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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Mas eu sabia que era o minuto e não era a hora. E o do embornal com os cajus, sendo um João Nonato, diamantinense, decidido agradável me disse: – “Hoje, Chefe, depois que se ganhar, com o bom gol se festeja?” Oi, sim. E de repente eu disse dizer: – “Tu, menino, meu filho, tu vem adiante, mano-velho: emparelhado comigo... Tu me dá sorte!” Deixamos de esporas.
Descendo na cava, por feliz a gente vinha em oculto. E, justo, já embaixo, no principiar da várzea, era um capim com mais viço, capinzal do fresco de pé-de-serra. Capim mais alto do que eu – nele à gente se tapava. Coincidido que, permeio o verde dos talos, a gente via algumas borboletas, presas num lavarinto, batendo suas asas, como por ser. Caiu o açúcar no mel! Porque, igual também convim que podíamos ladear um tanto; e, daí, separei, de cabeça, um grupo de homens, que iam ir com o Fafafa: esses avançarem primeiramente – como a certa isca –
perturbando o cálculo do inimigo, ao dar o dar. Respiramos tempo, naqueles transitórios. De rechego, coçando as caras no capim em pontas, que dava vontade de se espirrar. Só o rumor que se ouvia era o dos cavalos abocanhando. Eu tinha pressa de um final, mas o que ia mor em mim era um lavorar de paciência: talento com que eu podia ficar retardando lá, a toda a vida. Safas
– que eu podia dar também um pulo, enorme, sustirado,
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas repentemente. Vi: o que guerreia é o bicho, não é o homem. O
capinzal repartia tudo diverso: o abafo do ar e o fresco de lugar de grota – frio e calor, lado dum doutro, nas finas folhas mesmo da folhagem. Mas o calor vinha subindo era pernas acima, no meu corpo: o que os meus pés, de tão quentes, suavam. E eu não enxergava o chão; mas o cheiro do lugar ali era de barro amarelo massal. Suspensos no parar, mesmo, a gente se embalançava na sela, banda para banda, na suavidade essa –
conforme temperação, de que o espírito necessitava. Sendo o mundo quieto, para não assustar os pássaros que comem sementes no capim, porque o revôo deles havia de dar ao inimigo alto aviso no ar.
Sobre isto, eu tirei um pé do estribo e ajoelhei no coxim da sela. Porque era a hora de olhar; mirei e vi. Como o inimigo vinha: as listras de homens, récua deles: passante de uns cem.
Tive mão em tudo, eles ainda estando longe. Fafafa encostou dois dedos no meu joelho, como se até às mudas quisesse poder receber a ordem. Ele esperava um instante certo de meu respirar. Eu brinquei com a mão no arção. Vez de um, vez: todos e todos. Falo o dito de jagunço: que eles mesmos não conseguiam saber se tinham algum medo; mas, em morte,
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas nenhum deles pensava. O senhor xinga e jura, é por sangue alheio.
Daí, reolhei. Avistei que vinham – e tinham destacado em galope, festinho adiante, uns tais, que se enviassem de vigiar a cava e a passagem de sobe-serra, como cautela. Fechei os olhos, e contei. Até dez, agüentei não, que me deu um deciso já em sete. – “Tu é tu, Fafafa!” – eu disse. E ele gritou: – “Xé, do campo!” –; e correu as esporas. E eu vi o virar dos cavalos –
partindo rompendo, amassando cama no capinzal. Seja que, os homens para acompanharem o Fafafa, eu medi em número e soltei, feito em porteira de gado: e pouco passaram de vinte. E
eu retinha a duro os outros, que queriam também ir. E
Diadorim, desses. – “Eu!” – que Diadorim disse. Eu disse: –
“Não!” – como agarrei embaixo a rédea do cavalo dele. Por que foi que fiz? Bastava o meu mando. Aquilo não tinha significado.
Só fiz querer Diadorim comigo; e a gente se cabia entre riscos do verde capim, assim eu Diadorim enxergava, feito ele estivesse enfeitado. Se escutando os grandes gritos e tiros: que eram os de Fafafa destruindo a anteguarda dos contrários. Amontado no instante, mas eu mesmo assim tive prazo para
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas me envergonhar de mim, e para sentir que Diadorim não era mortal. E que a presença dele não me obedecia. Eu sei: quem ama é sempre muito escravo, mas não obedece nunca de verdade...
Aí, me alteei, e tive: que era o começo da grande batalha.
Sobre o soprar, o Fafafa indo em frente, mais os dele, gritando alardes!
No que, os outros, os Hermógenes, também, que primeiro formavam mó, depressa alargaram espaço, se abrindo uns dos outros – mato de gente. Eles tresfuriavam assim, aos urros zurros, quantidade que eram; eh, sabiam vir, à cossa. E tiros mesmo pouco ouvi; mas, no liso seco estradai, do meio do campo, deu um pano de poeira, empenachada. Eu bebi gotas: digo, isto é, que ainda esperei mais. Como o Fafafa, de proposital – porque aqueles outros podiam recachar – retardava a ida avante, num meio-galope somente, muito enganador. A avistar melhor, quase trepei de todo na sela, meu animal cumprindo de não bulir, porque era cavalo consciencioso. Mas, enquanto isso, saiba o senhor o que foi que fiz! Que fiz o sinal-da-cruz, em respeito. E isso era de pactário? Era de filho do demo? Tanto que não; renego! E mesmo me alembro do que se
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas deu, por mim: que eu estava crente, forte, que, do demo, do Cão sem açamo, quem era era ele – o Hermógenes! Mas com o arrojo de Deus eu queria estar; eu não estava?!
Foi o instante de tempo que era o momento. Só chamei João Concliz: – “Agora é agora...” E joguei a rumo. – “Lá vai obra!” Meu cavalo saiu às cabeçadas. Todos atrás de mim, no arranque; e era o mundo mesmo. Gritei de sussus: – “Vale seis!
– e toma nove!...” – nas grimpas da voz... E eles meus, gritando tão feroz, que semelhavam sobrevindos sobre o ar. Menos vi.
Mas todo o todo do Tamanduá-tão se alastrou em fogo de guerra.
Suspenso – ouviu? – escapei, à de banda, com meu bom cavalo, repuxei as rédeas. Só assim permaneci, eu estava debaixo duma árvore muito galhosa; canjoão? Que pensei. E rompeu tiro, romperam, na polvorada. Até o capim dava assovio. E, por tudo se desejar de ver, tantamente demorava e ficava custoso, para em alguma justa coisa se afirmar os olhos. O que era feito grande mesa posta, cujos luxos motivos, por dizer, alguém puxa a toalha e, vai, derruba... Quem era que ia poder botar naquilo uma ordem, para um fim com vitória? E estralou bala... Repisei em minhas estribeiras, apertei as pernas nas espendas. Eu tinha
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas de comandar. Eu estava sozinho! Eu mesmo, mim, não guerreei.
Sou Zé Bebelo?! Permaneci. Eu podia tudo ver, com friezas, escorrido de todo medo. Nem ira eu tinha. A minha raiva já estava abalada. E mesmo, ver, tão em embaralhado, de que é que me servia? Conservei em punho meu revólver, mas cruzei os braços. Fechei os olhos. Só com o constante poder de minhas pernas, eu ensinava a quietidão a Siruiz meu cavalo. E
tudo perpassante perpassou. O que eu tinha, que era a minha parte, era isso: eu comandar. Talmente eu podia lá ir, com todos me misturar, enviar por? Não! Só comandei. Comandei o mundo, que desmanchando todo estavam. Que comandar é só assim: ficar quieto e ter mais coragem.
Mais coragem que todos. Alguém foi que me ensinou aquilo, nessa minha hora? Me vissem! Caso que, coragem, um sempre tem poder de mais sorver e arcar um excesso – igual ao jeito do ar: que dele se pode puxar sempre mais, para dentro do peito, por cheio que cheio, emendando respiração... À fé, que fiz.
Se não vivei Deus, ah, também com o demo não me peguei –
refiro ; mas um nome só eu falava, fortemente falado baixo, e que pensado com mais força ainda. E que era: – Urutu Branco!...
Urutu Branco!... Urutu Branco!... Cujo era eu mesmo. Eu sabia, eu queria.
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas E quando a guerra para o meu lado relambeu, feito repentina labareda dum fogo. Uns vieram. E os tiros – deles, –