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Ingratidão é o defeito que a gente menos reconhece em si?

Diadorim – ele ia para uma banda, eu para outra, diferente; que nem, dos brejos dos Gerais, sai uma vereda para o nascente e outra para o poente, riachinhos que se apartam de vez, mas correndo, claramente, na sombra de seus buritizais... Outras horas, eu renovava a idéia: que essa lembrança de Otacília era muito legal e intrujã; e que de Diadorim eu gostava com amor, que era impossível. É. Mire e veja: o senhor se entende? Deixe

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas avante; conto. Mesmo, nos dias, o que era, era ir – vir, corrijo.

Até sem ter aviso nenhum, eu me havia do Hermógenes.

Pressentidos, todos os ventos eu farejava. O Hermógenes, com seu pessoal dele – que nem em curvas colombinhando, rastejassem, comprido grosso, mas sem bulha, por debaixo das folhas secas... Mas eu estava fora de minha bainha. Às vezes, eu acordava na metade certa da noite, e estava descansado, como se fosse alto dia. Vão da noite, quando o mato pega a adquirir rumores de sossegação. Ou quando luava, como nos Gerais dá, com estrelas. Luava: para sobressair em azul de luz assim, só mesmo estrela muito forte.

E chegamos! Aonde? A gente chega, é onde o inimigo também quer. O diabo vige, diabo quer é ver... A pois! Sincero, senhor: os campos do Tamanduá-tão; o inimigo vinha, num trote de todos, muito sacudido. Se espandongaram... Campos do Tamanduá-tão – o senhor aí escreva: vinte páginas... Nos campos do Tamanduá-tão. Foi grande batalha.

Não se instruiu que. Nem não houve aviso. Dei guerra.

Como se quis: lei a lei, e fogo a fogo. Era na força da lua.

Tamanduá-tão é o varjaz – que dum topo de ladeira se avistava; e para lá descemos por encanado de cava, quase grota,

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas que a vertente entalha. Mas mais de mil bois, ou cavalos e éguas uns oitocentos, se carecesse, cabiam de bom pastar ali naquele baixadão, de raso em raso. Ao muito escuro, duma banda, existia um travessão de mato. Outro braço de mata, da outra banda. Com que, contornada essa mata, a gente estava sempre naquilo que Tamanduá-tão é: a enorme vargem. Porque, para tudo quanto havia, o nome era aquele só – que Mata-Grande do Tamanduá-tão, e Mata-Pequena do Tamanduá-tão, e tudo. Por mesmo, do Tamanduá-tão era a casa-de-fazenda – de muitos antigos tempos, quando tinha tido senzalas e um engenho-de-pau-em-pé. Mas já estava esquecida, arruinada em esteios, e com restos de parede fechando matagalzinho em cima de montes de terra e pedras, em fim de taperada. Bem sim, que, por perto, assistia alguma pobre gente vinda, cultivando: o quanto se via roça, milharais, feijoal faceiro. Gente, mal se viu. E do Tamanduá-tão era a Vereda, com seus buritis altos e a água ida lambida, donzela de branca, sem um celamim de barro. Diz-se que lá se pesca, e gordas piabas. Por cima dela sei é de muito tiro. Tinha um cocho no chão, no campo; o gado ouvia e se fugia, bravo. Às beiras daquela, minha gente galopou – a vereda toda, susã-jusã – feito estivessem sendo surucuiú sem fêmea,

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas percorrente doidada... E o inimigo dava para trás! Não achavam esconso... Assim é que se principiou.

A bem, como é que vou dar, letral, os lados do lugar, definir para o senhor? Só se a uso de papel, com grande debuxo.

O senhor forme uma cruz, traceje. Que tenha os quatro braços, e a ponta de cada braço: cada uma é uma... Pois, na de cima, era donde a gente vinha, e a cava. A da banda da mão-direita nossa, isto é, do poente, era a Mata-Grande do Tamanduá-tão. Rumo a rumo, a da banda da mão-esquerda, a Mata-Pequena do Tamanduá-tão. A de baixo, o fim do varjaz – que era, em bruto, de repente, a parede da Serra do Tamanduá-tão, feia, com barrancos escalavrados. Os barrancos cinzentos, divulgando uns rebolos e relombos, barrancos muito esquisitos – como as costas de fila de muitos animais... Mas, agora, o senhor assinale, aqui por entremeio, de onde é a Serra do Tamanduá-tão e a Mata-Grande do Tamanduá-tão, mais ou menos, os troços velhos da casa-de-fazenda, que tanto se desmantelou toda; e, rumo-a-rumo, no caminho da Serra para a Mata-Pequena, essas rocinhas de pobres sitiantes. Aí o senhor tem, temos. A Vereda recruza, reparte .o plaino, de esguelha, da cabeceira-do-mato da Mata-Pequena para a casa-de-fazenda, e é alegrante verde, mas em curtas curvas, como no sucinto caminhar qualquer cobra faz.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas E tudo. O resto, céu e campo. Tão grandes, como quando vi, quando no fim: que ouvi só, no estradalhal, gritos e os relinchos: a muita poeira, de fugida, e os cavalos se azulando...

Mas, primeiro, antes, teve o começo. E aí teve o antes-do-começo; que o que era – a gente vindo, vindo. E vindo bem. Mal ao justo, que, para tão cedo, assim, aquilo não se esperava. A gente vinha acabando a serra. Serra da Chapada. Somente para dali descer, e traduzir essas campinas, a grandeza de vargem.

Deles, inimigos, não se tinha aviso nenhum, nem espiação. Eu podia saber? Eu era uma terrível inocência. E de tudo miúdo eu dava de comer à minha alegria. Assim, o por exemplo, quando eu quis experimentar a valia de meus catrumanos. Um, o Dos-Anjos. Esse degozava de mostrar que tinha tomado entendimentos: presto manejava. Achei graça no tirintim ligeiro, como ele recarregou a comblém. Mas era uma arma sem trocha, e muito envelhecida, abaixo de todas as menos, até com cano já gasto. – “X’eu cá ver o arcabuz, mano-velho...” – eu arrecadei.

Ele nem queria entregar; conforme que disse, triste: – “É a méa combléia...” – e excogitava na arma. Esse, merecia. Que fossem arranjar para ele uma outra, consentã – rifle chapeado ou winchester mão 27, ou carabina qualquer, bala de chumbo. E aí o Dos-Anjos me desofereceu o trabuco dele velho; mais que

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas avexado, e menino-manso me olhava... Mas Marcelino Pampa –

acho que foi, – quando a gente acabou de rir, pagou boa lembrança: disse que, num brugo, a meio indo para o pique do morro, Medeiro Vaz tinha deixado guardado, uma vez, um feixe de armamento de soldados. Que eram cinco fuzis máuser, oleados bem, num caixote, escondidos no fundo dum grande solapo, no paredão. Se dizia. Tanto que lá nem bicho mateiro não ia, tirante macaco; e que por tudo, por certo, deviam de estar de uso. – “Por que é que Medeiro Vaz escondeu?” – “Por, no tempo, não ter servível munição...” – “E agora se tem, que dê?” –

“A pois.”

Eu disse ao senhor: eu não sabia do inimigo, nem o inimigo de mim, e nós vínhamos para se-encontrar. Então? Ah, mas eu parei mais alto – estive muito mais alto, mesmo; e foi assim a sol.

Pois logo a gente quebrou caminho, trepando encosta, lá para aquelas burguéias. Os nenhuns fuzis não achamos, adentro do cavernal, que era muito espaçoso, só com uns morcegos, que habitavam. E eu, por um querer, disse que ia subir mais, até no cume. Poucos foram os que comigo vieram. As alturas.

Poucos; me lembro do Alaripe. Posto, pois foi porque foi.

Que estávamos já voltando descendo do ponto do alto, o vento

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas bobeando na cara da gente e bela-vista adiante, muito descrita.

Caminhando, mesmo, a gente tinha enrolado cigarros, que não estava sendo azado de acender, por via do encano do ar, que ventainhava. Esbarramos. Àlaripe bateu binga. Mas, repronto, ele mesmo encolheu o corpo, e apontou, exclamando surdo: – “Há, lá: no quembembe...” – o que, quembembe, na linguagem da terra dele, vinha a ser: na virada, na tombada... Como com efeito, acolá, na Serra do Tamanduá-tão, vertente abaixo, vinha um cavaleiro. E eram muitos outros.

Esses, eles! Mas nós já tínhamos tomado recato. –

“Maximé...” – eu disse. E o que eu senti, ah, não foi receio, nem estupor, nem arrocho. O que eu senti foi nada, coisa nenhuma: coisa-nenhuma em branco, ao redor da minha movimentação...

Quantos com que, assim viessem, se guerreava; mas sempre um chefe é uma decisão. Falei. E, quando mesmo dei tento, já tinha determinado as ordens justas carecidas; tudo atinado, o senhor veja, e tal. Primeiro, que uns três homens fossem levar para aquela dita solapa do morro os que não eram mãos-d’armas: que o menino Guirigó, o cego Borromeu e a mulher do Hermógenes, que lá esperassem o final de tudo. E para isso escolhi também o catrumano Dos-Anjos, que logo vi que bem

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas escolhi, por tanto que ele, na primeira coisa que pensou, foi na quantia de comida que para eles se deixasse. Daí, o da guerra, exato, muito singelo: repartir a gente em três drongos, que íamos descer a serra em diversas bocainas diferentes. Eu, com o meu, normal rente. João Goanhá, da banda da mão direita; Marcelino Pampa da banda da mão esquerda: eles fossem para ladear, e revir e cometer, dando todas retaguardas!

Num átimo. Discutido assim, o pessoal se arrumou para ir, já indo; jagunço nunca dilata. Mas os de João Goanhá e os de Marcelino Pampa, primeiramente, que deviam de longe. Eu, com os meus, tinha mais tempo, convinha mesmo retardar. Estive contando os cavalos. – “Te arma bem, Diadorim!” – eu disse. –

“Te arma bem, mano meu mano!” Por que foi que eu disse?

Então, o senhor me confere: que eu ingrato não era, e que nos cuidados de meu amor Diadorim sempre estava. E amor é isso: o que bemquer e mal faz? Apalpei meu selim, que minhas pernas esquentavam. Empunhei o parabelo. Alguns dos homens ainda aproveitavam a espera para comer o que tivessem, e um quis me obsequiar com a metade duma broa de brote, de se roer, e outro que trazia um embornal-de-couro cheio com cajus vermelhos e amarelos. Rejeitei. Por mesmo que naquele dia eu estava de jejum quebrado só com uma jacuba. Nem quis pitar. Não por nervoso.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Mas eu sabia que era o minuto e não era a hora. E o do embornal com os cajus, sendo um João Nonato, diamantinense, decidido agradável me disse: – “Hoje, Chefe, depois que se ganhar, com o bom gol se festeja?” Oi, sim. E de repente eu disse dizer: – “Tu, menino, meu filho, tu vem adiante, mano-velho: emparelhado comigo... Tu me dá sorte!” Deixamos de esporas.

Descendo na cava, por feliz a gente vinha em oculto. E, justo, já embaixo, no principiar da várzea, era um capim com mais viço, capinzal do fresco de pé-de-serra. Capim mais alto do que eu – nele à gente se tapava. Coincidido que, permeio o verde dos talos, a gente via algumas borboletas, presas num lavarinto, batendo suas asas, como por ser. Caiu o açúcar no mel! Porque, igual também convim que podíamos ladear um tanto; e, daí, separei, de cabeça, um grupo de homens, que iam ir com o Fafafa: esses avançarem primeiramente – como a certa isca –

perturbando o cálculo do inimigo, ao dar o dar. Respiramos tempo, naqueles transitórios. De rechego, coçando as caras no capim em pontas, que dava vontade de se espirrar. Só o rumor que se ouvia era o dos cavalos abocanhando. Eu tinha pressa de um final, mas o que ia mor em mim era um lavorar de paciência: talento com que eu podia ficar retardando lá, a toda a vida. Safas

– que eu podia dar também um pulo, enorme, sustirado,

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas repentemente. Vi: o que guerreia é o bicho, não é o homem. O

capinzal repartia tudo diverso: o abafo do ar e o fresco de lugar de grota – frio e calor, lado dum doutro, nas finas folhas mesmo da folhagem. Mas o calor vinha subindo era pernas acima, no meu corpo: o que os meus pés, de tão quentes, suavam. E eu não enxergava o chão; mas o cheiro do lugar ali era de barro amarelo massal. Suspensos no parar, mesmo, a gente se embalançava na sela, banda para banda, na suavidade essa –

conforme temperação, de que o espírito necessitava. Sendo o mundo quieto, para não assustar os pássaros que comem sementes no capim, porque o revôo deles havia de dar ao inimigo alto aviso no ar.

Sobre isto, eu tirei um pé do estribo e ajoelhei no coxim da sela. Porque era a hora de olhar; mirei e vi. Como o inimigo vinha: as listras de homens, récua deles: passante de uns cem.

Are sens