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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas singela, que era uma simpatia com ele se tratar. - “Me ensinou um meio-mil de coisas... A coragem dele era muito gentil e preguiçosa... Sempre só depois do final acontecido era que a gente reconhecia como ele tinha sido homem no acontecer...”

Ao que, numa tarde, seo Ornelas – segundo seu contar –

proseava nas entradas da cidade, em roda com o dr. Hilário mais outros dois ou três senhores, e o soldado ordenança, que à paisana estava. De repente, veio vindo um homem, viajor. Um capiau a pé, sem assinalamento nenhum, e que tinha um pau comprido num ombro: com um saco quase vazio pendurado da ponta do pau. - “... Semelhasse que esse homem devia de estar chegando da Queimada Grande, ou da Sambaíba. Nele não se via fama de crime nem vontade de proezas. Sendo que mesmo a miseriazinha dele era trivial no bem-composta...” Seo Ornelas departia pouco em descrições: - “... Aí, pois, apareceu aquele homenzém, com o saco mal-cheio estabeleci do na ponta do pau, do ombro, e se aproximou para os da roda, suplicou informação:

– O qual é que é, aqui, mó que pergunte, por osséquio, o senhor doutor delegado?-ele extorquiu. Mas, antes que um outro desse resposta, o dr. Hilário mesmo indicou um Aduarte Antoniano, que estava lá – o sujeito mau, agarrado na ganância e falado de ser muito traiçoeiro. – O doutor é este, amigo... – o dr. Hilário,

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas para se rir, falsificou. Apre, ei – e nisso já o homem, com insensata rapidez, desempecilhou o pau do saco, e desceu o dito na cabeça do Aduarte Antoniano – que nem fizesse questão de aleijar ou matar... A trapalhada: o homenzinho logo sojigado preso, e o Aduarte Antoniano socorrido, com o melor e sangue num quebrado na cabeça, mas sem a gravidade maior. Ante o que, o dr. Hilário, apreciador dos exemplos, só me disse: – Pouco se vive, e muito se vê... Reperguntei qual era o mote. – Um outro pode ser a gente; mas a gente não pode ser um outro, nem convém... – o dr. Hilário completou. Acho que esta foi uma das passagens mais instrutivas e divertidas que em até hoje eu presenciei...”

Tal, e outras, contou o seo Ornelas, senhor de prosa muito renovada. Pelo que, por todo o seroar, deixei com ele a mão; ainda que às vezes eu ficasse em dúvida: se competia, sendo eu um chefe, aturar que um outro fiasse e tecesse, guiando a fala. E

também, com o tardio da noite, veio a hora de se desapear da mesa, e eu teimei em rejeitar oferta de cama em catre em quarto ou sala, mas fui fora, caçar o meio da minha gente; por sinal que armei rede por entre cajueiro e jenipapeiro, perto dos currais, e, para o segundo sono, mudei de rearmar, de faveira para faveira, lá para dentro duma cerca. Mas, na mesa, aquele menino Guirigó,

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas na senvergonhice inocente de sua pouca geração, tinha adormecido completo antecipadamente, e eu consenti que as mulheres carregassem o coitadinho diabinho, pesado como um de maioridade, e levassem para dormir sei lá onde, por entre colchão e lençol. A vida inventa! A gente principia as coisas, no não saber por que, e desde aí perde o poder de continuação –

porque a vida é mutirão de todos, por todos remexida e temperada. Assim eu tinha trazido o pretinho Guirigó, do Sucruiú, e agora ele estava indo para se deitar no limpo e fofo, nos braços das jovens e donzelas carregado. Somente que, inteirado no sono, ele mesmo disso não soubesse, nem aproveitasse, do que em sua existência dele era que estava se sucedendo. - “A pois, boa noite o senhor tenha, Chefe, com um aprazível amanhecer...” – assim seo Ornelas me saudou. Ao que eu, regozijado e bem servido, retribuí a ele, quase com aquelas mesmas palavras.

As partes, que se deram ou não se deram, ali na Barbaranha, eu aplico, não por vezo meu de dar delongas e empalhar o tempo maior do senhor como meu ouvinte. Mas só porque o compadre meu Quelemém deduziu que os fatos daquela era faziam significado de muita importância em minha vida verdadeira, e entradamente o caso relatado pelo seo Ornelas,

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas que com a lição solerte do dr. Hilário se tinha formado. Aí, narro.

O senhor me releve e suponha.

No outro dia, acordei com a boca amarga e doce, e o través de baixar alguma ordem comandando; esse dia com essa noite não se pertencia. Achamos, de recrutagem, os cavalos que pudemos – o que foram os dez, os burros e mulas também contados. O seo Ornelas honrava os atos. Além do que quis que eu falhasse, para a festa, com o meu povo; mas achei mais sobressaído ir mesmo embora, exato. Semeei para trás de mim o bom ensejo, para poder ser de vir a colher, mais para diante, outros assim tão bons e melhores. Sincero o dito, a gente agradeceu, subindo todos em selas, e a limpo seguimos – a manhã ainda com diversas claridades. Seo Ornelas externou as despedidas, com o x’totó de foguetes, conforme se lembrou de mandar começar a soltação, cujos por bem uma meia-dúzia. O

pessoal deu vivas, gloriando o mastro com a bandeira do santo.

Ao que, pelo mais, puxei em frente, pondo meu cavalo: com espora, rédea e pernas. Deciso.

Rompemos umas duas léguas, em estradas de muita areia.

Mas eu já estava agastado. O que nesta vida muda com mais presteza: é lufo de noruega, caminhos de anta em setembro e

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas outubro, e negócios dos sentimentos da gente. Assim, de repente, eu achei: que a conversa com aquele seo Ornelas tinha me rebaixado. Aos poucos eu tivesse perdido a vigiação de minha alçada, no acaso da presença dele, debaixo daqueles telhados. A opinião das outras pessoas vai se escorrendo delas, sorrateira, e se mescla aos tantos, mesmo sem a gente saber, com a maneira da idéia da gente! Se sério, então, um tinha de apertar os dentes, drede em amouco, opor seus olhos. A cuspir para diante. Alguma instância, das outras pessoas, pegava na gente, assim feito doença, com retardo. Apartado de todos – era a norma que me servia – no sutil e no trivial. A culpa minha, maior, era meu costume de curiosidades de coração. Isso de estimar os outros, muito ligeiro, defeito esse que me entorpecia. O tanto que, daí depois, essas pessoas andavam em minha desilusão: de repente todos estavam endoidecendo... Do agravo, como ia em pensar, achei asperezas até na goela; e o cuspe não cabia em minha boca, salgado como um suadouro de cangalha. Aí então, estou lembrado, vendo como vi o Alaripe de mim a curta distância – e que, em tudo comedido, guardava o balanceio brando no coxim da sela, de vaqueiro de gado tangedor. Chamei para ele vir.

- “Ah, o velho entregou os cavalos, hem, Alaripe? Coração dele aguou...” – blasonei. - “... Deu por paz. Alaripe, ei, essa paz

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas não te enjoa?” - “Ah, é deveras... A uns, é o que sucede...” - “Mas a paz não é boa? Então, como é que ela enjoa, assim mesmo?” -

“Natureza da gente, mal completada...” - “Tudo tu vê, Alaripe: eu acho que o enjôo da paz será também algum outro medo da guerra...” - “Pode que seja.” - “E mas só o medo da guerra é que vira valentia...” - “Mal bem não entendo, meu chefe, mas deve de ser...” - “Pois não é? Só quando se tem rio fundo, ou cava de buraco, é que a gente por riba põe ponte...”

Assaz essas coisas, eu inventava em fala, para ter meus eixos, meus aços. A boca do boi quer sal – o sal do barro vermelho. Eu estava chamando umas bizarrias. Força dessa minha maneira: eu estava pelo calor de tudo. E a gente ia indo, aquela comprida cavalhada. Um ribeirão raso e estreito se passou

– nem bem seis braças. Riacho desses que os que vão morrer chamam de rio-Jordão. Todo o mundo passou, por tanto, diante de mim, eu esbarrado em pé – isto é, a cavalo.

A virar o ar, viemos; em caminho não se descansou um dia.

Agora eram os brejos da beira do Paracatu. Mas eu tinha conseguido encher em mim causas enormes. Dispor do ror daquilo eu não conciliava, conforme perseguia, custoso, vermelho meu. Somente quis, nem podia dizer aos outros o que

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas queria, somente então uns versos dei, que se puxaram, os meus, seguintes:

Hei-de às armas, fechei trato

nas Veredas com o Cão.

Hei-de amor em seus destinos

conforme o sim pelo não.

Em tempo de vaquejada

todo gado é barbatão:

deu doideira na boiada

soltaram o Rei do Sertão...

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