Mas eu dei de ombros. Para encorpar minha vantagem, às vezes eu fazia de conta que não estava ouvindo. Ou, então, rompia fala de outras diversas coisas. E joguei os ossinhos de galinha para os cachorros, que ali nas margens esperavam, perto da mesa com toda atenção. Cada cachorro sungava a cabeça, que sacudia, chega estalavam as orelhas, e aparava certeiro seu osso, bem abocava. E todos, com a maior devoção por mim, e simpatias, iam passando os ossos para eu presentear aos cachorros. Assim eu mesmo ria, assim riam todos, consentidos. O menino Guirigó comeu demais, cochilava afundado em seu lugar, despertava com as risadas. Aquele menino já tinha pedido que um dia se mandasse costurar para ele uma roupa, e prover um chapéu-de-couro para o tamanho de sua cabeça dele, que até não era pequena, e umas cartucheiras apropositadas. - “Tu é existível, Guirigó... Vai pelos proveitos e preceitos...” – eu caçoava. Aí caçoei: - “Duvidar, é só dar um saco vastoso na mão dele, e janela para pular, para dentro e para fora: capaz de supilar os recheios e pertences todos duma casa-grande de fazenda, feito esta, salvo que seja...” E eu bem que já estava tomando afeição
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas àquele diabrim. Pois, com o Guirigó, as senhoras e moças conversavam e brejeiravam, como que só com ele, por criança, elas perdessem o acanhamento de falar. Mas o seo Ornelas permanecia sisudo, faço que ele afetava de propósito não reparar no menino. Pelo tudo, era como se ele reprovasse minha decisão de trazer para a mesa semelhantes companhias. O menino e o cego Borromeu – aqueles olhos perguntados. - “As colheitas...” –
seo Ornelas supracitava. Homem sistemático, sestronho. O
moderativo de ser, o apertado ensino em doutrinar os cachorros, ele obrava tudo por um estilo velhoso, de outras mais arredadas terras – sei se sei. E quase não comia. Só, vez outra, jogava na boca um punhado seco de farinha.
- “Oxalá, o senhor vai, o senhor venha... O sertão carece...
Isto é, um homem forte, ambulante, se carece dele. O senhor retorne, consoante que quiser, a esta casa Deus o traga...”
Solei um vexame, por não saber a resposta concernente, nuns casos como esse – resposta que eu achava que devia de ser uma só, e a justa, como em teatral em circo em pantomima bem levada. O que é igual quase um calar. À puridade, eu sentia assim: feito se estivesse pego numa ignorância – mas que não era de falta de estudo ou inteligência, mais uma minha falta de certos
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas estados. O que são bobéias: limpei goela, mudei de cara. - “...
Amigo meu Medeiro Vaz, a outra ocasião, travou combates, no ContaBoi, daqui a duas léguas... Contra os de um Tolomeu Guilherme. Defunto amigo Medeiro Vaz, que a alma dele Deus haja... Adiante comandava em frente, para o exemplo...
Enterramos os melhores mortos...” – o homem descrevia. - “Eu sei!” – eu disse, mesmo nada tencionando dizer. A ver: e que é que achava de mim aquele surdo velho? Ah, ele expunha os cabelos brancos, mas faltava em barba que cofiasse. - “Senhor saiba, ao que Medeiro Vaz mesmo foi que entre todos me escolheu, nos olhos da morte, me determinou para capitanear e dar governo... Tolomeu Guilherme, que conheço, é um que deve de estar presentemente embarcando cargas, no porto em Pirapora... Mas sou, de mim, o Urutu-Branco, Riobaldo que Tatarana já fui; o senhor terá ouvido? Aí o mais esse sertão tem de ver, quem mais abre e mais acha!” – assim eu disse, um pouco enfurecido. - “Pois maior honra é a minha, meu Chefe: que em posto de dono, na pobreza desta mesa, somente homens de alta valentia e valia de caráter se sentaram...” – ele glosou, sem sobrosso de perturbação. Dobrei, de costas, castanheteei para os cachorros. Assim ele havia de sentir o perigo de meu desprazer;
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas havia de recear, de mim, aquilo – como o outro diz: ... quando o burro dá as ancas!...
Aí, no rever do instante, percebi os olhos de Diadorim, que me juntavam com uma das mocinhas de lá, das que estavam servindo, a mais vistosa de todas. A mocinha essa de saia preta e blusinha branca, um lenço vermelho na cabeça – que para mim é a forma mais assentante de uma mulher se trajar. Ela estava parada, em pé, no meio das outras, quase encostada na parede. O
olhar de Diadorim era que estava me indicando: que para aquela mocinha ia meu admirar. Administrado, chamei: - “A senhora meninazinha, chega aqui mais perto, me faça obséquio da bondade...” E ela avermelhou as faces; mas veio; reparei que tinha as mãos aperfeiçoadas bonitas, mãos para tecer minha rede.
A ela perguntei a graça.
- “É minha neta...” – foi seo Ornelas quem disse. E mal nem ouvi o nome com que ela me respondeu. Assussurrada, só gostei de ver como ela se mexia por ficar quieta – vergonhosa como uma coalhada no prato.
Mas, nos tons do velho Ornelas, eu tinha divulgado um extravago de susto, recuante, o leve medo de tremor. Isso foi o que me satisfez. Aquele homem, visconde e portoso em tudo, ah,
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas pelo mulheriozinho de sua casa ele não encobria o comprado, eh, sua família dele. A avaliar o de Diadorim, por igual, como mostrava – outros olhos – o arregalo de ciúmes. Aqui digo: que se teme por amor; mas que, por amor, também, é que a coragem se faz.
Deu silêncio. Aquilo tardou assim: feito o tamanduá a língua põe, feito quem quer comungar. A mocinha me tentando, com seu parado de águas; a boniteza dela esteve em minhas carnes. Ela perigou. Não perigou: no instante, achei em minha idéia, adiada, uma razão maior – que é o sutil estatuto do homem valente. Aquela formosura, aquela delicadezazinha, então podiam mesmo ser assim, em toda segurança, feito ela fosse, por um exemplo, filha minha. A mocinha, eu de repente queria, eu gostava de dar a ela muito forte proteção. Diadorim não imaginasse isso. Os olhos de Diadorim não me reprovavam – os olhos de Diadorim me pediam muito socorro. Seo Ornelas empalidecido. Certo que, num rebimbo de raio, eu – pronto! – o Ornelas estava caído muito a morto, com uma bala entrolheolho, antes de notar sequer que eu tinha pensado em arisco de mover nas armas. Diadorim, caso fosse, ele eu desarmava; e meus homens estariam ali, todos de pé, fechando praia de mar. A menina-mocinha, que eu agarrava nos braços, era uma quanta-
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas coisa primorosa que se esperneia... Mas eu não quis! Ah, há-de-o, quanto e qual não quis, digo ao senhor: e Deus mesmo baixa a cabeça que sim: ah, era um homem danado diverso, era, eu –
aquele jagunço Riobaldo... Donde o que eu quis foi oferecer garantia a ela, por sempre. Ao que debati, no ar, os altos da cabeça. Segurei meus cornos. Assim retido, sosseguei – e melhor.
Como que, depois do fogo de ferver, no azeite em corpo de meu sangue todo, agora sochupei aquele vapor fresco, fortíssimo, de vantagens de bondades.
- “Menina, tu há de ter noivo correto, bem apessoado e trabalhador, quando for hora, conforme tu merece e eu rendo praça, que votos faço... Não vou estar por aqui, no dia, para festejar. Mas, em todo tempo, vocês, carecendo, podem mandar chamar minha proteção, que está prometida – igual eu fosse padrinho legítimo em bodas!”
Alto estive, atrás do que falei. Ela se assustou, outra vez, sem capacidade nenhuma, ainda mais ao avermelhar. E eu também mercês colhi – da alegria veraz, nos meus olhos de Diadorim. Será que será, que por contentar profundo Diadorim eu tinha feito aquilo resoluto? Ou por outra, por aquele próprio velho homem, seo Ornelas, que nesse intervalo de instantes
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas dizendo estava: - “Agradece, minha filha, as todas palavras deste grande Chefe, que é declarado sagrado nosso amigo, perante as voltas todas que o mundo dá e der!”
Realmente, então eu virei para ele. E, daí, deveras foi afoito que eu quis com ele outras conversas, e prezei a amizade daquele homem dos sertões transatos. O quanto fiz perguntas. Aceitei o chá de laranjeira, com que sempre dei bem, numa tigela grande, com capricho desenhada. Minha gente junto comigo escutava.
- “O senhor tem noção de quem Zé Bebelo é?” – eu indaguei, uma hora, por me confirmar.
- “Zé Bebelo? Pode ser, não digo... Mas figuro que, esse nome, nunca ouvi, não, meu senhor...” – foi o que ele respondeu.
Ao que – isso era um fato possível? Ele não sabia. De Zé Bebelo, nem do Ricardão, nem do Hermógenes, ele não sabia nem a preposição. Mas, então, tudo naquela parte dos Gerais era ilusão de haver e não se saber. O mundo ali tinha de ser de se recomeçar... - “Sou de pouca política, me desfiz de ser...” – ele externou. O chefe próprio dele, ele não citou; feito se eu ignorasse o qual era. Célebre, esse, também – e que o senhor pode ter conhecido igualmente, pois era um que viajava amiúde
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas até no Rio de janeiro, se bem que famanado homem de cabras em armamentos, na política de jagunçagem. Aquele – sequinho, espigadinho, vestido cidadão, com mãozinhas pequenas, pezinhos – e do ar sempre assustado constantemente. Dele sozinho, o que se diz: umas duzentas mortes! Conheceu, o senhor? No barranco do São Francisco – o Coronel Rotílio Manduca – em sua Fazenda Baluarte! Agora, paz.
Mas aí eu perguntei a respeito daquele seô Habão, só mais para variação de conversa, mudando o propósito. Em resposta assim ouvi: - “Esse um, vem a ser até parente de minha mulher, e longe meu aparentado... Mas de desde mais de uns dez anos que cortamos conhecimento.”
E como eu atalhei o assunto, por convinhável nas boas normas, pois a lembrança dum inimigo deixa qualquer homem agastado, o seo Ornelas relatou à gente diversos casos. E o que em mente guardei, por esquipático mesmo no simples, foi o seguinte, conforme vou reproduzir para o senhor. O qual se deu da parte da banda de fora da cidade da Januária.
Seo Ornelas, nessa ocasião, tinha amizade com o delegado dr. Hilário, rapaz instruído social, de muita civilidade, mas variado em sabedoria de inventiva, e capaz duma conversação tão
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