Branco... – eu só relembrei, sussurrado ditoso, como quando com mocinha meiga se namora. Cachaças que em minha alegria. Em vento. E balas, mais, só; num enorme num minuto. Mas, bem: que, aluir dali, eu não aluía. Morresse – tive preguiça de pensar – mas, morresse, então morria três-em-pé, de valente: como o homem maior valente no mundo todo, e na hora mais alta de sua maior valentia! À fé, que foi. Dei em lagoa, de tão filho tranqüilo...
E, de arrepelo, tudo demudou. Aqueles torceram os cavalos, revertendo para se espraiarem por longe. Que era porque os de João Goanhá tinham se avindo de contornar, no cabo do
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas mato, e cometiam urrando o grosso do inimigo, por detrás. –
“Fu!.Fiau!” – que se diz. Que tínhamos de percalçar e de vencer.
E aqueles dianteiros Hermógenes, que tinham vindo, campavam fuga, de batida. E um, do cavalo preto, que bobeou, o Paspe, o Sesfredo e o Suzarte foram nele, galopando num embolo! –
reformaram feia nuvem. E o corpo dele, no retém, foi jogado morto, se tangeu duro no ar, ressaltou: feito uma tábua... Assim um outro, se desatinando – João Vaqueiro, apeado, acertou nele diversas vezes. Esse recurvou – tatu e tal. Ele veio cair, perto exato de mim, ferido muito grave, conforme gemia. – “Desarma, mas não acaba de matar, mano-velho...” – a João Vaqueiro eu disse. Aquele homem inimigo derrubado jeremiava, cris, querendo enterrar as unhas na casca dum pau. O queixume que ele exprimia: que tinham mesmo de perder, por terem vindo com os cavalos deles tão sovados, e avante em surpresa tão contrária...
De tudo se espiolhava, suave praguejante, aí com três costelas derrotadas. Mas, água, ele pedia, cristão. Sede é a situação que é uma só, mesmo, humana de todos. Rebaixei o corpo e dei nas mãos dele a minha cabaça, quase cheia, e que era boa como um cantil. Rústico, fechei os olhos, para não me abrandar com pena das desgraças. Nem não escutei; que ouvido também se fecha.
No cavalo, eu estava levantado. Campo que me competia
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas comandar, dito. Tudo em mim, minha coragem: minha pessoa, a sombra de meu corpo no chão, meu vulto. O que eu pensei forte, as mil vezes: que eu queria que se vencesse; e queria quieto: feito uma árvore de toda altura!
Tiroteio fechava.
E o pessoal de Marcelino Pampa apareceu também, surgindo, para maior mal dos Hermógenes. Matamos neles.
Pegamos pelos lados. Confiro o que foi. O senhor – só se ouvia era carabina, repetindo. Fogo do Tamanduá-tão: o senhor saiba.
E, pá!, ainda no pior do meio, eu adivinhei sabendo: que meu comando tinha dado certo, e que dali a vau tudo estava já ganho, desfecho do fim desse final. Somente para colher o maduro, eu podia sobreviver. Sei que risquei – joguei de galope, em cima. Ao que vim, aonde que tudo se estardalhava. Dei gritos. Arte que abria no rifle; e matava. Donde era que estava o Hermógenes? A uivos, atrás duns, rompemos em linha na vereda. Todo buriti levou bala.
A mais, o inimigo não tinha o recurso de se apostar – por tanto que perdiam os cavalos. Advindo que o baixadão dali não dava esconderijos de mato para tocaia à jagunça. E os poucos foram os que pegar as distantes brenhas conseguiam, ou o cheio
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas do capinzal, aonde não íamos desentocar ninguém. Aqueles deviam de estar de faca em fúria na mão, cobrejando; somente por meio de cachorros-mestres, afirmados em caça de gente, era que podiam ser pegos, o que não se tinha. Os mais, em desrédea, meteram doida fuga, enquanto mal pudessem, de debaixo de balaços. Menos de poucos passaram. Ao rascampo em viemos, soprando a perseguição. Tinha um valo, varamos um mato de lobeiras. Aí era para a banda das roças novas. Uns morrinhos; demos fogo. Uma tapera, outra tapera. Demos fogo. Poucos dos poucos deles escaparam. Os que desladeavam, caíam, por nossos esteiras. Era um relanço bem fatal...
Mas, um homem grande – que como pulou abaixo do cavalo grande, que baleado fora – alcançou jeito de correr, e encontrou uma cafua, em frente. Entrou. De lá, decerto, ia mandar bala. E então nós, a gente, todos, desistindo de mais longe perseguir os sobrantes, cercamos por completo aquela choupana, de regular distância, caçando jeito de entrincheiramen-to. Ia ser o terrível. Que quem era, aquele homem? – “Ah, o Ricardão!” – se gritava. E eu mesmo sabia. Determinei uma descarga. Cafua de buriti, que estremeceu, como que se entortando de lugar, arreganhada em partes. A gente atirando, atirando, com pouco ela ia desaparecer, desmanchada. Mas eu dei
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas ordem de paz. – “E adonde estará o Hermógenes, próprio?” – eu indaguei. Alguém soubesse. De se ter ouvido algum deles, ferido ou agarrado preso: que o Hermógenes não fazia parte atual daquele bando – mais acontecia de andar, com outros, muito adiantado dali, vinte léguas, avanço no poente. Mas, então? E
quase nossa gente toda já estava vinda, para apreciarem o derradeiro aprumo do Ricardão. Eu dei comando.
- “Seô Ricardão, o senhor saia para fora!” – eu gritei, do protegido donde estava.
Ele não deu resposta. Daí: – “Pau de fogo, minha gente!”
– eu procedi. Pipocaram. Durante o que, a cafua começava nas últimas. Mas de dentro ninguém não ripostou; nem um tiro, nem. Ele estivesse morto? Não tinha munição? Esperei o engolir em seco três vezes. Daí, regritei: – “Seô Ricardão, o senhor se saia!...” E ele, no esquisito, respondeu: – “Vou sair!” –
com um grito natural. Enérgico, para o meu povo, eu ordenei muita paz. E o todo silêncio. Espiei.
Lá acolá, o homem abriu devagar os cacos de porta. Saiu, deu uns passos. Como vinha, alto, chapéu na cabeça, até meio sorridente. Não se esbugalhava. Assim estivesse pensando que ia ter julgamento? Achei que. E ele não estava ferido. Caminhou
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas mais. Sendo que – e, aí, foi minha idéia? – ah, não; mas vi que Diadorim, de ódio, ia pular nele, puxar faca. Só fiz fim: num tirte-guarte: atirei, só um tiro. O Ricardão arriou os braços, deu o meio do corpo, em bala varado. Como no cair, jogou uma sua perna para lá e para lá. Como caiu, se deitou. Se deitou, conforme quase não estivesse sabendo que morria; mas nós estávamos vendo que ele já morto já estava.
Acho deveras que todo o mundo respirou com suspiro.
Digo que esta minha mão direita, quase por si, era que tinha atirado. Segundo sei, ele devolveu Adão à lama. Só estas minhas artes de dizer – as fantasias...
– “Não enterrem este homem!” – eu disse.
A justiça. Mas, mesmo, como é que se ia poder enterrar a quantidade deles, mortos naquele dia?
Ao quando retornávamos para a Serra, eu ia olhava o céu, vez em quando. Primeiro urubu que passou – foi vindo dos lados do Sungado-do-A – esse se serenou bem, que me parecia uma amizade de aceno. Avoeje... Mas – o que ia suceder por diante!
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Somenos sei, e conto mal certo, o que os três dias foram, no seguinte. Se soalerte o senhor, que estamos descambando: o senhor mesmo se prepare; que para fim terrível, terrivelmente.
Eu podia? Como é que vou saber se é com alegria ou lágrimas que eu lá estou encaixado morando, no futuro?
Homem anda como anta: viver vida. Anta é o bicho mais boçal... E eu, soberbo exato, de minha vitória! Conforme prazia o dito do cego Borromeu, que não se entristecia: – “Ah, eu nunca botei em antes o nariz nestes campos...” Soscrevo. Mas, ele, o que carecia de querer saber, às vezes perguntava. Desses lugares, o divulgado natural, pedia pergunta. Aí, glosava: Macambira das estrelas,
quem te deu tantos espinhos?