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Gago, não: gagaz. Conforme que, quando ia principiar a falar, pressenti que a língua estremecia para trás, e igual assim todas as partes de minha cara, que tremiam – dos beiços, nas faces, até na ponta do nariz e do queixo. Mas me fiz. Que o ato do medo não tive. Mandei o cego se sentar, e ele obedeceu, ele

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas estava no aparvoado; mas não se abancando no banco: que melhor se agachou, ficou agachado. Riu, de me dar nojo. Mas nojo medo é, é não? Destemor maior Deus não me desse, segundo retornei para a praça da janela, donde eu dava e mandava. Sobreolhava. Ah, máuser e winchester que assoviamzinho sutil. E chio de espingardão velho antigo. Chum-beou. Há-de varavam. Como refiro, que também eu não persistia ali aparte de tudo, desperdício; mais antes: quem se avultasse, baqueava... Carabina.

Sucinto que se passou, horas tantas, estalos e estrondos estouros, sotrançando no chicotear das balas-balas, sempre disso.

Sempremente. Ao constante que eu estive, copiando o meu destino. Mas, como vou contar ao senhor? Ao que narro, assim refrio, e esvaziado, luís-e-silva. O senhor não sabe, o senhor não vê. Conto o que fiz? O que adjaz. Que eu manejava na mira.

Dava, dava. E que não pronunciei insultos e gritos, mesmo porque minha boca, a modo que naquele preciso tremor, me mal-obedecia. Sapateei, em vez, bati pé de pilão nas tábuas do assoalho tão surdo – o senhor é capaz que escute, como eu escutei? E o que o furor da guerra, lá fora, lá embaixo, tomava certa conta de mim, que a quase eu deixava de dar fé da dor-de-cabeça, que forte me doía, que doesse vindo do céu-da-boca,

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas conforme desde, aos poucos, que o fogo tinha começado. E que água não provei bebida, nem cigarro pitei. Esperançando meu destino: desgraça de mim! Eu! Eu...

Como vou contar, e o senhor sentir em meu estado? O

senhor sobrenasceu lá? O senhor mordeu aquilo? O senhor conheceu Diadorim, meu senhor?!... Ah, o senhor pensa que morte é choro e sofisma-terra funda e ossos quietos... O senhor havia de conceber alguém aurorear de todo amor e morrer como só para um. O senhor devia de ver homens à mão-tente se matando a crer, com babas raivas! Ou a arte de um: tá-tá, tiro

– e o outro vir na fumaça, de à-faca, de repelo: quando o que já defunto era quem mais matava... O senhor... Me dê um silêncio.

Eu vou contar.

Tudo estava tão pendurado para o fim... Derradeiro ainda foi, que eu virei para trás, para repreender o cego Borromeu; e que eu estava com dormente dor, nos braços. Sem-ordem daquele cego, estúrdio, agachado lá, cocoral. Só fez que disse, bronco: – “Quem me dê um de-comer?” Respondi: ralhei. Ah, há-de-o, singular ficasse, mesmo ali, mascando fumo grosso e cuspindo amarelo e preto... Dei num suor. Vozeiro dele, então,

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas de repente: que principiou a cantar, ele estava cantando um louvado...

Como os braços me testemunhavam um peso... Mesmo estranhei, quando fui notando que o tiroteio da rua tinha pousado termo; achei que fazia um certo minuto que o fogo teria sopitado. Cessaram, sim. Mas gritavam, vuvu vavava de conversa ruim, uns para os outros, de ronda-roda. Haviam de ter desautorizado toda munição? Olhando, desentendi. Atirar eu pudesse? Acho que quis gritar, e esperei para depoismente, mais tarde. Mesmo o que vi: aquele mexinflol. E que quem saía duma porta, para ir se juntar com o bando de todos – armou, segurando frente de si engatilhada uma garrucha de dois canos, pôs a mira – que era o catrumano Teofrásio, como se fosse braço-d’armas! E vi, chefiando os dele, o Hermógenes! Chapéu na cabeça era um bandejão redondo... Homem que se desata...

Entendi. O senhor me socorre.

Conheci o que estava para ser: que os dele e os meus tinham cruzado grande e doido desafio, conforme para cumprir se arrumavam, uns e outros, nas duas pontas da rua, debaixo de forma; e a frio desembainhavam. O que vendo, vi Diadorim –

movimentos dele. Querer mil gritar, e não pude, desmim de

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas mim-mesmo, me tonteava, numas ânsias. E tinha o inferno daquela rua, para encurralar comprido... Tiraram minha voz.

Como vinham de lá e de lá, em contra-ranchos, a tomar armas, as cartucheiras de tiracol. Atirar eu pude? A breca torceu e lesou meus braços, estorvados. Pela espinha abaixo, eu suei em fio vertiginoso. Quem era que me desbraçava e me peava, supilando minhas forças? – “Tua honra... Minha honra de homem valente!... “ – eu me, em mim, gemi: alma que perdeu o corpo. O

fuzil caiu de minhas mãos, que nem pude segurar com o queixo e com os peitos. Eu vi minhas agarras não valerem! Até que trespassei de horror, precipício branco.

Diadorim a vir – do topo da rua, punhal em mão, avançar

– correndo amouco...

Ai, eles se vinham, cometer. Os trezentos passos. Como eu estava depravado a vivo, quedando. Eles todos, na fúria, tão animosamente. Menos eu! Arrepele que não prestava para tramandar uma ordem, gritar um conselho. Nem cochichar comigo pude. Boca se encheu de cuspes. Babei... Mas eles vinham, se avinham, num pé-de-vento, no desadoro, bramavam, se investiram... Ao que – fechou o fim e se fizeram. E eu arrevessei, na ânsia por um livramento... Quando quis rezar – e

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas só um pensamento, como raio e raio, que em mim. Que o senhor sabe? Qual: ... o Diabo na rua, no meio do redemunho... O

senhor soubesse... Diadorim – eu queria versegurar com os olhos... Escutei o medo claro nos meus dentes... O Hermógenes: desumano, dronho – nos cabelões da barba... Diadorim foi nele... Negaceou, com uma quebra de corpo, gambetou... E

eles sanharam e baralharam, terçaram. De supetão... e só...

E eu estando vendo! Trecheio, aquilo rodou, encarniçados, roldão de tal, dobravam para fora e para dentro, com braços e pernas rodejando, como quem corre, nas entortações. ... O diabo na rua, no meio do redemunho... Sangue. Cortavam toucinho debaixo de couro humano, esfaqueavam carnes. Vi camisa de baetilha, e vi as costas de homem remando, no caminho para o chão, como corpo de porco sapecado e rapado... Sofri rezar, e não podia, num cambaleio. Ao ferreio, as facas, vermelhas, no embrulhável. A faca a faca, eles se cortaram até os suspensórios.

... O diabo na rua, no meio do redemunho... Assim, ah – mirei e vi – o claro claramente: ai Diadorim cravar e sangrar o Hermógenes...

Ah, cravou – no vão – e ressurtiu o alto esguicho de sangue: porfiou para bem matar! Soluço que não pude, mar que eu queria um socorro de rezar uma palavra que fosse, bradada ou em muda; e secou: e só orvalhou em mim, por prestígios do

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas arrebatado no momento, foi poder imaginar a minha Nossa-Senhora assentada no meio da igreja... Gole de consolo... Como lá embaixo era fel de morte, sem perdão nenhum. Que engoli vivo. Gemidos de todo ódio. Os urros... Como, de repente, não vi mais Diadorim! No céu, um pano de nuvens... Diadorim!

Naquilo, eu então pude, no corte da dor: me mexi, mordi minha mão, de redoer, com ira de tudo... Subi os abismos... De mais longe, agora davam uns tiros, esses tiros vinham de profundas profundezas. Trespassei.

Eu estou depois das tempestades.

O senhor nonada conhece de mim; sabe o muito ou o pouco? O Urucuia é ázigo_ Vida vencida de um, caminhos todos para trás, é história que instrui vida do senhor, algum? O

senhor enche uma caderneta... O senhor vê aonde é o sertão?

Beira dele, meio dele?... Tudo sai é mesmo de escuros buracos, tirante o que vem do Céu. Eu sei.

Conforme conto. Como retornei, tarde depois, mal sabendo de mim, e querendo emendar nó no tempo, tateando com meus olhos, que ainda restavam fechados. Ouvi os rogos do menino Guirigó e do cego Borromeu, esfregando meu peito e meus braços, reconstituindo, no dizer, que eu tinha estado sem

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas acordo, dado ataque, mas que não tivesse espumado nem babado. Sobrenadei. E, daí, não sei bem, eu estava recebendo socorro de outros – o Jacaré, Pacamã-de-Presas, João Curiol e o Acauã : que molhavam minhas faces e minha boca, lambi a água.

Eu despertei de todo – como no instante em que o trovão não acabou de rolar até o fundo, e se sabe que caiu o raio...

Diadorim tinha morrido – mil-vezes-mente – para sempre de mim; e eu sabia, e não queria saber, meus olhos marejavam.

– “E a guerra?!” – eu disse.

– “Chefe, Chefe, ganhamos, que acabamos com eles!...

João Goanhá e o Fafafa, com uns dos nossos, ainda seguiram perseguindo os restos, derradeira demão...” – João Concliz deu resposta. – “O Hermógenes está morto, remorto matado...” –

quem falou foi o João Curiol. Morto... Remorto... O do Demo...

Havia nenhum Hermógenes mais. Assim de certo resumido – do jeito de quem cravado com um rombo esfaqueante se sangra todo, no vão-do-pescoço: já ficou amarelo completo, oca de terra, semblante puxado escarnecente, como quem da gente se quer rir – cara sepultada... Um Hermógenes.

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