João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas estrela-da-tarde. Mas, do que um falava, outro mal ouvia e ria; do que esses se riam, outros ainda falavam. Prosapeavam. Me prazia.
Me prazia o ranger o couro das jerebas, aquele chio de carne em asso. A poeira avermelhava e branqueava: poeiras que punham o vento mais áspero. Uns homens em cavalos e armas. Quem visse, fuga fugia, corria: tinham de temer, vigiando com seus olhos escondidos no mato em beiras de estrada. Até os bichos, do cerradão, que escutam o começo de tudo, de seu longe e de seu perto, e logo sabem esperar, ocultos no rareamento, assim não se viam, nenhuns, não se achavam; os pássaros sempre já tinham revoado. Ah, não, eu bem que tinha nascido para jagunço. Aquilo
– para mim – que se passou: e ainda hoje é forte, como por um futuro meu. Eu estou galhardo. Naquilo, eu tinha amanhecido.
Comi carne de onça? Esquipando, eu queria que a gente entrasse, daquele jeito, era em alguma grande verdadeira cidade.
Só às vezes, em repente de receio, eu ainda olhei em vão –
com as presenças de Zé Bebelo me cismava. Se o que sei. Com um arranco de freio, raciocinado. Mas, dando de rédeas sem descanso, derrubei dos ombros aquele meu costume, Zé Bebelo terminara. Só os meus homens. Escutava, olhava – e eram aqueles: que muitas estrepolias ainda iam decerto agir, e muita má gente matar. Aos dez e dezes, digo, afirmo que me lembro de
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas todos. Esses passam e transpassam na minha recordação, vou destacando a contagem. Nem é por me gabar de retentiva cabedora, nome por nome, mas para alimpar o seguimento de tudo o mais que vou narrar ao senhor, nesta minha conversa nossa de relato. O senhor me entende? A mesmice dos cabras jagunços – no contemplar a cavalhada – no passo, os animais dando dos quartos, comuns assim, que não fazem penachos, que não tiram arredondamentos da magreza. Os filhos nascidos de distritos de lugares diversos, mas agora debaixo da minha estima completa, dever de coração enérgico. Até os capiaus e os catrumanos copiavam o comportamento, uns amontados, outros restantes apressados mesmo a pé, e iam pegando o exato. Até o catrumano Teofrásio, em seu jegue, que, como prestável jumento, cumpria bem seu ir, desde que tinha companhia de outros animais. E o Guirigó e o Borromeu, eu meando os dois, ao alcance de qualquer minha mão. Sempre, mesmo como sempre. Mas, um, era Diadorim – montado à baiana, gineta, com estribos curtos e rédea muito ponderada, bridando bem, em seu argel travado, às upas: cavalo bulideiro, cavalo de olhos pretos conforme como a noite – Diadorim, que era o Menino, que era o Reinaldo. E eu. Eu? Nos estribos de ferro, freio de ferro, silha forte e silha mestra – e o par de coldres! Assaz, então, cantaram:
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: VeredasOlererê, Baiana,
eu ia e não vou mais...
Eu faço
que vou
lá dentro, oh Baiana,
e volto do meio p’ra trás...
Ao demais eu ouvi, soturno sorridente.
Ora vez, que, desse jeito, fomos entortando, entre as duas chapadas, encalço da estrada do rio; e se chegou na fazenda cercã, que era por lá, a Barbaranha dita, em um lugar redondo e simples, no Pé-da-Pedra. O que eu já disse ao senhor, respeitante.
Mas acrescento que o dono, no atual, era um seo Ornelas –
Josafá Jumiro Ornelas, por nome todo.
- “De uns três dias foi o São João, então amanhã é o São Pedro...” – alguém disse, de voz.
Soubessem que esse seo Ornelas era homem bom descendente, posseiro de sesmaria. Antes, tinha valido, com muitos passados, por causa de políti ca, e ainda valesse, compadre que era do Coronel Rotílio Manduca em sua Fazenda Baluarte.
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- “Ao que ele tem, mas tem, mesmo, muita coragem?!” – eu me fiz. - “Aí falam em sessenta ou oitenta mortes contáveis...” o Marcelino Pampa afiançou “... e ainda não esmoreceu os ânimos...”
Chegamos, com proceder seguro, e o céu por cima dali estava muito sereno. Na fazenda tinfiam levantado um mastro, na frente do pátio; vi movimentos de gente. As mulheres, na boca do forno fumaçando, mexiam com feixes verdes de mariana e vassourinha e carregavam as latas pretas de assar biscoitos. Só aqueles formosos cheiros das quitandas e do forno quente varrido, já confortavam meu estômago. No mastro, que era arvorado para honra de bandeira do santo, eu amarrei o cabresto do meu cavalo.
Mas não desordeei nem coagi, não dei em nenhuma desbraga. Eu não estava com gosto de aperrear ninguém. E o fazendeiro, senhor dali, de dentro saiu, veio saudar, convidar para a hospedagem, me deu grandes recebi, mentos. Apreciei a soberania dele, os cabelos brancos, os modos calmos. Bom homem, abalável. Para ele, por nobreza, tirei meu chapéu e conversei com pausas.
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- “Amigo em paz? Meu chefe, entre, a valer: a casa velha é sua, vossa...” – ele pronunciou.
Eu disse que sim. Mas, para evitar algum acanhamento e desajeito, mais tarde, também falei: - “Dou todo respeito, meu senhor. Mas a gente vamos carecer de uns cavalos...” Assim logo eu disse, em antes de vir a amolecer as situações e estorvar o expediente negócio a boa conversação cordial. O homem não treteou. Sem se franzir nem sorrir, me respondeu: - “O senhor, meu chefe, requer e merece, e com gosto eu cedo... Acho que tenho para coisa de uns cinco ou sete, em estado regular.”
E eu entrei com ele na casa da fazenda, para ela pedindo em voz alta a proteção de Jesus. Onde tive os usuais agrados, com regalias de comida em mesa. Sendo que galinha e carnes de porco, farofas, bons quitutes ceamos, sentados, lá na sala.
Diadorim, eu, João Goanhá, Marcelino Pampa, João Concliz, Alaripe e uns outros, e o menino pretinho Guirigó mais o cego Borromeu – em cujas presenças todos achavam muita graça e recreação.
A dona fazendeira era mulher já em idade fora de galas; mas tinham três ou quatro filhas, e outras parentas, casadas ou moças, bem orvalhosas. Aquietei o susto delas, e nenhuma falta de
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas consideração eu não proporcionei nem consenti, mesmo porque meu prazer era estar vendo senhoras e donzelas navegarem assim no meio nosso, garantidas em suas honras e prendas, e com toda cortesia social. A ceia indo principiando, somente falei também de sérios assuntos, que eram a política e os negócios da lavoura e cria. Só faltava lá uma boa cerveja e alguém com jornal na mão, para alto se ler e a respeito disso tudo se falar.
Seo Ornelas me intimou a sentar em posição na cabeceira, para principal. - “Aqui é que se abancava Medeiro Vaz, quando passou...” – essas palavras. Medeiro Vaz tinha regido nessas terras. Verdade era? Aquele velho fazendeiro possuía tudo.
Conforme jagunço de meio-oficio tinha sido, e amigo hospedador, abastado em suas propriedades. De ser de linhagem de família, ele conseguia as ponderadas maneiras, cidadão, que se representava; que, isso, ainda que eu pelejasse constante, tarde seria para bem aprender. Na verdade. Aquela hora, eu, pelo que disse, assumi incertezas. Espécie de medo? Como que o medo, então, era um sentido sorrateiro fino, que outros e outros caminhos logo tomava. Aos poucos, essas coisas tiravam minha vontade de comer farto.
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- “O sertão é bom. Tudo aqui é perdido, tudo aqui é achado...” – ele seo Ornelas dizia. - “O sertão é confusão em grande demasiado sossego...” Essa conversa até que me agradou.