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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas ordem de paz. – “E adonde estará o Hermógenes, próprio?” – eu indaguei. Alguém soubesse. De se ter ouvido algum deles, ferido ou agarrado preso: que o Hermógenes não fazia parte atual daquele bando – mais acontecia de andar, com outros, muito adiantado dali, vinte léguas, avanço no poente. Mas, então? E

quase nossa gente toda já estava vinda, para apreciarem o derradeiro aprumo do Ricardão. Eu dei comando.

- “Seô Ricardão, o senhor saia para fora!” – eu gritei, do protegido donde estava.

Ele não deu resposta. Daí: – “Pau de fogo, minha gente!”

– eu procedi. Pipocaram. Durante o que, a cafua começava nas últimas. Mas de dentro ninguém não ripostou; nem um tiro, nem. Ele estivesse morto? Não tinha munição? Esperei o engolir em seco três vezes. Daí, regritei: – “Seô Ricardão, o senhor se saia!...” E ele, no esquisito, respondeu: – “Vou sair!” –

com um grito natural. Enérgico, para o meu povo, eu ordenei muita paz. E o todo silêncio. Espiei.

Lá acolá, o homem abriu devagar os cacos de porta. Saiu, deu uns passos. Como vinha, alto, chapéu na cabeça, até meio sorridente. Não se esbugalhava. Assim estivesse pensando que ia ter julgamento? Achei que. E ele não estava ferido. Caminhou

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas mais. Sendo que – e, aí, foi minha idéia? – ah, não; mas vi que Diadorim, de ódio, ia pular nele, puxar faca. Só fiz fim: num tirte-guarte: atirei, só um tiro. O Ricardão arriou os braços, deu o meio do corpo, em bala varado. Como no cair, jogou uma sua perna para lá e para lá. Como caiu, se deitou. Se deitou, conforme quase não estivesse sabendo que morria; mas nós estávamos vendo que ele já morto já estava.

Acho deveras que todo o mundo respirou com suspiro.

Digo que esta minha mão direita, quase por si, era que tinha atirado. Segundo sei, ele devolveu Adão à lama. Só estas minhas artes de dizer – as fantasias...

– “Não enterrem este homem!” – eu disse.

A justiça. Mas, mesmo, como é que se ia poder enterrar a quantidade deles, mortos naquele dia?

Ao quando retornávamos para a Serra, eu ia olhava o céu, vez em quando. Primeiro urubu que passou – foi vindo dos lados do Sungado-do-A – esse se serenou bem, que me parecia uma amizade de aceno. Avoeje... Mas – o que ia suceder por diante!

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Somenos sei, e conto mal certo, o que os três dias foram, no seguinte. Se soalerte o senhor, que estamos descambando: o senhor mesmo se prepare; que para fim terrível, terrivelmente.

Eu podia? Como é que vou saber se é com alegria ou lágrimas que eu lá estou encaixado morando, no futuro?

Homem anda como anta: viver vida. Anta é o bicho mais boçal... E eu, soberbo exato, de minha vitória! Conforme prazia o dito do cego Borromeu, que não se entristecia: – “Ah, eu nunca botei em antes o nariz nestes campos...” Soscrevo. Mas, ele, o que carecia de querer saber, às vezes perguntava. Desses lugares, o divulgado natural, pedia pergunta. Aí, glosava: Macambira das estrelas,

quem te deu tantos espinhos?

Tibes! Eu, não. Ia demandar de outros o que eu mesmo não soubesse, a ser: nestes meus Gerais, onde eu era o sumo tenente? Não me respondiam. Ninguém mesmo ninguém. A gente vive não é caminhando de costas? Rezo. O que é, o que é: existível como fundo d’água. Agora eu cismo que o cego Borromeu também só do que já sabia era que indagava. Se não, se não, o senhor verse, como bula santa; a cita não é revelável:?

Macambira das estrelas,

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredasxiquexique resolveu:

– Quixabeira, bem me queira,

quem te ama, Bem, sou eu...

Soletrei tudo. Assim ele cantava. Atrás, o menino Guirigó, se envelhecendo, sobre outro cavalo. E a mulher do Hermógenes, montada também, magra malvaz, como podia estar indo em cima duma nuvem. Ela desenrolava a cara, daquele xale verde, sem vexame nenhum, e o que espiava da gente era por riba do queixo. Quem sabe do orgulho, quem sabe da loucura alheia? Ela comia, ela bebia; em um tempo, prazida e moça, tinha se casado. Só com desgosto dos prazos da vida foi que enxerguei aquela mulher... Coisa dita não disse. A pois. O

dia estava por dado. Sol rachava os barros. A mulher, o menino e o cego – aqueles saíram, tocaram. Estavam por ordem minha trazidos do brugo do morro, mas sendo levados, sempre de guarda, para o arraial do Paredão: estipados com conduta de dez homens.

Esta é que era a razão: que o Hermógenes, da banda do poente, podia vir. Viesse feito! Como que estavam engrossados com quantidade de bandidos jagunços – se soube – e alguns daqueles, escapes com vida do Tamanduá-tão, já devia de ter ido

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas a ele, levasse aviso. Soltei a faro meus vigiadores – para ter as distâncias vindo medidas. Ah, mas, demeio a parte-do-poente e o Paredão, a passagem certa era um lugar muito plausível, no morro, e que se chamava o Cererê-Velho. Aonde fomos.

Estugados, em boa marcha. Até que o mormaço bateu as asas. Deu trovão, com ventos trapes. Dizendo todos, disso, que ia breve chover – para minha desvantagem. Em beira do mato, no Cererê-Velho, se trabalhou com facão em ramagem e cipó, armando tipóias e latadas. Como que melhorou a experiência do tempo, adiando; esbarrou o vento rufado. Mas aquele trabalho nosso era carecido, folgar não se pôde; nem para palavra minha com Diadorim, que era de todo dia; conforme bem alembro.

Noitou. Conforme fui dormir, recansado de falfa. Dormir por pouco. Conforme foi, e que o meu espírito não queria. Que, de repente, acordei.

Madrugada de meia-noite. A lua já estava muito deduzida, o morro e o mato misturados. Relanceei em volta. Todo o mundo dormindo. Só o chochorro mateiro, que sai de debaixo dos silêncios, e um ô-ô-ô de urutau, muito triste e muito alto. Depois, ouvi o uivado inteiro dum cão. Os companheiros todos dormindo, acordado só eu, alevantado de noite. Pesou por diante

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas de meu coração. Devi àquele cão mal-uivante? Idéia tristezinha, que me veio. Por que era que só eu tinha acordado, desoras, tão antes de todos?

Mas eu mesmo queria prosperar de olhos abertos, carecia.

O que produzia, era eu agüentar até passar o arrocho no coração.

Deus que me punia – que hora tem – ou o demo pegou a regatear? E entendi que podia escolher de largar ido meu sentimento: no rumo da tristeza ou da alegria – longe, longe, até ao fim, como o sertão é grande...

Arte que espiei arriba, levei os olhos. Aquelas estrelas sem cair. As TrêsMarias, o Carretão, o Cruzeiro, o Rabo-de-Tatu, o Carreiro-de-São-Tiago. Aquilo me criou desejos. Eu tinha de ficar acordado firme. Depois, daí, vi o escuro tapar, de nuvens.

Eu ia esperar, fazendo uma coisa ou outra, até o definitivo do amanhecer, para o sol de todos. Ao menos achei de tirar, do tôo da noite, esse de-fim, canto de cantiga: Remanso de rio largo...

Deus ou o demo, no sertão...

Amanheceu com chuva. Mundo branco, rajava. Deu raio, deu trovão, escorremos água; e tudo que se pensou ou se fez foi em montes de lama. Diz o senhor, sim: assim é dia-de-véspera?

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Receio meu era só pela fuga de cavalos. Escapulissem – eles sabem como o Gerais é espaçoso; como no Gerais tem disso: que, passando noite tão serena, desse de manhã o desabe de repente daquela chuva... E igual, de feito, que antes do meio-dia estiou, calibre que ventava. Sol saído; e é ligeiro, a gente vendo, que essa areia seca seus estados... Medi horas. Só o cruzo de meus cavaleiros, amontados todos, enchendo e povoando o saco-de-campo, como abelhas na umburana... Surjo que sabiam o que não sabiam: eles estavam desinquietos em modos.

E os vigieiros chegando, conforme voltavam da espiação, mesmo molhados ensopados. Um disse: – “Por longe, não estando viajando para cá... Só se com retardo...” Adonde estava o Hermógenes? O céu botava mais nuvens. Daí, outro: – “Deles, nada...” E eu expedi ainda outros: que saíssem e fossem e vissem, mais mestres, batessem aquelas beiradas de maior mundo. Que modo que senseei, do vazio do tempo em redor – e que eu entredisse: – “O Sertão vem?” Vinha. Trinquei os dentes. Mordi mão de sina. Porque era dia de antevéspera: mire e veja. Mas isso, tão em-pé, tão perto, ainda nuveava, nos ocultos do futuro.

Quem sabe o que essas pedras em redor estão aquecendo, e que em uma hora vão transformar, de dentro da dureza delas, como pássaro nascido? Só vejo segredos. Mas que o inimigo já estava

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas aproximado, eu pressenti: se sabe, pela aperreação do corpo, como que se querendo ter mais olhos; e até no que-é do arraigado do peito, nas cavas, nas tripas. O Hermógenes estava para arremeter, de rancor, se mexendo nos escuros. A guerra estava aprazada em batalha, ali no CererêVelho? Mas meus homens, os troados brabos jagunços, por uma palavra minha desatribulados, agora ao ar que esperavam por mim.

E aí foi quando veio o Suzarte, que desde depois do Tamanduá-tão tinha saído enviado até mais longe, para espreitar e espiar, como cachorro correndo os ventos. Chegou, parecia galopando num cavalo já morto. Esbarrou. O cavalo baio, como desmanchado – que arqueava triste as pernas dianteiras –

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