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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Veredas-Mortas. Garoa da madrugada. E, a bem dizer por um caminho sem expedição, saí, fui vindo m’embora. Eu tinha tanto friúme, assim mesmo me requeimava forte sede. Desci, de retorno, para a beira dos buritis, aonde o pano d’água. A clarida-dezinha das estrelas indicava a raso a lisura daquilo. Ali era bebedouro de veados e onças. Curvei, bebi, bebi. E a água até nem não estava de frio geral: não apalpei nela a mornidão que devia-de, nos casos de frio real o tempo estar fazendo. Meu corpo era que sentia um frio, de si, frior de dentro e de fora, no me rigir. Nunca em minha vida eu não tinha sentido a solidão duma friagem assim. E se aquele gelado inteiriço não me largasse mais.
Foi orvalhando. O ermo do lugar ia virando visível, com o esboço no céu, no mermar da d’alva. As barras quebrando. Eu encostei na boca o chão, tinha derreado as forças comuns do meu corpo. Ao perto d’água, piorava aquele desleixo de frio.
Abracei com uma árvore, um pé de breubranco. Anta por ali tinha rebentado galhos, e estrumado. – “Posso me esconder de mim?...” Soporado, fiquei permanecendo. O não sei quanto tempo foi que estive. Desentendi os cantos com que piam, os passarinhos na madrugança. Eu jazi mole no chato, no folhiço, feito se um morcegãocaiaria me tivesse chupado. Só levantei de lá
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas foi com fome. Ao alembrável, ainda avistei uma meleira de abelha aratim, no baixo do pau-de-vaca, o mel sumoso se escorria como uma mina d’água, pelo chão, no meio das folhas secas e verdes. Aquilo se arruinava, desperdiçado. Senhor, senhor
– o senhor não puxa o céu antes da hora! Ao que digo, não digo?
Cheguei no meio dos outros, quando o jacaré estava terminando de coar café. – “Tu treme friúra, pegou da maleita?”
– algum me perguntou. – “Que os carregue!” – eu arrespondi. E
mesmo com o sol saindo bom, cacei um cobertor e uma rede.
Arte – o enfim que nada não tinha me acontecido, e eu queria aliviar da recordação, ligeiro, o desatino daquela noite. Assim eu estava desdormido, cisado. Aí mesmo, no momento, fui ecogitando: que a função do jagunço não tem seu que, nem p’ra que. Assaz a gente vive, assaz alguma vez raciocina. Sonhar, só, não. O demônio é o Dos-Fins, o Austero, o Severo-Mor.
Aporro!
Sabendo que, de lá em diante, jamais nunca eu não sonhei mais, nem pudesse; aquele jogo fácil de costume, que de primeiro antecipava meus dias e noites, perdi pago. Isso era um sinal? Porque os prazos principiavam... E, o que eu fazia, era que eu pensava sem querer, o pensar de novidades. Tudo agora
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas reluzia com clareza, ocupando minhas idéias, e de tantas coisas passadas diversas eu inventava lembrança, de fatos esquecidos em muito remoto, neles eu topava outra razão; sem nem que fosse por minha própria vontade. Até eu não puxava por isso, e pensava o qual, assim mesmo, quase sem esbarrar, o todo tempo.
Nos começos, aquilo bem que achei esquipático. Mas, com o seguinte, vim aceitando esse regime, por justo, normal, assim.
E fui vendo que aos poucos eu entrava numa alegria estrita, contente com o viver, mas apressadamente. A dizer, eu não me afoitei logo de crer nessa alegria direito, como que o trivial da tristeza pudesse retornar. Ah, voltou não; por oras, não voltava.
– “Uai, tão falante, Tatarana? Quem te veja...” – me perguntaram; o Alaripe perguntou. Será que de mim debicavam.
Eu estava, com efeito, relatando mediante certos floreados umas passagens de meus tempos, e depois descrevendo, por diversão, os benefícios que os grados do Governo podiam desempenhar, remediando o sertão do desdeixo. E, nesse falar, eu repetia os ditos vezeiros de Zé Bebelo em tantos discursos.
Mas, o que eu pelejava era para afetar, por imitação de troça, os sestros de Zé Bebelo. E eles, os companheiros, não me
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas entendiam. Tanto, que foi só entenderem, e logo pegaram a rir.
Aí riam, de miséria melhorada.
– “Os mestres, que está certo, amigo...” – o Àlaripe dissesse. - “Deveras, está certo, mano-velho...” – outro, o Rasgaem-Baixo, inteirou.
Aquilo não tolerei. Esse vesgueiro Rasga-em-Baixo, o qual entornava de lado a cabeça, gastando ar demais, o que respirava três vezes forte, e fuxicando o nariz, numa fungação. Desentendi e impliquei.
– “Certo de que, nesta vida? Pois eu nem costumo nunca xingar ninguém de filho daquela ou dessa, por receio de que seja mesmo verdade...” Assim a eles eu disse. Tanto enquanto riam, apreciando me ouvir, eu contei a estória de um rapaz enlouquecido devagar, nos Aiáis, não longezinho da Vereda-da-Aldeia: o qual não queria adormecer, por um súbito medo que nele deu, de que de alguma noite pudesse não saber mais como se acordar outra vez, e no inteiro de seu sono restasse preso.
Mais me acudiam dessas fantasias. E eu relanceei, de repente, e falei o que era que a gente precisava:
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas
– “Urgentemente é se mandar portador, a lugar de farmácia, comprar adquirido remédio forte, que há, para se terminar com a maleita, em definitividade!”
Disse, e daí todos aprovaram; mais Zé Bebelo com aquilo concordou, de imediato. Portador foi.
Eu tinha enjôo de toda pasmacez. Com Zé Bebelo, falei:
– “Chefe, o que se tem de obrar: enviar algum comparsa esperto, que cace de entrar para o bando dos Judas, para no meio deles observar o serviço que se passa, e remeter para a gente as notícias e deixar traço nos lugares. Ou que mesmo dê jeito de liquidar mãomente o Hermógenes – proporcionando venenos, por um exemplo...”
– “A maluqueira, Tatarana, isso que você está definindo...” – Zé Bebelo me contestou.
– “Maluqueiras – é o que não dá certo. Mas só é maluqueira depois que se sabe que não acertou!” – eu atalhei, curto; porque eu naquela hora achava Zé Bebelo inferior; e porque, que alguém falasse contra, por cima das minhas palavras, me dava raiva.
Zé Bebelo retardou em me rever. Do fim, o dizer:
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– “Um homem, para a façanha assim, só mesmo se...”
– “Sol procura é as pontas dos aços...” – eu cortei, sem meio medir o razoado. Ao tanto que Zé Bebelo completava: