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descansou tudo no chão, que da boca e das ventas ajorrava sangue: rebentado dos estômagos e dos peitos. Mas o Suzarte, que antes do ranger-sela já tinha escapado os pés das estribeiras e pulado solerte no chão, tomou um átimo, e relatou: – “Eles estão.” E – para o resto – ele apontou com o dedo.

O Hermógenes, mor maldito! Ele vinha errado de mim, os Hermógenes, eles. Davam arte de contornar da banda do norte, às tantas. O Suzarte tinha avistado, no dia antes, o movimento dos vigias costaneiros, e definido, de remoto, o corpo do bando:

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas poeira duns oitenta... Era o Hermógenes. Contornava, feito gavião, vonje, como comigo não tinha nenhuma lei de combinação; e esse era o direito dele, de às-avessas de guerra! A um mal, o mal; mas o perigo de astúcia aquela hora mudava maior de lugar. Porque eles podiam vir e sobrevir. Ou menos retos; ou, mesmo – enquanto a gente parava ali, oferecidos, em cama-de-caça – também eles dispunham de revirar,’de supeto, no Paredão, por outra banda, e arrebatar a Mulher, contra meus só dez homens, fazer o que quisessem, e para depois emendarem caminho para o Cererê-Velho, em nós, com toda retaguarda...

Revesti isso, num relance. Arvorei a minha chefia. Meus jagunços esperavam a certa decisão: aí eles nem me olhavam. –

“Maximé...” – eu disse. Resumi. Apre, o que eu ia dizendo, no meio do som de minha voz, era o que o umbigo de minha idéia, aos ligeiros pouquinhos, manso me ensinava. E era o traçado.

Tanto que dei ordem. Repartição de gente – se carecia –: determinei assim. Metade – metade. Os com João Goanhá e João Concliz ficavam, altos, no Cererê-Velho, cumprindo espera afoita. E chamei os outros, e Marcelino Pampa de soto-comando: rompemos para o Paredão. Tudo se quatreou num pronto, no volver-voltear dos cavalos. Já um giro dava nos campos, já a gente se esquipava. E, Diadorim, que vinha atrás de mim uns

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas metros, quando virei o rosto vi meu sorriso nos lábios dele.

Íamos redeando resolutamente, dando as costas para o sol-entrando. Dividi idéia da guerra que ia ser, no brutalhal. Vindo a cavalo assim, era que eu pensava melhor, nas menos margens.

Do Cererê-Velho até no Paredão, seis léguas; e eu tinha de deixar ao menos um homem em cada meia-légua, em estação, para em caso serem capazes de traspassar recado, de tudo por tudo, com a rapidez da guerra. Eu fiz, só ia sendo. Todo o resto, que viesse, todo o igual. E meus homens cumpriam, capitalmente. Alegria do jagunço é o movimento galopado.

Alegria! Eu disse? Ah, não, eu não. O senhor de repente rebata essa palavra, devolvida, de volta para os portos da minha boca...

Que foi, o dito? Novas novidades.

Conforme vínhamos, a sério tocar, e já a bem uma légua do Paredão se estava, quando apareceu o Trigoso. Esse retornava de traquejar as beiras da banda do sul, e estivesse jejuno virgem de toda nossa ciência derradeira. Do Hermógenes nem nada sabia – pois, justo. Mas queria por força relatar. Disse coisas sem proveito. Disse. Carecia de impor no meu espírito o rebuliço, de esfriar em mim o sangue nas veias?!

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas

– “... No Saz – uma veredinha, três léguas abaixo –

Chefe... Vaqueiro que achei, que me disse, remendando mensagem: que é um homem, chamado Abrão, com uma moça bem arrumada... Que vêm vindo, beiradeando o rio, e a tralha deles trazem em dois burros cargueiros, e condução de dois camaradas...”

Ele falou. E foi a coisa mais de repente, na minha vida.

Otacília! Como tudo neste mundo podia ser, e como a minha mente tinha logo puxado de arranco, das palavras do Trigoso, todo verdadeiro significado! Inteirei, comigo: – Seô Habão?

Vigia se ele não traz consigo uma donzela formosíssima, ou se trazem-apenas desilusão... E o Trigoso disse, estava dizendo completo. Ela era! Otacília. Otacília. Eu tinha de escutar, outra vez, o Trigoso da verdade das coisas menos sabia. Imaginar, eu imaginava. Otacília – a vinda dela, sertão a dentro, por me encontrar e me rever, por minha causa... Mas achava a guerraria de todos os jagunços deste mundo, raivando nos Campos-Gerais. Terríveis desordens em volta dela, longe saída de casa de seu pai, sem garantias nenhumas... Que proteção ia poder dar a ela esse seô Habão, com dois pobres camaradas perrengues, tudo tão malaventurado, como se estavam? Engoli amargos. Me rodeavam meus homens, o silêncio deles me entendia, como

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas bem cientes. Reperguntei: quem sabe, se assim paravam na beira do rio, se então não deviam de ter retrocedido caminho, se encaminhando também para o Paredão?

– “Ah, que não, Chefe. Vaqueiro me disse: de lá para lá, iam indo... Fugindo do perigo para o perigoso... E, no Paredão, mesmo dito, já não tem mais pessoas de sede. As famílias todas, e os moradores, camparam no pé, desgarrados, assim que o medo chegou lá... O medo é demais de grande...”

Estremeci, mor. Eram as horas. Só de ouvirem falar no vago do Paredão, meu povo afastava os cavalos, já querendo regalopar. Entendi e mais entendi, rodei mão na cara. Incerteza de chefe, não tem poder de ser – eu soubesse bem. Mas, era eu ali, em sobregoverno, meus homens me esperando, e lá Otacília carecendo do meu amparo. E a guerra que podia dar de recomeçar, na boca dum momento, ou antes. Que de mim? Que diversas honras diferentes homem tem, umas às outras contrárias. Na estreitura, sem tempo meu, eu podia desdeixar meus homens? E tinha de ir. Não por bons-e-belos, ah. Mas minha Otacília vinha, em hora tão despertencida, de todas a vez pior. Eu podia requerer amor: – Me dê primavera? Vi tudo indeciso de mim, estarrecido – as pedras pretas no meio do

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas capim, o campo esticado. Só fiz que no forte do sentir eu pudesse era este ameaço de reza: – Me dê o meu, só, e que é o que quero e quero!... – ao Demo ou a Deus... A lá eu ia. Otacília não era minha noiva, que eu tinha de prezar como quase minha mulher? Meio do mundo.

Vai, e eu disse: lá ia, no vou e volto; e já mesmo. Se diz –

era um pulo. Para revir e dar guerra, tempo havia de ter. Os outros fossem, para o Paredão, tocassem. Já estava escurecendo.

Só mais que, nesse propósito, muitos acharam de me acompanhar: alegando que, à tal coisa, como chefe, eu carecia de não querer sozinho ir. Abanei cabeça. Em assim, aceitei dois: Alaripe e o Quipes – companhia que me bastava. Eu não ia desarrumar negócio, afracar o forte de minha gente, com mais homens arrecadados. E sendo o de ser. Arremessei ordens, joguei meu cavalo.

Porém, porém: e esbarrei, em saída. Esbarrei, para repontar Diadorim, que vinha vindo. – A lá, que é?! – eu disse, asp’ro. Diadorim quisesse me acompanhar, eu duvidava, de que motivos. Não me respondeu. Li nele a forma duma ira, como apertou os olhos em direitura do campo. – Tu não vai para o Paredão, tu teme? – eu ainda buli. Diadorim me empaliava, a

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas certas. O ódio luzente, nele, era por conta de Otacília... Ele me ouviu e não disse, ladeando o cavalo. Mirou meio o chão; vergonha que envermelhou. Agora ele me servia dáv’diva d’amizade – e eu repelia, repelia. Mas, fora de minha razão, eu precisei com urgência de ser ruim, mais duro ainda, ingrato de dureza. Invocava minha teima, a balda de Diadorim ser assim. –

Tu volta, mano. Eu sou o Chefe! – pronunciei. E ele, falando de um bem-querer que tinha a inocência enorme, respondeu assaz:

– “Riobaldo, você sempre foi o meu chefe sempre...”

Ainda vi como ele – com a mão, que era tão suave em paz e tão firme em guerra – amimava o arção do selim. Repostei um feio xingo. Bramei isso, porque o azo de Diadorim me transtornava. Dei de rédea. Com um raspo de galope, peguei junto com Alaripe e o Quipes, que mais adiantados me aguardavam. Nem espiei para trás – não ver que Diadorim obedecia, mas como devia de parar estacado lá, té que o meu vulto desaparecesse. Desjustiça. Mas como a obrigação do dia me arrolava. E em tudo não pensei, tocando para ir fazer-e-acontecer, aos baques do coração. O senhor diria, dirá: como naquela hora Diadorim e eu desapartávamos um do outro –

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas feito, numa água só, um torrãozinho de sal e um torrãozinho de açúcar... Fui, com desejos repartidos.

Tropear cavalgada – nós três: o Quipes, Alaripe e eu – meio a esmo, isso é que se tinha. Refiz o frio da idéia. Mas, nos primeiros ares, nem consegui. Eu despropositava. – Diadorim é doido... – eu disse. Todo me surripiei, instanteante: tanto porque

“Diadorim” era nome só de segredo, nosso, que nunca nenhum outro tinha ouvido. Alaripe só fez que susteve cara de não entender, e disse somente: – Hem? Mas, aí, eu desmanchei o encoberto, dado dando o do passado, me desimportava; consoante expliquei: – “Diadorim” é o Reinaldo... Alaripe ficou em silêncio, para melhor me entender. Mas o Quipes se riu: –

“Dindurinh’... Boa apelidação... Falava feito fosse o nome de um pássaro. Me franzi. – O Reinaldo é valente como mais valente, sertanejo supro. E danado jagunço... Falei mais alto. – Danado... –

repeti. Alaripe, por respeito, confirmou: – Ah, danado é... Por que era que não dava outro jeito, dele comigo conversar, que não fosse com essas reverências?

E a noite já tinha completado escuro, sem lua ainda aparecida, eu não podia avistar a cara dele como formava opinião, as palavras que eu falei ficaram sendo sem dono. –

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: VeredasOtacília é minha noiva, Alaripe. Se alembra dela? Antes de outros silêncios, ele me respondeu: – Alembro... Lá é um fazendão bom...

Até me desgostava o modo zeloso do Alaripe sempre guiar o caminho, cuidados com que separava os galhos e ramagens de árvore, para o meu cômodo de seguir. E a gente estava quase a passo em passo. Donde de conversar desisti muito. A que a qual a escuridão tapava toda boca.

Aonde para que eu ia? – e carecia de ir, conforme meu dever. Mas minha Otacília não devia de ter escolhido justa essa ocasião, tão destacada de propósitos, para vir aventurar entre homens de morte essa delicadeza, sem proteção nenhuma, filha-de-família... Alaripe e o Quipes não descuidavam de tomar tento em tudo, nos lados, no arredor – figurável que era tempo de guerra, em brenhas de noite, e algum inimigo menos-se-espera podia surgir para o mal. Aonde se ia? Rumo dado, reto em cima da Vereda do Saz, ou seguir seguido, rio Paracatu arriba? Tudo como que tudo se me dava à raiva – tanto por causa desse vaqueiro, trazedor de relatos. Nem eu soubesse certo se era o seô Habão, se era Otacília...

A quase metade do céu tinha suas estrelas, descobertas entre os enuveados para chuva. O setestrelo, no poente, a uma

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas braça: devia de regular umas nove horas. Nesse ponto, deu de se ouvir um rumor grande, para dentro do cerrado, removendo nas galharias. Só fizemos que esbarramos, rifles em mãos. – É anta...

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