derreteram debaixo do pé de meus exércitos. O que foi um desbarate! Como que já estavam de asas quebradas, nem provaram resistências: deles mal ouvi uns tiros. E a gente, nós, estouramos para o centro, a surto, sugre, destrambelhando na polvorada, feito rodeio de vento. Assaz. Do que fiz, desisto.
Todos não fizeram? Volvido, receei que Diadorim não me
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas aprovasse; mas Diadorim concordou com os fatos, em armas, em frente. O que se matou e estragou – de gente humana e bichos, até boi manso que lambia orvalhos, até porco magro em beira de chiqueiro. O mal regeu. Deus que de mim tire, Deus que me negocie... À vez.
De seguida, tochamos fogo na casa, pelos quinze cantos mortos. Armou incendião: queimou, de uma vez, como um pau de umburana branca... E de lá saímos, quando o fogo rareou, tardezinha. E, na manhã que veio, acampou-se em beira-d’água de sossego. A gente traspassava de cansaços, e sobra de sono.
Mas, trazida presa, já em muito nosso poder, estava a merecida, que se queria tanto – a mulher legal do Hermógenes.
Aquela mulher sabia dureza; riscava. Ela discordava de todo destino. Assim estava com um vestido preto, surrado muito desbotado; caiu o pano preto, que tinha enlaçado na cabeça, e ela não se importou de ficar descabelada. Deixaram: ela sentar, sentou. Nunca encurtou a respiração. Devia de ter sido bonita, nos festejos da mocidade; ainda era. Deram a ela de comer, comeu. De beber, bebeu. A curto, respondeu a algumas duas ou três coisas; e, logo depois de falar, apertava demais a boca fechada, estreitos finos beiços. Mas falava quase assoviado.
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Figuro que não mascava fumo nem cachimbava, mas mesmo assim cuspia em roda; mas não passava a sola do pé, por cima, para alimpar o chão, como é costume de se fazer, nessas condições. Adverti que estava descalça, e assim devia de ser fora do uso, decerto por causa da hora e confusão em que tinha sido pega. Se arranjou para ela par de alpercatas. Ela soubesse que não se pertencia com a gente. Aceitou meu olhar, seca, seca, com resignação em quieto ódio; pudesse, até com as unhas dos pés me matava. Enrolou a cara num xale verde; verde muito consolado. Mas eu já estava com ela – com os olhos dela, para a minha memória. Magreza, na cara fina de palidez, mas os olhos diferiam de tudo, eram pretos repentinos e duráveis, escuros secados de toda boa água. E a boca marcava velhos sofrimentos?
Para mim, ela nunca teve nome. Não me disse palavra nenhuma, e eu não disse a ela. Tive um receio de vir a gostar dela como fêmea. Meio receei ter um escrúpulo de pena; certo não temi abrir razão de praga. Muito melhor que ela não carecesse de vir.
Ser chefe, às vezes é isso: que se tem de carregar cobras na sacola, sem concessão de se matar... E ela ficava assim embiocada, sem semblantes, com as mãos abertas, de palmas para cima – como se para sempre demonstrar que não escondia arma de navalha, ou porque pedisse esmola a Deus. Lembro
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas dessa mulher, como me lembro de meus idos sofrimentos. Essa, que fomos buscar na Bahia.
É de ver que não esquentamos lugar na redondez, mas viemos contornando – só extorquindo vantagens de dinheiro, mas sem devastar nem matar – sistema jagunço. E duro capitaneei, animado de espírito. O Jalapão me viu, os todos Gerais me viram demais. Aqueles distritos que em outros tempos foram do valentão Volta-Grande. Depois, mesmo Goiás a baixo, a vago. A esses muito desertos, com gentinha pobrejando. Mas o sertão está movimentante todo-tempo – salvo que o senhor não vê; é que nem braços de balança, para enormes efeitos de leves pesos... Rodeando por terras tão longes; mas eu tinha raiva surda das grandes cidades que há, que eu desconhecia. Raiva-porque eu não era delas, produzido... E nave guei salaz. Tem as telhas e tem as nuvens... Eu podia lá torcer o azul do céu por minhas mãos?!
Virei os tigres; mas mesmo virei sendo o Urutu-Branco, por demais.
Somente que me valessem, indas que só em breves e poucos, na idéia do sentir, uns lembrares e sustâncias. Os que, por exemplo, os seguintes eram: a cantiga de Siruiz, a Bigri minha mãe me ralhando; os buritis dos buritis – assim aos cachos; o
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas existir de Diadorim, a bizarrice daquele pássaro galante: o manuelzinho-da-croa; a imagem de minha Nossa Senhora da Abadia, muito salvadora; os meninos pequenos, nuzinhos como os anjos não são, atrás das mulheres mães deles, que iam apanhar água na praia do Rio de São Francisco, com bilhas na rodilha, na cabeça, sem tempo para grandes tristezas; e a minha Otacília.
No sirgo fio dessas recordações, acho que eu bateava outra espécie de bondade. Devo que devia também de ter querido outra vez os carinhos daquela moça Nhorinhá, nessas ocasiões.
Por que será que, aí, eu não formei a clareza disso, de a-propósito? Por lá, adiante, na vastança, era rumo de onde ela agora morava. Isso, sim, andadamente. Mas não conheci; e demos volta. Tempos escurecidos. O que meus olhos não estão vendo hoje, pode ser o que vou ter de sofrer no dia depoisd’amanhã.
Ao que inventei, enquanto assim se vinha, por pobres lugares, aos poucos eu estive amaestrando os catrumanos, o senhor está lembrado deles; ensinando aqueles catrumanos, para as coisas de armas, do que houvesse de pior. Eles já prometiam puxo; eh, burro só não gosta é de principiar viagens. Aprovei, de ver o Teofrásio, principal deles, apontando em homem malandro
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas inocente, com a velha garrucha que era a dele, com os dois canos encavalados. Mas, que atirasse, não consenti. Zé Bebelo havia de admitir assim, de se fazer excessos? Ali, quem se lembrava de Zé Bebelo eram minhas horas de muita inteligência. Assim, ele ainda vivesse, certo havia de ter algum dia notícia do que eu estava executando: que a gente trazia a Mulher; com ela agarrada em mãos, se ia necessitar o Hermógenes a dar combate.
Essa mulher, conforme vinha, num definitivo mau silêncio, a cara desaparecida pelo xale verde, escanchada em seu cavalo.
Tinham dado a ela um chapéu-de-palha de ouricuri, por se tapar do forte sol baiano. A mais, dela não se ouviu queixa ou reclamação; nem mesmo palavra. O que eu desentendia nela era aquela suave calma, tão feroz; que seria aferrada em esperar; essa capacidade. Se o ódio, só, era que dava a ela certeza de si, o ódio então era bom, na razão desse sentido: que às vezes é feito uma esperança já completada. Deus que dele me livrasse!
Mas, o homem em quem o catrumano Teofrásio com sua garrucha antiqüíssima apontou, era um velho. Desse, eu digo, salvei a vida. Socorrido assim, pelo fato d’eu não conseguir conhecer a intenção da existência dele, sua razão de sua consciência. Ele morava numa burguéia, em choça muito de
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas solidão, entre as touças da sempreviva-serrã e lustro das folhagens de palmeira-pindoba.
Eu, com outros, tinha subido no tope do morro, que era de espalhaventos. De lá do alto, a mente minha era poder verificar muitos horizontes. E, mire veja: em quinze léguas para uma banda, era o São Josezinho da Serra, terra florescida, onde agora estava assistindo Nhorinhá, a filha de Ana Duzuza. Assunto que, na ocasião, meu espírito me negou, digo o dito. Além, além. Dela eu ainda não tinha podido receber a carta enviada. Para mim, era só uma saudade a se guardar. Hoje é que penso. Nhorinhá, namorã, que recebia todos, ficava lá, era bonita, era a que era clara, com os olhos tão dela mesma... E os homens, porfiados, gostavam de gozar com essa melhora de inocência. Então, se ela não tinha valia, como é que era de tantos homens?
Mas, no vir de cimas desse morro, do Tebá – quero dizer: Morro dos Oficios – redescendo, demos com o velho, na porta da choupã dele mesmo. Homem no sistema de quase-doido, que falava no tempo do Bom Imperador. Baiano, barba de piaçava; goiano-baiano. O pobre, que não tinha as três espigas de milho em seu paiol. Meio sarará. A barba, de capinzal sujo; e os cabelos dele eram uma ventania. Perguntei uma coisa, que ele não
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas caprichou de entender, e o catrumano Teofrásio, que já queria se mostrar jagunço decisivo, o catrumano Teofrásio bramou –
abocou a garruchona em seus peitos dele. Mas, que não deu tujo.
Esse era o velho da paciência. Paciência de velho tem muito valor. Comigo conversou. Com tudo que, em tão dilatado viver, ele tinha aprendido. Deus pai, como aquele homem sabia todas as coisas práticas da labuta, da lavoura e do mato, de tanto tudo.
Mas, agora, que tanto aforrava de saber, o derrengue da velhice tirava dele toda possança de trabalhar; e mesmo o que tinha aprendido ficava fora dos costumes de usos. Velhinho que apertava muito os olhos.
Seria velhacal? Não fio. E isto, que retrato, é devido à estúrdia opinião que divulgou em mim esse velho homem. Que, por armas de sua personalidade, só possuía ali era uma faquinha e um facão cego, e um calaboca – Porrete esse que em parte ocado e recheio de chumbo, por valer até para mortes. E ele mancava estragado: por tanto que a metade do pé esquerdo faltava, cortado – produção por picada de cobra – urutu geladora, se supõe. Animado comigo, em fim me pediu um punhado de sal grande regular, e aceitou um naco de carne-de-sol. Porque, no comer de comum, ele aproveitava era qualquer calango sinimbu,
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas ou gambás, que, jogando neles certeiramente o calaboca, sempre conseguia de caçar. Me chamou de: - “Chefão cangaceiro...”
Acabando que, para me render beneficio de agradecimento, ele me indicou, muito conselhante, que, num certo resto de tapera, de fazenda, sabia seguro de um dinheirão enterrado fundo, quantia desproposital. Eu fosse lá... – ele disse ; eu escavasse tal fortuna, que merecida, para meus companheiros e para mim... - “Aonde, rumo?” – indaguei, por comprazer. Ele piscou para o mato. Por lá, trinta e cinco léguas, num Riacho-dasAlmas... Toleima. Eu ia navegar assim para acolá, passar matos, furar a caatinga por batoqueiras, por louvar loucura alheia? Minha guerra nem não me dava tempo. E, mesmo, se ele sabia assim, e verdade fosse, por que era que não ia, muito pessoalmente, cavacar o ouro para si? Derri dele, brando. Por que é que se dá conselho aos outros? Galinhas gostam de poeira de areia – suas asas... E o velho homem – cujo. Ele entendia de meus dissabores? Eu mesmo era de empréstimo. Demos o demo... E possuía era meu caminho, nos peitos de meu cavalo.
Siruiz. Aleluia só.