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na beira do riachão...

Assim achado, tudo, e o mais, sem sobranço nem desgosto, eu apalpei os cheios. O respeito que tinham por mim ia crescendo no bom entendido dos meus homens. Os jagunços meus, os riobaldos, raça de UrutuBranco. Além! Mas, daí, um pensamento – que raro já era que ainda me vinha, de fugida, esse pensamento – então tive. O senhor sabe. O que me mortifica, de tanto nele falar, o senhor sabe. O demo! Que tanto me ajudasse, que quanto de mim ia tirar cobro? - “Deixa, no fim me ajeito...”

– que eu disse comigo. Triste engano. Do que não lembrei ou não conhecesse, que a bula dele é esta: aos poucos o senhor vai, crescendo e se esquecendo...

Daí, mesmo, que, certa hora, Diadorim se chegou, com uma avença. Para meu sofrer, muito me lembro. Diadorim, todo formosura.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas

- “Riobaldo, escuta: vamos na estreitez deste passo...” – ele disse; e de medo não tremia, que era de amor – hoje sei.

- “... Riobaldo, o cumprir de nossa vingança vem perto...

Daí, quando tudo estiver repago e refeito, um segredo, uma coisa, vou contar a você...” Ele disse, com o amor no fato das palavras. Eu ouvi. Ouvi, mas mentido. Eu estava longe de mim e dele. Do que Diadorim mais me disse, desentendi metade.

Só sei que, no meio reino do sol, era feito parássemos numa noite demais clareada. Assim figuro. Dentro de muito sol, eu estava reparando uma cena: que era um jumentinho, um jegue já selvagem caatingano, no limpo do campo caçando o que roer, assaz pelos cardos.

Eu não tinha de tomar tento em coisas mais graves? Mire veja o senhor. Picapau voa é duvidando do ar. Que tal Zé Bebelo

– na hora me lembrei – quando mal irado, ou quando conforme querendo impor medo a todos: - “Norte de Minas! Norte de Minas...!”-o que bramava. E ele estava com a razão. Mas Zé Bebelo era projetista. Eu, eu ia por meu constante palpite.

Usando de toda ajuda que me vinha, mas prevenido sempre contra o Maligno: que o que rança, o que azeda. As traças dele

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas são novas sempre, e povoadas tantas, são que nem os tins de areia grãoindo em areal. Então eu não sabia?!

Ah, quase que eu estava cogitando nisso, quando o homem rosnou. Quem ele era, digo, em qualidade: um, troncudo, pardaz, genista, filho não sei de que terra. Assim, casta de gente?

Ah, não. Por meu bem, eu estava em todo o meu siso. Até mais. “Não faço caso!” – eu disse, isto é: pensei dizendo. Eu não queria somar com aquilo nenhum; porque cheirava ao Cujo: esses estratagemas. Era do demo... – eu tirei um enredo. “Pois, então, paz...” – eu falei, me falei. “... Não faço conta...” – me prometi.

Eu estava em manhas. Estive que estive no embalançar, em equilibrável. Tico tanto pensei. Mas tudo era frisado ligeiro, ligeiro, feito cavalo que pressente fúria de boi.

Aí escutei a voz – a voz dele tremia nervosa, como de cabrito; da maneira que gritou – à briga. Um desfeliz. Levei os olhos.

Ah, quem o homem era, eu já sabia, ele se chamava Treciziano. O bruto; para falar com ele, só a cajado. Eu sabia.

Rebém que desconfiei do demo. Ali esse Treciziano era fraco de paciências; ou será que estivesse curtindo mais sede do que os

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas outros – segundo esse tremor das ventas – e pegou a malucar?

Diziam que ele criava dor-de-cabeça, e padecia de erupções e dartros. Estava falando contra comigo, reclamando, gritou uma ofensa. Homem zuretado, esbraseia os olhos. Eu, senhor de minhas inteligências, como fica dito. Eu estava podendo refletir, em passo de jumento. - “Siô, deixa o padre of recer missa...” –

falei para mim mesmo. Eu queria tolerar, primeiro: porque o demo não era homem para mandar em mim e me pôr em raiva.

Aí, era só eu forçar calma, tenteador; depois, com palavras de energia boa, eu acautelava evitando a jerimbamba, e daí repreendia esse Treciziano, revoltoso, próprio por autoridade minha, mas sem pau nem pedra. Que dessa – chefe eu – o O não me pilhava...

Mas – ah! – quem diga: um faz, mas não estipula. O que houve, que se deu. Que vi. Com a sede sofrida, um incha, padece nas vistas, chega fica cego. Mas vi. Foi num átimo. Como que por distraído: num dividido de minuto, a gente perde o tino por dez anos. Vi: ele – o chapéu que não quebrava bem, o punhal que sobressaía muito na cintura, o monho, o mudar das caras...

Ele era o demo, de mim diante... O Demo!... Fez uma careta, que sei que brilhava. Era o Demo, por escarnir, próprio pessoa!

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas E ele endireitou pontudo para sobre mim, jogou o cavalo...

O demo? Em mim, danou-se! Como vinha, terrível, naquele agredimento de boi bravo. Levantei nos estribos. - “E-hê!...”

Esse luzluziu a faca, afiafe, e urrou de ódio de enfiar e cravar, se debruçando, para diante todo. Tirou uma estocada. Cerrei com ele... A ponta daquela pegou, por um mau movimento, nas coisas e trens que eu tinha na cintura e a tiracol: se prendeu ali, um mero. Às asas que eu com a minha quicé, a lambe leal –

pajeuzeira – em dura mão, peguei por baixo o outro, encortei-recortei desde o princípio da nuca – ferro ringiu rodeando em ossos, deu o assovião esguichado, no se lesar o cano-do-ar, e mijou alto o sangue dele. Cortei por cima do adão... Ele Outro caiu do cavalo, já veio antes do chão com os olhos duros apagados... Morreu maldito, morreu com a goela roncando na garganta!

E o que olhei? Sangue na minha faca – bonito brilho, feito um verniz veludo... E ele: estava rente aos espinhos dum mandacaru-quadrado. Conforme tinha sido. Ah-oh! Aoh, mas ninguém não vê o demônio morto... O defunto, que estava ali, era mesmo o do Treciziano!

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas A morte dele deu certo. E era, segundo tinha de ser? E

tinha de ser, por tanto que o demo não existe! As tramóias, armadilhas... Nem nunca mais, daí por diante, eu queria pensar nele. Nem no pobre do Treciziano, que estava ali, degolal, que eu tinha... Um frio profundíssimo me tremeu. Sofri os pavores disso

– da mão da gente ser capaz de ato sem o pensamento ter tempo.

Somente todos me gabaram, com elogios e palavras prezáveis, porque a minha chefia era com presteza. Fosse de tiro, tanto não admiravam a tanto, porque a minha fama no gatilho já era a qual; à faca, eh, fiz! E do outro grupo, longe mas que era o mais perto, da banda da mão esquerda, um escutou ou viu, e veio. Era o Jiribibe, mocinho Jiribibe, num cavalo preto galopeiro. Diadorim tinha disparado tiro, só esmo; de nervosia.

Dentro de pouco, todos iam ficar cientes da proeza daquele homem tão morto: das beiras do corte – lá nele – a pele subia repuxada, a outra para baixo tinha descaído tamanhamente, quase nas maminhas até, deixavam formado o buraco medonho horrendo, se aparecendo a toda carnança. Aí Alaripe esclareceu: -

“Ao que sei, este era da Serra d’Umã...” O de tão longe, o sapo leiteiro! Uns estavam remexendo nele – não tinha um pêlo nos peitos. Assim queriam desaliviar aquele corpo, das coisas de valor

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas principais. Do que alguém disse que ele guardava: um dixe, joiazinha de prata; e as esporas eram as excelentes, de bom metal.

Não turveei. Morte daquele cabra era em ramo de suicídios-

“A modo que morreu? Ele foi para os infernos?”-indagou em verdade o menino Guirigó. Antes o que era que eu tinha com isso, como todos me louvaram? Sendo minha a culpa – a morte, isso sei; mas o senhor me diga, meussenhor: a horinha em que foi, a horinha? Como que o cego Borromeu garrou um fanhoso recitar, pelos terços e responsos. Medo de cego não é o medo real. Diadorim me olhava – eu estivesse para trás da lua. Só aí, revi o sangue. Aquele, em minha roupa, a plasta vermelha fétida.

Do sangue alheio que grosso me breava, mal me alimpei o queixo; eu, desgostoso de sangue, mas deixava, de sinal? Ah, não, pois ali me salteou o horror maior. Sangue... Sangue é a coisa para restar sempre em entranhas escondida, a espécie para nunca se ver. Será por isso também que imensa mais é a oculta glória de grandeza da hóstia de Deus no ouro do sacrário – toda alvíssima!

– e que mais venero, com meus joelhos no duro chão.

Por mais, o corpo ali ficava, para o ar do raso. Sumimos de lá, há-se que tocávamos, adiante. À viajadamente eu ia, desconversei meu espírito. Até às aleluias!

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Que, como conto. Aquele Treciziano tinha redobrado destino de tristefim de louco. Pois nem bem três léguas andadas, daí depois, a gente saía do Liso, como que a ponto: dávamos com uma varzeazinha e um esporão da serra; chapadas, digo.

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