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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas quase atirei. Desertor? Ah, não, esse o Sidurino era, correndo por um cavalo. Ah – e bem fosse! – ia voltear para o Cererê-Velho, chamar, trazer reforço, para darem retaguarda. E eu casei com meu rifle, vim, vim, vim. Desconheci temor nenhum. Vivo em vida, me ajuntei com os companheiros. Meus homens! – dei ordens. As balas estralejavam.

Foi fogo posto. Arrasar que vem de para onde não se olha: feito forte sol; e vem como sol nascendo! Rachavam lascas, espatifavam. Aí podiam descascar os arvoredos de uma dessas, floresta toda inteira... Apraz que os ares!

Ah esses meus jagunços – apragatados pebas – formavam trincheira em chão e em tudo. Eles sabiam a guerra, por si, feito já tivessem sabido, na mãe e no pai. Só se aos uivos urros, se zurrava. Aí – como tomei chegada e peguei postura. Valia ver –

comandar? Gritei: – “Chagas de Cristo!...” Os meus davam ainda outros gritos. A carabina, em mãos, coisa mexedora. A gente disparava dentro dos quintais, avançávamos. E de detrás das casas. E guardávamos o emboque da rua. Diz que lê?; diz-que escreve! Tiro ali era máquina. Aos tantos, juntos, relando – cinco deles, cinco dedos, cinco mãos. A gente tinha de caber em buracos escavacados. A cabeça da gente é que dá voltas, mesmo

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas no esconderijo, como para se desviar. Mas não se tem medo a gasto. Eu dizia: fré! – e botava bililica na agulha. – Amanso! Eu queria que Diadorim não se descuidasse. Diadorim disse: –

“Toma cautela, Riobaldo...” Diadorim se descabelou, bonitamente, o rosto dele se principiava dos olhos. Eu comandava? Um comanda é com o hoje, não é com o ontem. Aí eu era Urutu-Branco: mas tinha de ser o cerzidor, Tatarana, o que em ponto melhor alvejava. Medo não me conheceu, vaca! Carabina. Quem mirou em mim e eu nele, e escapou: milagre; e eu não ter morrido: milagremente. A morte de cada um já está em edital. Dia de minha sorte. O que digo e desdigo; o senhor escute. Mas o inimigo fuzuavatiroteio total.

Tudo ali era à maldição, as sementes de matar. De ouvir o renje uimuim dessas, perto de nossos cabelos – eles sobem, de si

–; e chega a doer de nervoso: mas dói real, como se umas daquelas atravessassem até buracal do olho da gente, mas feito dor que vara do céu-da-boca, por dentro dos ossos, pontudamente, igual quando às vezes se come sorvete de gelo...

Era a cara pura da morte. – Av’ave! Marcelino Pampa, logo esse.

Nem olhou ninguém. Curvou o corpo quase se quebrando em dois, ia encostar testa no chão; e largou tudo, espaireceu as mãos, e bofou da boca diversos dois feixes de sangue. Sangue dele.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Semelhava que um boi nele tivesse pisado... E eu desfechei dez, para a frente, vingando fosse. Daí, vigiei. Um homem morre mais que vive, sem susto de instantaneamente, e está ainda com re-mela nos olhos, ranho moco no nariz, cuspes na boca, e obra e urina e restos de de-comer, nas barrigas... Mas Marcelino Pampa era ouro, merecia lágrimas dalguma mulher perto, mão tremente que lhe fechasse bem os olhos. Porque não se vê outro assim, com tão legítimo valor, capaz de ser e valer, sem querer parecer.

E uma vela acesa, uma que fosse, ali ao pé, a fim de que o fogo alumiar a primeira indicação para a alma dele – que se diz que o fogo somente é que vige das duas bandas da morte: da de lá, e da de cá... E eu peguei puxei o corpo para não ficar em cima dum vestígio de lama – porque ali de noite tinha chovido; e Diadorim panhou o chapéude-couro, com qual tapou o rosto do dono. A paz no Céu ainda hoje-emdia, para esse companheiro, Marcelino Pampa, que de certo dava para grande homem-de-bem, caso se tivesse nascido em grande cidade. Ah pápá! falei fogo. Aquilo em volta se arrebentava, balalhava.

Mas a gente tinha conseguido de firmar possessão –

agarramos mais da metade do arraial, do arruado. O sobrado restou nosso. Com anseio, olhei, para muito ver, o sobrado rico, da banda da mão direita da rua, com suas portas e janelas

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas pintadas de azul, tão bem esquadriadas. Aquela era a residência alta do Paredão, soberana das outras. Dentro dela estava sobre-guardada a Mulher, de custódia. E o menino Guirigó e o cego Borromeu, a salvos. Da parte de cima, das janelas, e das portas, no rés, vez a vez meus homens descarregavam. Aquele sobrado, sobradão, parava lá, sobre sereno – me prazia tudo comandando.

Ir lá?

– “Atual, em riba, estão dois: um é o José Gervásio.

Embaixo, na venda, uns quatro...” – quem me informou disso foi o Jiribibe, em meu ouvido carecendo de altear voz, tanto que espingardaria estrondava.

– “Pouco é, para ações. Tu vai lá, Riobaldo...” – quem me disse foi Diadorim, em tanto. Surriada zuniu. O tutuco das balas, e as que batiam no chão, as raivosas, tirando terra.

Atirei, seco. Umas três ou quatro vezes. Carreguei em novamente.

– “Aqui é que é meu dever, Diadorim. Por o mais perigoso...” – eu falei, muito alerta. Tudo que Diadorim aconselhasse, eu punha de remissa; a modo de que com pressentimentos.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas

– “Tu vai, Riobaldo. Acolá no alto, é que o lugar de chefe.

Com teu dever, pela pontaria mestra: que lá em riba, de lá tu mais alcança... Constante que, aqui, o negócio está garantido...”

– ele disse, mansinho, de me persuadir.

Troquei o rifle-papo pelo máuser, movi mão, fogo. Nesse ato, nem sei se matei. Às artes, lá, o sobrado, que torna mirei e admirei. Meu posto? O quanto também olhei Diadorim: ele, firme se mostrando, feito veadamãe que vem aparecer e refugir, de propósito, em chamariz de finta, para a gente não dar com o veadinho filhote onde é que está amoitado... Aquele sobrado era a torre. Assumido superior nas alturas dele, é que era para um chefe comandar – reger o todo cantão de guerra!

– “Eu vou...” –; fui.

Deixado João Curiol no meu lugar, e esse tinha muita valia.

Rastejei, tomei saída, conforme tinha de ir: pelos quintais das casas. Ainda virei, relanceando. Sempre queria ver Diadorim. O

querer-bem da gente se despedindo feito um riso e soluço, nesse meio de vida.

Avancei, furando os terreiros e as hortas das casas, eu debaixo de armas, nos arreios. Toda a parte ali tinha gente

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas nossa, que com brados me saudavam: conforme vale, quando um chefe mostra mor valentia. Gente com o Jõe Bexiguento, sobrechamado o “Alpercatas”. E estava lá o João Nonato – que dava boa-sorte, com o bom ar. Avancei, rompi uma cerquinha de taquara, contornei um pano de muro, onde o Paspe tinha furado os adobes, cavando torneiras. E dei fé: que o Jiribibe vinha me acompanhando. O menino bom. Os olhinhos dele a gente só via era porque eram inventados de pretos. – “Será, da banda de lá, estão bem governando, os clavinoteiros?” – ele me disse. Aí, por que me dizia? Soubesse não que o brinquedo agora era mortal? Sobre o que, se riu, me apresentando: o que era, no fofo da terra, debaixo duma roseira, um gatinho preto-e-branco, dormindo seu completo sossego, fosse surdo, refestelado: ele estava até de mãos postas... Mas, perto de mim, veio grão d’aço – que varou cheiamente um pé de mamoeiro. –

“Vigia, te abaixa!” – eu ralhei com o Jiribibe. A gente ouvia a urração, ou cita seja, destemperada, dos inimigos, e um desentoar de cantiga, que toda pessoa era filho-da, segundo a qual. Aos canalhas! Mas mais xingava o Jiribibe, ripostando. Daí, depressa, ganhamos trincheiras, atrás dum forno de assar biscoitos: e berraram punhadão de disparos, para nosso lado, chega semelhava rajada de chuva-de-pedra. Lugar danoso!

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Aguardamos, deitados. – “Te foge, Jiribibe, que figuro eles têm gente atirando de cima de árvores...” – eu total aconselhei.

Assim rastejávamos. E pouco faltava para o quintal do sobrado: só uma cerca miúda, com um chuchuzeiro dependurado com chuchus grandes; eram uns chuchus enormes. – “Vam’ boro, Chefe!” – que o Jiribibe gritou. E caiu morto, para pra cá –

acertado na testa. Não gritei, e rastejei. Ao quando dar o derradeiro lance, na porta da cozinha do sobrado, derrubei uma bacia grande, que lá em-pé encostada estava. Aí entrei. Aquela bacia atrás de mim levou uma carga de tirázios, com a qual retiniu toda, lata velha... No eu entrar, os que ali vi me saudaram: – “Epa, Chefe!” – Respondi: – “Eh, epa!” E, naquele instante, pensei: aquela guerra já estava ficando adoidada. E

medo não tive. Subi a escada.

O senhor escute meu coração, pegue no meu pulso. O

senhor avista meus cabelos brancos... Viver – não é? – é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver é que é o viver, mesmo. O sertão me produz, depois me engoliu, depois me cuspiu do quente da boca... O senhor crê minha narração?

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Subi aquela escada-de-redor, escutando a madeira nos meus passos, e avisando: – “Quem evém sou eu, minha gente!”

– repetido. Aquilo meio sombrio, o ar que dava era como de ser antigo dia-de-domingo. Aí, notei que eu mesmo arfava um pouco, e estava com uma sede. Por lá devia de ter algum pote fresco – imaginei. – “É eu! minha gente...” – eu disse; mesmo assim eles se assustaram primeiro, depois tomaram satisfação por me ver. Os que na sala que dava para a frente da rua estavam, os quais eram: que o Araruta e o José Gervásio, nas armas; e o menino Guirigó e o cego Borromeu, assentados no banco, encostado na parede para o interno. Esses dois, muito juntos, como que tremiam um tanto; deviam de estar rezando. –

“Que e a mulher?” – eu indaguei.

O menino Guirigó queria mostrar: ela estava presa num quarto. Ela também estivesse rezando? Corredor velho, para ele davam tantas portas, por detrás duma delas tinham fechado a mulher, num cômodo. A chave estava na mão do cego Borromeu. Era uma chave de todo-tamanho, ele fez menção de me entregar; rejeitei. – “Tem talha d’água, por aqui?” – eu disse, eu tinha uma pressa desordenada, de certo. – “Diz que lá embaixo tem...” – foi o que o menino Guirigó me deu resposta.

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