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–... Só eu... ou você mesmo, Tatarana. Mas a gente somos garrotes remarcados.”

Mas, daí, me entendendo bem, ele fechou assim: –

“Riobaldo, tu é um homem de estúrdia valia...”

A dado sincero; eu senti. Ao perante diante de minhas presenças, todos tinham mesmo de ser sinceros. Só nos olhos das pessoas é que eu procurava o macio interno delas; só nos onde os olhos.

O José Vereda cachimbava, sentado perto de seus pertences. O Balsamão estava ali junto. Esse era maneiras-grossas, homem de muito sobrecenho. Derradeiramente eles estavam muito amigos, mesmo porque os dois eram da mesma terra – geralistas das campinas. Má vontade me veio, de dizer, eu disse: – “Assunto aí não é capaz que haja? Torto, torto, nasceu morto... Olh’ lá, caso se um de vocês tem mulher bonita e nova, quando retornarem para casa...” Isso podia ser razão de desguisado. Eu queria rixar? Figuro de cientificar ao

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas senhor: o costume meu nunca tinha sido esse. Agora, era que eu me espiritava só para arrelias e inconveniências. E, aí, quando uns estavam querendo tirar oração, por ser dia de domingo, não estive que não falasse: – “Reza é começo de quaresma...” Os que riram, riram. Foram deixando de lado aquela mexida igrejeira. Apondo em balança, que é que isso me representava? Tudo eu palpava com os pés, nisso eu respingava um tardar.

Daqui veio que Diadorim mesmo estranhou aqueles meus modos. A entender me deu, e eu reminiquei, com soltura de palavras: como é que ia tolerar conselho ou contradição?

Agravei o branco em preto. Mas Diadorim perseverou com os olhos tão abertos sem resguardo, eu mesmo um instante no encantado daquilo – num vem-vem de amor. Amor é assim –

o rato que sai dum buraquinho: é um ratazão, é um tigre leão!

Conferindo que nem vergonha eu tive. Não ter vergonha como homem, é fácil; dificultoso e bom era poder não se ter vergonha feito os bichos animais. O que não digo, o senhor verá: como é que Diadorim podia ser assim em minha vida o maior segredo? De manhã, naquele mesmo dia, ele tinha conversado, de me dizer:

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas

– “Riobaldo, eu gostava que você pudesse ter nascido parente meu...” Isso dava para alegria, dava para tristeza. O

parente dele? Querer o certo, do incerto, coisa que significava.

Parente não é o escolhido – é o demarcado. Mas, por cativa em seu destinozinho de chão, é que árvore abre tantos braços.

Diadorim pertencia a sina diferente. Eu vim, eu tinha escolhido para o meu amor o amor de Otacília. Otacília – quando eu pensava nela, era mesmo como estivesse escrevendo uma carta. Diadorim, esse, o senhor sabe como um rio é bravo? É, toda a vida, de longe a longe, rolando essas braças águas, de outra parte, de outra parte, de fugida, no sertão. E uma vez ele mesmo tinha falado: – “Nós dois, Riobaldo, a gente, você e eu... Por que é que separação é dever tão forte?...” Aquilo de chumbo era. Mas Diadorim pensava em amor, mas Diadorim sentia ódio. Um nome rodeante: Joca Ramiro – José Otávio Ramiro Bettancourt Marins, o Chefe, o pai dele? Um mandado de ódio. No que eu sabia. Não venci as ácidas picuinhas, no relembrar:

– “Aquele, hora destas, deve de andar lá por entre o Urucuia e o Pardo... O Hermógenes...”

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Ele acinzentou a cara. Tremeu, aos pingos, no centrozinho dos olhos. Revi que era o Reinaldo, que guerreava delicado e terrível nas batalhas. Diadorim, semelhasse maninel, mas diabrável sempre assim, como eu agora eu estava contente de ver. Como era que era: o único homem que a coragem dele nunca piscava; e que, por isso, foi o único cuja toda coragem às vezes eu invejei. Aquilo era de chumbo e ferro.

E, em relance em mais, eu já estava carecendo de declarar aos companheiros todos os erros que vínhamos pagando, por motivo do ultimamente, conforme agora eu ladino deduzia. Disse, com modos, ao próprio Zé Bebelo, que isto de mim escutou:

– “... Sem tenção de descrédito ou ofensa, Chefe, mas duvido de que bem fizemos em restar todos aqui, comprando cura de doenças. Mais ajuizado certo não seria se ter remetido meia-dúzia de cabras, dos sãos, que tivessem ido buscar a munição nesse lugar, a Virgem-Mãe, e trazer? Munição já estava aqui, e a gente estava mais garantidos...”

Zé Bebelo em mal amargo – ele espinoteou com a cabeça, arejou os queijos. Desde, depressinha, me explicou a

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas maior razão, com palavras baixas. Porque ele de tudo já soubesse: foi então que me disse que o extravio nosso tinha sido mais completo; porque a gente tinha vindo em má rota, em vez da Virgem-Mãe para a Virgem-da-Laje. Eu escutei, tei.

Em outras ocasiões, uma notícia dessas era capaz de me perturbar. Mas, dessa viagem, eu achava até divertido. Figuro explicando ao senhor: desde por aí, tudo o que vinha a suceder era engraçado e novo, servia para maiores movimentos. Com essas levezas eu seguia a vida.

Quando, então, trouxeram reunidos todos os animais, estavam ajuntando a cavalhada. Regulava subida manhã, orçado o sol, e eles redondeavam no aprazível – tropilha grande, pondo poeira, dado o alvoroço de muitos cascos. Fiz um rebuliz? Dou confesso o que foi: era de mim que eles estavam espantados. Aí porque a cavalaria me viu chegar, e se estrepoliu. O que é que cavalo sabe? Uns deles rinchavam de medo; cavalo sempre relincha exagerado. Ardido aquele nitrinte riso fininho, e, como não podiam se escapulir para longe, que uns suavam, e já escumavam e retremiam, que com as orelhas apontavam. Assim ficaram, mas murchando e obedecendo, quando, com uma raiva tão repentina, eu pulei para o meio deles: - “Barzabu! Aquieta, cambada!” – que eu gritei. Me avaliaram. Mesmo pus a mão no

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas lombo dum, que emagreceu à vista, encurtando e baixando a cabeça, arrufava a crina, conforme terminou o bufo de bufor.

Notei que os companheiros reparavam a estranhez daquilo, dos cavalos e as minhas maneiras. Só que se riam, formados no costume de jagunços, que é de frouxas essas leviandades. -

“Barzabu!” – ô gente!, feito fosse minha certeza, o Das-Trevas. E

eu parava, rente, no meio de todos, que de volta aceitavam minha presença, esses cavalos.

-“Tu sendo peão amansador domador?!” – que o Ragásio caçoou comigo. Mas eu me virei, e já se ouvia outro tropel: era aquele seô Habão, que chegava. Vinha com três homens, estroteantes – gentinha trabalhosa. E o animal dele, o gateado formoso, deu que veio se esbarrar ante mim. Foi o seô Habão saltando em apeio, e ele se empinou: de dobrar os jarretes e o rabo no chão; o cabresto, solto da mão do dono, chicoteou alto no ar. - “Barzabu!” – xinguei. E o cavalão, lão, lão, pôs pernas para adiante e o corpo para trás, como onça fêmea no cio mor.

Me obedecia. Isto, juro ao senhor: é fato de verdade.

O seô Habão estava ali, me desentendeu nos olhos. Ele ficou a vermelho. Mas eu acho que, homem só vendido ao dinheiro e ao ganho, às vezes são os que percebem primeiro o

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas atiço real das coisas, com a ligeireza mais sutil. Ele não gaguejou.

Melhor me disse: - “Se este praz ao senhor... Se ele praz ao senhor... Lhe dou, amigavelmente, com bom agrado: assim como ele está, moço, ele é seu...”

Não acreditei? Reafirmo ao senhor: meu coração não pulsou dúvidas. Agradeci, com meu brio; peguei a ponta do cabresto. Agora, daquela hora, era meu o cavalo grande, com suas manchas e riscas – ah, como ele pisava peso no chão, e como ocupava tão grande lugar! Até passeei um carinho nas faces dele, e pela tábua-do-pescoço a fora. Meu o bicho era, por posse, e assim revestido, conforme estava – que era com um Bocadinho bom, com caçambas de pau. Mas sendo que, dividido o instante, eu já ali pensei: por que seria que o seô Habão se engraçava de me presentear de repente com uma prenda dum valor desse, eu que não era amigo nem parente dele, que não me devia obrigação, quase que nem me conhecia? Aos que projetos ele engenhava em sua mente, que possança minha ele adivinhava? A pois, fosse. Aquele homem me temia? Da admiração de meu povo todo, dei fé, borborinho com que me rodeavam. Certo, deviam de estar com invejas. Fosse! E a mãe!... A primeira coisa, que um para ser alto nesta vida tem de aprender, é topar firme as invejas dos outros restantes... Me rejo, me calejo! Só por causa

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