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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Assenti, boamente, nisso, em que elas estavam com a razão.
Só que, pelo respeito, eu sendo Chefe, não ia poder deixar o Felisberto me avistar assim, perfeito descomposto nu, como eu estava. Maria-da-Luz aí trouxe uma roupagem velha dela, que era para eu amarrar na cintura, tapando as partes. Experimentei. Daí, entendi o desplante, me brabeei, com um repelão arredei a mulher, e desatei aquilo, joguei longe. Tornei a vestir minhas roupas, botei até jaleco. Elas melhor me riam. Eu era algum saranga? Eu podia dar bofetadas – não fosse a só beleza e a denguice delas, e a estroina alegria mesma, que meio me encantava.
O Felisberto entrou, saudou, comeu e bebeu. Naquela ocasião ele estava passando bem, normal. Só assim, ao silenciosamente. Entendo que mais fosse para o galhardo que para o sem-graça, rapaz desses de que as mulheres se arregalam.
Em ver, seria mais moço do que eu, mais calmo. Não quisesse ardores com damas, quisesse os poucos recantos para devagar se resignar. Não cobiçou a qual, ou agrados. Nem na hora reparei que a Maria-da-Luz com ele se olhasse. Só bem, o que ela refletiu, quando o Felisberto, comido e bebido, tornou a sair, ela me disse: – que, se eu no caso dúvida não pusesse, o Felisberto podia com ela se introduzir, no outro cômodo, por variação
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas dumas duas horas, constante que nesse breve prazo eu ainda restava felizardo com a Ageala Hortência. Danado eu disse que não; e ela: - “Tu achou a gente casual aqui, no afrutado. Tu veio e vai, fortunosamente. Tu não repartindo, tu tem?...” – assim ela me modificou. A doidivã, era uma afiançada mulher. No sertão tem de tudo.
E eu tinha falado meu não, era mais somente porque não se pode falhar na regra: de só se pandegar com sentinela posta. Eu era o chefe. O Felisberto era sentinela. Aquela casa de lugar – as delícias que estavam – eu melhores neste mundo não achasse, pensei. Eu quisesse reinar lá, pelos meus prazeres. O senhor sabe: eu chefe, o outro sentinela. Esse Felisberto, pelo jeito, ia viver tão escasso tempo, podia bem que nem fizesse mais conta do ofício.
Sendo o mais que pensei: eu, sentinela! O senhor sabe. Ah –
ainda que no nocivo desses andares – eu conseguia meditar minhamente: ah, eu não tive os chifres-chavelhos nem os pés de cabra... Ali, pelos meus prazeres eu quisesse me reinar, descambava para fecho de termo. A morte estava com esse Felisberto, coitado desgraçado. A coisa estranha que uma bala de arma tinha entrado nos centros da cabeça mesma dele, recessos da idéia dele – de lá, de vezes em vezes, perturbava com excessos: daí um dia, em curto, era a morte fatal. Agora, podia
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas bem ser que ele quisesse largar de mão de ser jagunço? Aquele fato daquela bala entrada depositada no dentro de um – e que não se podia tirar de nenhum jeito, nem não matava de uma vez, mas não perdoava na data – me enticava. Aquele homem, mesmo com a valia e bizarria dele, eu pudesse querer mais no meu bando? As duas mulheres, belezas assins, dando delícias, bilistrocas... Outra idéia eu tive. Só eu sei: eu sentinela! Só não posso dar uma descrição ao senhor, do estado que eu pensei, achei; só sei em bases.
Amanheceu claro. Mas Maria-da-Luz não era logrã, isso conheci, no ver como ela olhou para o Felisberto, com modos mimosos. Quem sabe ele havia de gostar de ficar para sempre permanecido ali? Perguntei. O Felisberto se riu, tão incerto feliz, que eu logo vi que tinha justo pensado. E elas, demais. – “Deixa o moço, que nós prometemos. Tomamos bom cuidado nele, e tudo, regalado sustento. Que de nada ele há-de nunca sentir falta!” Tanto elas disseram, que tudo transformavam. Mulheres.
E o Felisberto ia permanecer, a siso, arrecadado na sujeição desses deleites; podia ter um remédio de fim de vida melhor? Em tal, abracei o companheiro, e abracei as duas, dando para sempre a minha despedida e fazendo mostra de falar de farto. Mulheres sagazes! Até mesmo que, nas horas vagas, no lambarar, as duas
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas viviam amigadas, uma com a outra – se soube. O que, quando eu já ia saindo, acharam de me dizer? Isto:
– “Mas, você já vai, mesmo, nego? Visita-de-médico?...”
Como não pude sofrear meu rir.
Reuni meus outros meus homens. Abalei de lá. Bem que eu sentia – eu exalava uma certa inveja do Felisberto. Mas, aí, eu estimei o Felisberto, como se ele fosse um meu irmão. Como Céu há, com esplendor, e aqui beleza de mulher – que é sede.
Deus que abençoe muito aquelas duas. A pois, me ia, e elas ficavam as flores naquele povoadozinho, como se para mim ficassem na beira dum mar. Ah: eu sentinela! – o senhor sabe.
Assim eu queria me esquecer de tudo, terminada aquela folga. O dever de minha hombridade. Aí mais, quando tornei a rever Diadorim, constante vi, que andava à minha espera com os companheiros, num papuã, matando perdizes. E encaminhei para Diadorim, com a meia-dúvida. Eu não tinha razão? Porque Diadorim já sabia de tudo. Como sabia? Ah, o que era meu logo perdia o encoberto para ele, real no amor. – “Riobaldo, você vadiou com as do Verde-Alecrim... Você, está comprazido?” –
ele de franca frente me perguntou. Eu tibes. Corri mão por meu
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas peito. Mas admirei que Diadorim não estivesse jeriza. Mesmo, ele ao leve se riu, e o modo era de malina satisfação.
– “Você já está desistido dela?” – em fim ele indagou.
– “Hem? Hem? Dela quem dela? Tu significa essas velhacas palavras...» – eu só fiz que respondi, redatado.
Mediante porque: aí logo entendi, no instante. E ele cerrou a conversa.
Porque eu entendi: que a referida era Otacília. Minha noiva Otacília, tão distante – o belo branco rosto dela aos poucos formava nata, dos escuros... Tudo isto, para o senhor, meu senhor, não faz razão, nem adianta. Mas eu estou repetindo muito miudamente, vivendo o que me faltava. Tão minhas coisas, eu sei. Morreu a lua? Mas eu sou do sentido e reperdido. Sou do deslembrado. Como vago vou. E muitos fatos miúdos aconteceram. Conforme foi. Eu conto; o senhor me ponha ponto.
Pelo que, do trecho, voltamos. Para mais poente do que lá, só uruburetamas. E o caminho nosso era retornar por essas gerais de Goiás – como lá alguns falam. O retornar para estes gerais de Minas Gerais. Para trás deixamos várzeas, cafundão, deixamos
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas fechadas matas. O joão-congo piava cânticos, triste lá e ali em mim. Isto é, minto: hoje é triste, naquele tempo eram as alegrias.
Suaçuapara corria da gente, com a cabeça empinada quase nas costas, protegendo para não prender nas árvores sua galhadura dele. Galheiro suaçupucu com sua fêmea suaçuapara. Um dia, vez, se matou uma sucuri, de trinta-e-seis palmos, que de ar engravidava. Dava lugares, em que, de noite, se estava de repente no cabo do revólver, ou em carabinas, mesmo; e carecia de se acender maiores fogueiras, porque, no cheio oco do escuro, podia vir cruzar permeio à gente algum bicho estranhão: formas de grandes onças, que rodeando esturravam, ou a mãe-da-lua, de vôo não ouvido, corujante; ou, de supetão, às brutas, com forte assovio, vindo do lado do vento, algum macho d’anta, cavalo-rão.
E foi aí que o Veraldo, que era do Serro-Frio, reconheceu uma planta, que se chamasse guia-torto, se certo suponho, mas que se chamava candeia na terra dele, a qual se acendia e prendia em forquilha de qualquer árvore, ela aí ia ardendo luminosa, clara, feito uma tocha.
Atravessamos campos. Dias, tão claros, céu de toda altura.
Assaz voavam eram os gaviões. E Goiás estava pondo fogo nos seus pastos. Arte que fumaçava, fumaceava, o tisne. O sol roxo requeimão. Tive uma saudade de outras audácias. Morreu o
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Pitolô, por bala de arma que disparou sem ser por querer de ninguém – caso muito acontecível. Num sítio Padre-Peixoto, morreu o Freitas Macho, também, de uma dor forte no vão da barriga, banda-da-mão-direita; remédio de chá nele não produziu o vero efeito. Alaripe teve uma carregação-dos-olhos. O
Conceiço destroncou o braço, deu trabalho e dores, para se repor no lugar. Advertido que, antes, dessas passagens assim não lhe vinha minuciando, e que elas corretamente sempre se dão; mas que eram somente as mortes sérias serenas, doutras desgraças diversas, ou doenças para molestar.
E dos fazendeiros remediados e ricos, se cobrava avença, em bom e bom dinheiro: aos cinco, dez, doze contos, todos tinham mesmo pressa de dar. Com o que, enchi a caixa. E abriam para a gente pipotes de cachaça, a qual escanceavam. Se jantava banquete, depois um coreto se cantava. As vezes, não sei porque, eu pensava em Zé Bebelo, perguntava por ele em outros tempos; e ninguém conhecia aquele homem, lá, ali. O de que alguns tivessem notícia era da fama antiga de Medeiro Vaz. Daí, me dava raiva de ter pensado refletido em Zé Bebelo. Bobéias. E, andantemente, só me engracei foi duma mulher, casada essa, que, com tremor enorme, me desgostou neste responder: – “Ai, querendo Deus, que o meu marido quiser...” Ao que eu atalhei:
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