– “Vosso, meussenhor cavaleiro... Amigo e criado...”
Esperança dele era ver a gente pelas costas. Com ele apertei: aonde que morasse? – “Lá daquela banda, meussenhor...
Sitiozinho raso...” – outrarte ele respondeu, nhento, pasmado.
Atalhei: – “A pois, pra lá vamos, adonde menos chova. O senhor mostre.” Aí ele remudou os modos, falando em muito aprazimento, em honras de sinceridade. A fazenda era ali, só a uns passos. Assim ele já se astuciava.
Do Zabudo, homem somítico, muito enjoativo e sensato.
Requeri dele o prêmio – que marquei em arras de sete contos – e ele se desesperou, conforme caretas, e suas costas das mãos, mesmas, uma e depois a outra, diversas vezes ele beijava. Sempre gemendo que não e que sim, pediu vênia de me noticiar como os negócios da lavoura para ele nos derradeiros três anos andavam
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas desandando, com peste que no gado deu e redeu, e praga no canavial: por via dela, nem fervia mais safra. E, tudo que falava, explicava e redizia, mesmo se fiou de querer me levar, debaixo de temporal, para exemplificar minhas vistas com o pejorativo de suas posses. Por causa da caceteação, concedi rebates, acabei deixando o estipulado em três-contosquinhentos; e também por receio de se pegar em mim a nhaca daquele atraso. Se bem que, no repleto de dinheiro ganho goiano, como já se estando, eu descarecia de sistema de bruteza com ninguém. E mesmo se traçou que o sustento nosso ele por metade fornecia gracioso, sem estipêndio; escatimava, mas dava. Ao tanto que o resto eu pagava caro, e os percebidos: certas dúzias de ferraduras, o milho para os animais, umas mantas de toicinho e dez quartilhos de cachaça – que, em justo dizer, nem prestava. Bom, lá, era o fumo de rolo. E, já dava de ser: como desemboque, eu pagasse a ele só para se comportar calado. Por fim, penso, a falha nossa lá, para aquele do-Zabudo, ficou quase de graça.
E dito e referido, que chovia em Goiás todo, assistimos dentro de casa, só saindo no quintal para chupar jabuticabas. A gente tinha baralhos, se jogou, rouba-monte e escopa, porque truque eu não consentia, por achar que me faltava floreado rompante para os motes e gritos, que nesse endiabrado jogo
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas compertencem; e mesmo por achar vadiado, para a minha chefia.
Então bem, enquanto a gente formava essa distração, o do-Zabudo ia e vinha, flauteando, excogitando decerto – para ratinhar e sisar a gente com mangonhas – outras velhaquices choradas. E foi, de repente, ele se chegou com esta, que não se esperava por barato nem caro: – Que a nhã senhora, aquela, suplicava o favor dum particular com o moço chamado Reinaldo...
Essa, nhã, refiro, era a mulher do Hermógenes; que em reserva fechada se tinha, no quarto-do-oratório. E Diadorim, saber o senhor tem, era o conhecido por “Reinaldo”.
Que me invocou – o senhor vai dizer – me causou espantos? Haviade. Eu estava na sala-de-jantar, jogando, com João Goanhá, João Concliz e Marcelino Pampa. Alaripe, com a baciinha de lixívia em areia e com estopa, na soleira da porta para o quintal, acendrava as armas. Ele falou: – “Deus que, olh’ lá: que se o Reinaldo não dá cabo da criatura...” Descontamos. – “Eh, ela será que faz mandraca?” – João Goanhá alvitrou, com essas risadas. – “Ara, para obrar bom feitiço, que valha, diz-se que só mesmo negra, ou negro...” Isto que Marcelino Pampa deu de opinião, enquanto pegava o sete-belo com o sete-de-paus. Eu
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas joguei, e João Goanhá somou seis e três, na mesa, conforme pegou com um valete, e escopou. Diadorim se tinha encaminhado para onde estava a mulher, para ir ouvir o que ela queria que ele ouvisse.
Tocou minha vez de baralhar e repartir cartas. Ou seria algum pedido que ela tivesse de fazer a ele, bem. Daí, João Goanhá esteve dizendo que a mulher rogava era por sua liberdade. E eu desconversei, observando casual, primeiro a respeito do luxo de tantos anéis que João Goanhá gostava de botar em cheios dedos; e depois chamei atenção para as goteiras abertas na telha-vã daquele grande cômodo, que se carecia de dispor umas latas em diversos pontos e até uma gamela, no meio da mesa, fim de se aparar águas da chuva. Mas, mesmo por mim, eu já tinha perdido a simpatia no divertimento do jogo, e me ergui de lá, fui ver a coisa nenhuma, no alpendre, onde até homens dormiam madraços, aborrecidos com um chover tão constante.
Diadorim não vinha, não dava de sair do quarto-do-oratório. E, quando foi que veio, não me contou nada. O que disse, comum: – “Ah, ela só chorou mágoas...” Não perguntei passo. Devido que não perguntei logo à primeira, depois foi não
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas ficando bem, para o meu brio, o perguntar. Diadorim se atarantava quieto, nem não era correto o que ele estava fazendo –
escondendo fatos. Palavras que vieram a gume em minha boca, foram estas: – Que eu não gostava de hipocrisias... Pensei, e não disse. Eu podia duvidar das ações de Diadorim? Lá ele alguma criatura para traição? Rosmes! Idéia essa não aceitei, por plausível nenhum. Mas, de motivo como me desgostei, assim resolvi a saída da gente dali da Carimã, no instante mesmo, e dei ordem.
Fossem trazer os cavalos, e arrear, atrás do tempo que fizesse –
enxurradas tais, nuvens grossas, céu nubloso e trovão em ronco.
Chuvas com que os caminhos se afundavam.
E assim cumpriram. Mas, aí nem bem os cavalos vieram no curral, se deu uma estiada muito repentina – por um montão de vento. O céu firmou, e sol, com todos os bons sinais. Ante o que
– por isso e por tanto – a admiração do pessoal foi de grandes mostras. E eu vi que: menos me entendiam, mais me davam os maiores poderes de chefia maior.
Só o do-Zabudo, saiba o senhor, parava fora da roda, sem influência nenhuma, feito um tratante. Saiba o senhor que assim ele ainda me veio, com visagens e embaraços, por amortecer a paga, pedindo ágios de calote e prazos mercantis. Agora – mais
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas que tudo – saiba o senhor uma coisa, a que ele, para os fins, executou na hora da confusão da saída, no zafamar. Pois de repente trouxe e ofertou a Diadorim, de regalo, uma caixeta da boa e melhor marmelada goiana, dada a valores: – “Ademais o senhor prove o de que demais gostará... A de Santa Luzia, perto desta, perde por famosa...” Dando aquilo a Diadorim, ele não queria disfarçado me agradar, por vantagens? Se sei. O que é que estivesse adedentro das idéias daquele homem? O jeito estúrdio e ladino de olhar a gente, outrolhos – e que na hora não me fez explicação. Sendo que, mediado esse obséquio a Diadorim, ele conseguiu mesmo me adular. Saranga fui, contracontas, contra aquele paranãnista lordaço. Ele se saiu quite, por pouco não pegou até dinheiro meu emprestado. Mesmo pelos cavalos e burros que cedeu, recebeu igual quantidade dos nossos, bem melhores, somente que estavam cansados. Teve até permissão de conservar o dele próprio, o baio, que disse ser de venerada estimação, por herdado pessoal do pai. Nele, amontado prazido, naquela dita cutuca, pandegamente, pois ainda veio, por quarto-de-légua, fazendo companhia à gente. Coisa assim, não se vê.
Tanto ambicionava, que nem temia. Sempre me olhava, finório, com as curiosidades. E assim. Agora, o senhor prestou toda a atenção nesse homem, do-Zabudo? O diabo dele. O senhor me
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas diga: o senhor desconfiou de alguma arte, concebeu alguma coisa?
Sumimos de lá. Em cinco léguas, vi o barro se secar. O
campo reviçava. Mas concedi que a viagem viesse à branda, serenada. Queria, quis. O burrinho de Nosso Senhor Jesus Cristo também não levava freio de metal... Isso, na ocasião, emendo que não refleti. Razão minha era assim de ter prazos, para que meu projeto formasse em todos pormenores. Mas – isto afianço ao senhor – também eu não sentia açoite de malefício herege nenhum, nem tinha asco de ver cruz ou ouvir reza e religião.
Mesmo, me sobrasse tempo algum de interesse, para reparar nesses assuntos? Eu vinha entretido em mim, constante para uma coisa: que ia ser. Queria ver ema correndo num pé só... Acabar com o Hermógenes! Assim eu figurava o Hermógenes: feito um boi que bate. Mas, por estúrdio que resuma, eu, a bem dizer, dele não poitava raiva. Mire veja: ele fosse que nem uma parte de tarefa, para minhas proezas, um destaque entre minha boa frente e o Chapadão. Assim neblim-neblim, mal vislumbrado, que que um fantasma? E ele, ele mesmo, não era que era o realce meu –
?-eu carecendo de derrubar a dobradura dele, para remediar minha grandeza façanha! E perigo não vi, como não estava cismando incerteza. Tempo do verde! Êpa, eu ia erguer mão e
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas gritar um grito mandante – e o Hermógenes retombava. Onde era que estava ele? Sabia não, sem nenhuma razoável notícia; mas, notícia que se vai ter amanhã, hoje mesmo ela já se serve...
Sabia; sei. Como cachorro sabe.
Assim, o que nada não me dizia – isto é, me dizia meu coração: que, o Hermógenes e eu, sem dilato, a gente ia se frentear, em algum trecho, nos Gerais de Minas Gerais. Eu conhecia. A pressa para quê? Ao ir, ao que ir – aí contra a Serra das Divisões ou sobre o Rio São Marcos. Estrada-real, estrada do mal. Como de fato, aquilo estava impossível, breado de barro alto, num reafundo, num desmancho, que comia com engolo as ferraduras mesmo cravadas novas, e assujeitava a gente a escorregão e tombos, teve animal que rachou canela, quebrou pescoço. – “Este caminho tem tripas...” – se dizia bem. Às loucuras. E a jorna não rendia, não se podia deszelar o pisar.