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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas diga: o senhor desconfiou de alguma arte, concebeu alguma coisa?

Sumimos de lá. Em cinco léguas, vi o barro se secar. O

campo reviçava. Mas concedi que a viagem viesse à branda, serenada. Queria, quis. O burrinho de Nosso Senhor Jesus Cristo também não levava freio de metal... Isso, na ocasião, emendo que não refleti. Razão minha era assim de ter prazos, para que meu projeto formasse em todos pormenores. Mas – isto afianço ao senhor – também eu não sentia açoite de malefício herege nenhum, nem tinha asco de ver cruz ou ouvir reza e religião.

Mesmo, me sobrasse tempo algum de interesse, para reparar nesses assuntos? Eu vinha entretido em mim, constante para uma coisa: que ia ser. Queria ver ema correndo num pé só... Acabar com o Hermógenes! Assim eu figurava o Hermógenes: feito um boi que bate. Mas, por estúrdio que resuma, eu, a bem dizer, dele não poitava raiva. Mire veja: ele fosse que nem uma parte de tarefa, para minhas proezas, um destaque entre minha boa frente e o Chapadão. Assim neblim-neblim, mal vislumbrado, que que um fantasma? E ele, ele mesmo, não era que era o realce meu –

?-eu carecendo de derrubar a dobradura dele, para remediar minha grandeza façanha! E perigo não vi, como não estava cismando incerteza. Tempo do verde! Êpa, eu ia erguer mão e

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas gritar um grito mandante – e o Hermógenes retombava. Onde era que estava ele? Sabia não, sem nenhuma razoável notícia; mas, notícia que se vai ter amanhã, hoje mesmo ela já se serve...

Sabia; sei. Como cachorro sabe.

Assim, o que nada não me dizia – isto é, me dizia meu coração: que, o Hermógenes e eu, sem dilato, a gente ia se frentear, em algum trecho, nos Gerais de Minas Gerais. Eu conhecia. A pressa para quê? Ao ir, ao que ir – aí contra a Serra das Divisões ou sobre o Rio São Marcos. Estrada-real, estrada do mal. Como de fato, aquilo estava impossível, breado de barro alto, num reafundo, num desmancho, que comia com engolo as ferraduras mesmo cravadas novas, e assujeitava a gente a escorregão e tombos, teve animal que rachou canela, quebrou pescoço. – “Este caminho tem tripas...” – se dizia bem. Às loucuras. E a jorna não rendia, não se podia deszelar o pisar.

Retardamos. Retardar, mesmo se me dava de agradável. Eu ia numa caçada, com o grande gosto, ah. Pois não era? Mais tempo se gastou, esbarrados em casas-de-fazendas ou em povoados.

Melhor – por lá, também, haviam de aprender a referir meu nome. De em desde, bem que já cumpriam de me recompensar e me favorecer, pela vantagem: porque eu ia livrar o mundo do Hermógenes. O Hermógenes – pelejei para relembrar as feições

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas dele. Achei não. Antes devia de ser como o pior: odiado com mira na gente. – “Diadorim...” – pensei – “... assopra na mão a tua boa vingança...” O Hermógenes: mal sem razão... Para poder matar o Hermógenes era que eu tinha conhecido Diadorim, e gostado dele, e seguido essas malaventuranças, por toda a parte?

Retardamos. Até que, tomando sazão boa no veranico, seguimos em fim, estrotejando. Parávamos léguas perto das divisas, mandei ir vigias e dianteiros. Conferi meu povo nas armas. Tudo prazia. O barranco mineiro ou o barranco goiano.

Da beira de Minas Gerais, vinha um mato vagaroso.

E piorou um tico o tempo, em Minas entramos, serra-acima, com os cavalos esticados. Aí o truvisco; e buzegava. O

ladeirão, ruim rampa, mas pegamos a ponta da chapada. Foi ver, que com o vento nas orelhas, o vento que não vareia de músicas. Tudo consabia bem; isto sim, digo; no remedido do trivial, espaço de chuva, a gente em avanço por esses tabuleiros: fazia rio, por debaixo, entre as pernas de meu cavalo. Sertão velho de idades. Porque – serra pede serra – e dessas, altas, é que o senhor vê bem: como é que o sertão vem e volta. Não adianta se dar as costas. Ele beira aqui, e vai beirar outros lugares, tão distantes. Rumor dele se escuta. Sertão sendo do sol

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas e os pássaros: urubu, gavião – que sempre voam, às imensidões, por sobre... Travessia perigosa, mas é a da vida. Sertão que se alteia e se abaixa. Mas que as curvas dos campos estendem sempre para mais longe. Ali envelhece vento. E os brabos bichos, do fundo dele...

Com trovôo. Trovoadão nos Gerais, a ror, a rodo... Dali de lá, eu podia voltar, não podia? Ou será que não podia, não?

Bambas asas, me não sei. Bambas asas... Sei ou o senhor sabe?

Lei é asada é para as estrelas. Quem sabe, tudo o que já está escrito tem constante reforma – mas que a gente não sabe em que rumo está – em bem ou mal, todo-o-tempo reformando?

Meus homens adianteiros retornaram, que vindos com uma notícia: os Hermógenes, bando enorme, tocavam meio para cá – decerto também já cientes de meu caminhar! Era o devido.

Se estremeceu, de pressas. Vim. Viemos. Trastopamos com uns campeiros e outros, que vaquejavam, ou que levando gado de volta para o caatingal, por não morrerem suas reses todas, de pastar o capim novo dos Gerais, que cresce cheio de areia. Mas esses não sabiam de nada coisíssima. A gente contornou, por se chegar primeiro no Nestor, na Vereda-Meã, e no Coliorano, depois do Mujo. Vãozinho-do-Mujo, esse acho que era certo

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas também, o nome. Mas o Coliorano morava num buritizal de lagoa, e fazia chapéus-de-palha fabricados; dos melhores. Nele e no Nestor, carecia de se chegar, em antes do Hermógenes – que lá se tinha coito de munição. Contornamos. Muito brejo e sapal já estavam de volta. Os rios andando sujos, e umbuzeiros dando flor. Mas a cheia de todo rio carregava muito cuspe de espuma por cima – sinal de que ela ia aumentando, com maiores chuvas nas nascentes. Assim mesmo assim, não perdemos de breve chegar e de arrecadar munição que se queria, total toda.

Arredondamos. Agora, em hora. Que era que faltava? Comigo –

redor de mim! – quem quisesse guerra...

Todos. E, todos, tinha vez eu achava que queria-bem o meu pessoal, feito fossem irmãos meus, da semente dum pai e na madre de uma mãe gerados num tempo. Meus filhos. Para que relembrar, divulgar dum e dum, dar resenhas? Do Dimas Doido – que xingava nomes até a galho de árvore que em cara dele espanejasse, ou até algum mosquitinho chupador. Do Diodolfo – mexendo os beiços num bis-bis: que era que sem preguiça nenhuma rezava baixo, ou repetia coisas de mal, da vida alheia, conversando com si-mesmo. Do Suzarte – tomando olhos de tudo, chão, árvores, poeiras e estilos de vento, para guardar em sua memória aqueles lugares em léu. Do Salústio

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas João, em ancas de seu burro; e do Araruta – de toda confiança: esse homem já tinha para mais de umas cem mortes. Do Jiribibe, que a recorrer, da guia à culatra, por necessidade de cada coisa ouvir, recontar e saber. Ou do Feliciano – que abria muito o olho são, para melhor entender o que a gente dizia?

Tuscaninho Caramé, que cantava, bonita voz, algúa cantiga sentimental. João Concliz, dobrando um assovio comprido sem fim, como esses que são dos tropeiros dos campos goianos? Ou o José do Ponto com o jacaré – tocando os cargueiros, com sua tralha de cozinhar...

Mas refiro miúdos passos. Coisinhas que a gente vislumbra em ocasião de momento, e que quase não esquecem, com pena.

Pois eu pensasse a breve na responsabilidade que a minha era, quando via um homem idosamente respeitável, como Marcelino Pampa – e que já tinha sido chefe – seguindo por seu próprio gosto, no meio do andamento dos outros, ou esbarrar o cavalo nos freios, e, esbarrado assim, mesmo sem virar a cara para mim, mas abaixar um pouco a cabeça, e ficar escutando e meditando o meu conselho. Ou quando um daqueles jagunços mais velhos recomendava a qualquer rapaz como era que deviam de ter cautela, no lidar com as armas de conjunto, e com a munição nas canastras: pois de tudo calados cuidavam; porque

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas então, em sentir, era como se fosse coisa de paz, arranjos miúdos em casa da gente. Ou mesmo quando eu avistava um daqueles catrumanos, gente toda trazida, deportados por mim da terra deles. Esses me davam estima? Ah, acho que me achavam. Antes teriam um admirado receio, o medo maior. E

tinha uns – como digo ao senhor que relembro tudo – esse, Assunciano: quando se falava em fogo, ele já ficava com o corpo para diante, meio entortado; e que ele era magro, mas ovante, barrigudo mediamente; e, de um qualquer um chapéu simples, mas um pouco mais enfeitado ou novo, ele já demonstrava mirar de boba inveja... Meus filhos.

Mas, não durava dai, menosmente, eu esquentava outra vez meus altos planos, mais forte; eu refervesse. Eu era assim.

Sou? Não creia o senhor. Fui o chefe Urutu-Branco – depois de ser Tatarana e de ter sido o jagunço Riobaldo. Essas coisas larguei, largaram de mim, na remotidão. Hoje eu quero é a fé, mais a bondade. Só que não entendo quem se praz com nada ou pouco; eu, não me serve cheirar a poeira do cogulo – mais quero mexer com minhas mãos e ir ver recrescer a massa... Outra sazão, outros tempos. Eu ia para sofrer, sem saber. E, veja, se vinha, eu comandei: – “É guerra, mudar guerra, até quando onça

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas e couro... É guerra!...” Todos me aprovavam. Ainda mesmo que com o cantar:

“Olererê Baiana... Eu ia

e não vou mais... Eu faço

que vou

lá dentro, ó Baiana: e volto

do meio p’ra trás!”

Assim, aquela outra – que o senhor disse: canção de Siruiz

– só eu mesmo, meu silêncio, cantava.

Sofreado de minha soberba, e o amor afirmante, eu senti o que queria, conforme declarado: que, no fim, eu casava desposado com Otacília – sol dos rios... Casava, mas que nem um rei. Queria, quis. – E Diadorim? – o senhor cuida.

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