"Unleash your creativity and unlock your potential with MsgBrains.Com - the innovative platform for nurturing your intellect." » » ,,Grande Sertão: Veredas'' - de João Guimarães Rosa,

Add to favorite ,,Grande Sertão: Veredas'' - de João Guimarães Rosa,

Select the language in which you want the text you are reading to be translated, then select the words you don't know with the cursor to get the translation above the selected word!




Go to page:
Text Size:

E o velho, no esquipático de olhar e ser, qualquer coisa em mim ele duvidava dela. Mas – que é que era? que é que era?!... Eu

– 746 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas carecia de indagar. E, mesmo – porque a chefe não convém deixar os outros repararem que ele está ansiando preocupação incerta – tive de indagar leixo, remediando com gracejo diversificado: - “Mano velho, tu é nado aqui, ou de donde? Acha mesmo assim que o sertão é bom?...”

Bestiaga que ele me respondeu, e respondeu bem; e digo ao senhor: - “Sertão não é malino nem caridoso, mano oh mano!: –

... ele tira ou dá, ou agrada ou amarga, ao senhor, conforme o senhor mesmo.” Respondeu com uma insensatez, ar de ir me ferir, por tanto; jacaré já! Respondeu, apontando com o dedo para o meu peito. Desgostou de meu debique? Dele o dito, eu não decifrava. Sertanejo sem remanso. Mas desabandonamos aquilo, às pressas, porque o velho assoava o nariz com todos os dedos de uma mão, em modo que me deu nojo. Descemos flauteando o resto do morro. Quando chegamos cá no acampo, as ramas d’árvores já iam pegando o pó da noite. Ermo meu?

Do que hoje sei, tiro passadas valias? Eli. – fome de bacurau é noitezinha... Porque: o tesouro do velho era minha razão. Tivesse querido ir lá ver, nesse Riacho-das-Almas, em trinta e cinco léguas – e o caminho passava pelo São Josezinho da Serra, onde assistia Nhorinhá, lugarejo ditoso. Segunda vez

– 747 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas com Nhorinhá, sabível sei, então minha vida virava por entre outros morros, seguindo para diverso desemboque. Sinto que sei.

Eu havia de me casar feliz com Nhorinhá, como o belo do azul; vir aquém-de. Maiores vezes, ainda fico pensando. Em certo momento, se o caminho demudasse – se o que aconteceu não tivesse acontecido? Como havia de ter sido a ser? Memórias que não me dão fundamento. O passado – é ossos em redor de ninho de coruja... E, do que digo, o senhor não me mal creia: que eu estou bem casado de matrimônio – amizade de afeto por minha bondosa mulher, em mim é ouro toqueado. Mas – se eu tivesse permanecido no São Josezinho, e deixado por feliz a chefia em que eu era o Urutu-Branco, quantas coisas terríveis o vento-das-nuvens havia de desmanchar, para não sucederem? Possível o que é – possível o que foi. O sertão não chama ninguém às claras; mais, porém, se esconde e acena. Mas o sertão de repen te se estremece, debaixo da gente... E – mesmo – possível o que não foi. O senhor talvez não acha? Mas, e o que eu estava dizendo, mas mesmo pensando em Nhorinhá, por causa. Dói sempre na gente, alguma vez, todo amor achável, que algum dia se desprezou... Mas, como jagunços, que se era, a gente rompeu adiante, com bons cavalos novos para retroco. Sobre os gerais

– 748 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas planos de areia, cheios de nada. Sobre o pardo, nas areias que morreram, sem serras de quebra-vento.

Com a campina roxa brandamente, vagarosa por onde fomos, tocamos, querendo o poente e tateando tudo, chapada sem lugar de fim. Só os punhados daquele capim de lá, com sua magra dureza. O para bem valer era que, agora, quando alguém com o nosso brabo cortejo deparava, seriam gente já distante, desconhecida dela, e que não diziam mais: - “Aquela é a dona de um seô Hermógenes, que estão remetendo para as enxovias...”

Essa mesma não dava trabalhos; a mulher ocultada no xale verde, como dizer. A mulher sem resgate – isto é dizer: que ia para morte de outro homem – à sina sorte. Eu tinha era receio de que ela adoecesse. Dei as todas ordens, de bom tratamento.

Tanto a tanto, decidi disposto que não se entrasse com bruteza nos povoados, nem se amolasse ninguém, sem a razoável necessidade. Também pelo que aquilo não me dava glória, e eu ia para um grande fim. Até estive nervoso.

Desde as crondeúbas, nascidas em extraordinárias quantidades, e os montes de areia quase alvos, com as seriemas por cima perpassando, e o mais, tudo eu tinha avistado. Que vi córrego que corta e salga, e comi coco de ouricuri. Desordens

– 749 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas não me tentavam, o assaltar e o rixar. Agora, para essas e outras jagunçagens – assim mesmo como para pautear à-toa, de abocabaque – eu não tinha interesse de tempo. Não por moleza ou falta de hombridade; ah, não: tanto em que durou minha chefia, e acho mesmo que de dantes, eu agüentei tudo o que é cão e leão. Corrijo e digo: só o frio é que mal tolerei. Quando geava, dormi deveras estreito entre diversas fogueiras. O frio desdiz com jagunço. A gente indo, ali mesmo nos altos tabuleiros, enchemos surrões com talos de canela-de-ema, boa acendedora de fogo. A canela-de-ema de qualidade – crescida mais de metro, acertante. Depois da madrugada, de guardado eu bebia um chá de jurema, me restabelecesse todos os ânimos. Daí diante, melhor, foi desamainando a friagem das madrugadas. E já fazia tempo que eu não passava navalha na cara, contrário de Diadorim. Minha barba luzia grande e preta, conferindo conspeito – isto eu mesmo podia fácil ver, mirando na folha da água, quando meu cavalo Siruiz se debruçava para beber em qualquer riachinho da largura de duas braças. Estórias!

Consabido que meus homens, por sincera precisão de mulher, armavam querer de trazer umas delas, pegadas pelas beiras de estradas, me vinham com lelê disso. O que eu, enérgico, debelei e reprovei: não se estava ainda em ponto para esse

– 750 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas desmazelo de bem-passar. Pelo mal de que essas mulheres não davam para ser ao menos uma para cada um, e, por via de jus dessas condições, a companhia delas podia estragar a lei do viver da gente, com arrelias de vuvu e rusgas. O que ajuntávamos, trazendo, era cada bom cavalo que se pegasse. E tocamos conosco cinqüenta-e-tantas reses, de gado baiano; à-toa. Por campos gramados, quando havendo, isso ia mais sem estorvo, em conformes. Depois, piorou. Mas outras coisas melhoraram.

O senhor tenha na ordem seu quinhão de boa alegria, que até o sertão ermo satisfaz.

Digo mesmo de meu expor, falante de mulheres. Quando se viaja varado avante, sentado no quente, acaba o coxim da sela fala de amores. E eu surgia em sossego assim, passo compasso, o chapadão tão alargante. Lá o ar é repousos. Os Hermógenes andavam por bem longe. E nunca que pelotão de soldados havia de ali vir, por cima de nossas batidas. Sossego traz desejos. Eu não lerdeava; mas queria festa simples, achar um arraial bom, em feira-de-gado. Queria ouvir uma bela viola de Queluz, e o sapateado de pés dançando. Mas, por lei, eu carecia de nudezes de mulher. Nesses dias, moderei minha inclinação. Baixei ordens severianas: que todos pudessem se divertir saudavelmente, com as mulheres bem dispostas, não deixando no vai-vigário; mas não

– 751 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas obrassem brutalidades com os pais e irmãos e maridos delas, consoante que eles ficassem cordatos. Estatuto meu era esse. Por que destruir vida, à-toa, à-toa, de homem são trabalhador? Zé Bebelo não teria outro reger... E vejo, pergunto: donde era que estava então o demo, perseguição? Devo redizer, eu queria delícias de mulher, isto para embelezar horas de vida. Mas eu escolhia – luxo de corpo e cara festiva. O que via com um desprezo era moça toda donzela, leiga do são-gonçalodo-amarante, e mulher feiosa, muito mãe-de-família. Essas, as bisonhas, eu repelia. Mas, daí então, me deram notícia do VerdeAlecrim. Joguei de galope. Torei o cavalo para lá.

Guia era um exato rapaz, vaqueiro goiano do Uruú. Esse me discriminou – o Verde-Alecrim formava somente um povoado: sete casas, por entre os pés de piteiras, beirando um claro riozinho. Meia-dúzia de cafuas coitadas, sapé e taipa-de-sebe. Mas tinha uma casa grande, com alpendre, as vidraças de janelas de malacacheta, casa caiada e de telhas, de verdade, essa era a das mulheres-damas. Que eram duas raparigas bonitas, que mandavam no lugar, aindas que os moradores restantes fossem santas famílias legais, com suas honestidades. Cheguei e logo achei que lugar tal devia era de ter nome de Paraíso.

– 752 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Antes, primeiro, pensei em todos, para o justo quinhão, porque eu era chefe. Reparti o pessoal em grupos, determinando que saíssem indo adiante, com via por trechos remarcados. Pois, mesmo a poucas léguas de lá aonde eu, eles iam achar, por um exemplo, dois arraiais – o Adroado e o São Pedro – e até o Barro-Branco, que era um vilório. Entanto que, Diadorim, conforme conveniente, enviei também expresso – ele comandasse os guias tenteadores. Tudo pronto, vim, acompanhado só com uma guarda de dez homens. O que eu não disse: que o Verde-Alecrim ficava em aprazível fundo, no centro de uma serra enrodilhada. Dum alto, se via, duma olhada e olhar.

Esporeei, desci, de batida.

Aí cheguei bem de mão. Meus homens, deixei que fossem para as casas domésticas, conversar casadas e suas crias. Eu apeei na das duas. Escolhi assim. Bom, quando há leal, é amor de militriz. Essas entendem de tudo, práticas da bela-vida. Que guardam prazer e alegria para o passante; e, gostar exato das pessoas, a gente só gosta, mesmo, puro, é sem se conhecer demais socialmente... Eu chegasse de noite, e elas estavam com casa alumiada, para me admitir. Como que o amor geral conserva a mocidade, digo – de Nhorinhá, casada com muitos, e que sempre amanheceu flor. E, isto, a torto digo, porque as duas não

– 753 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas se comparavam com Nhorinhá, não davam nem para lavar os pés dela.

Mas que, porém, beleza a elas também não faltava, isto sim.

Uma – Maria-da-Luz – era morena: só uma oitava de canela. Os cabelos enormes, pretos, como por si a grossura dum bicho –

quase tapavam o rosto dela mesma, aquela nhazinha-moura. Mas a boquinha era gomo, ponguda, e tão carnuda vermelha se demonstrava. Ela sorria para cima e tinha o queixo fino e afinado. E os olhos água-mel, com verdolências, que me esqueciam em Goiás... Ela tinha muito traquejo. Logo me envotou. Não era siguilgaita simples.

A outra, Hortência, meã muito dindinha, era a Ageala, conome assim, porque o corpo dela era tão branquinho formoso, como frio para de madrugada se abraçar... Ela era ela até no recenso dos sovacos. E o fio-dolombo: mexidos em curvos de riacho serrano, desabusava. Comprimento exato dele, assim, o senhor medir nunca conseguia. No meio delas duas, juntamente, eu descobri que até mesmo meu corpo tinha duros e macios. Aí eu era jacaré, fui, seja o que sei.

No meio daquela noite, andei com fome, não quis cachaça.

Me descansei, comi uma coalhada muito fria. Comi bolo com

– 754 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas cidrão. Bebi bom café, adoçado com um açúcar de primeira, branco igual. Porque as duas minhas-damas eram ricas; dizer: deviam de ter muito dinheiro de prata aforrado. Por lá, na casa delas, era ponto de pernoite de lavradores de posses, feito estalagem, com altas pagas. Mas as duas, mesmas, provinham de muito boas famílias, a Ageala Hortência era filha de grande fazendeiro paranãnista, falecido. Eram donas de terras, possuíam aquelas roças de milho e feijão nas vertentes da serra, nos dependurados. Ali mesmo no VerdeAlecrim, delas era toda a terra plantável. Por isso, os moradores e suas famílias serviam a elas, com muita harmonia de ser e todos os préstimos, obsequiando e respeitando – conforme eu mesmo achei bem: um sistema que em toda a parte devia de sempre se usar.

Como se deu que, enquanto se bebia o café, escutamos uma tosse, da banda de fora. E era do homem que eu tinha deixado de vigia. O qual tinha acontecido de ser o Felisberto – o que, por ter uma bala de cobre introduzida na cabeça, vez em quando todo verdeava verdejante, como já foi dito. E então elas duas pensaram em se mandar o Felisberto entrar para provar do café também, dando que não é justo ficar um desconfortado no sereno, enquanto os outros se acontecem. Sendo as duas, o senhor vê, pessoas muito bondosas.

– 755 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Assenti, boamente, nisso, em que elas estavam com a razão.

Só que, pelo respeito, eu sendo Chefe, não ia poder deixar o Felisberto me avistar assim, perfeito descomposto nu, como eu estava. Maria-da-Luz aí trouxe uma roupagem velha dela, que era para eu amarrar na cintura, tapando as partes. Experimentei. Daí, entendi o desplante, me brabeei, com um repelão arredei a mulher, e desatei aquilo, joguei longe. Tornei a vestir minhas roupas, botei até jaleco. Elas melhor me riam. Eu era algum saranga? Eu podia dar bofetadas – não fosse a só beleza e a denguice delas, e a estroina alegria mesma, que meio me encantava.

O Felisberto entrou, saudou, comeu e bebeu. Naquela ocasião ele estava passando bem, normal. Só assim, ao silenciosamente. Entendo que mais fosse para o galhardo que para o sem-graça, rapaz desses de que as mulheres se arregalam.

Em ver, seria mais moço do que eu, mais calmo. Não quisesse ardores com damas, quisesse os poucos recantos para devagar se resignar. Não cobiçou a qual, ou agrados. Nem na hora reparei que a Maria-da-Luz com ele se olhasse. Só bem, o que ela refletiu, quando o Felisberto, comido e bebido, tornou a sair, ela me disse: – que, se eu no caso dúvida não pusesse, o Felisberto podia com ela se introduzir, no outro cômodo, por variação

– 756 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas dumas duas horas, constante que nesse breve prazo eu ainda restava felizardo com a Ageala Hortência. Danado eu disse que não; e ela: - “Tu achou a gente casual aqui, no afrutado. Tu veio e vai, fortunosamente. Tu não repartindo, tu tem?...” – assim ela me modificou. A doidivã, era uma afiançada mulher. No sertão tem de tudo.

E eu tinha falado meu não, era mais somente porque não se pode falhar na regra: de só se pandegar com sentinela posta. Eu era o chefe. O Felisberto era sentinela. Aquela casa de lugar – as delícias que estavam – eu melhores neste mundo não achasse, pensei. Eu quisesse reinar lá, pelos meus prazeres. O senhor sabe: eu chefe, o outro sentinela. Esse Felisberto, pelo jeito, ia viver tão escasso tempo, podia bem que nem fizesse mais conta do ofício.

Sendo o mais que pensei: eu, sentinela! O senhor sabe. Ah –

ainda que no nocivo desses andares – eu conseguia meditar minhamente: ah, eu não tive os chifres-chavelhos nem os pés de cabra... Ali, pelos meus prazeres eu quisesse me reinar, descambava para fecho de termo. A morte estava com esse Felisberto, coitado desgraçado. A coisa estranha que uma bala de arma tinha entrado nos centros da cabeça mesma dele, recessos da idéia dele – de lá, de vezes em vezes, perturbava com excessos: daí um dia, em curto, era a morte fatal. Agora, podia

Are sens