"Unleash your creativity and unlock your potential with MsgBrains.Com - the innovative platform for nurturing your intellect." » » ,,Grande Sertão: Veredas'' - de João Guimarães Rosa,

Add to favorite ,,Grande Sertão: Veredas'' - de João Guimarães Rosa,

Select the language in which you want the text you are reading to be translated, then select the words you don't know with the cursor to get the translation above the selected word!




Go to page:
Text Size:

– lá onde houve matas sem sol nem idade. A Mata-de-São-Miguel é enorme – sombreia o mundo... E Diadorim podia ter medo? –

duvidei. Eu sempre sabia: um dia, o medo consegue subir, faz

– 765 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas oco no ânimo do mais valente qualquer... Com tanto, eu fui e disse:

– “Tudo na vida cumpre essa regra...”

Duvidei pouco. Diadorim não temia. O que ele não se vexou de me dizer:

– “Menos vou, também, punindo por meu pai Joca Ramiro, que é meu dever, do que por rumo de servir você, Riobaldo, no querer e cumprir...’ Nem considerei. – “É, o Hermógenes tem de acabar!” – eu disse. Diadorim, ia ter certas lágrimas nos olhos, de esperança empobrecida. Me mirava, e não atinei. Será que até eu achasse uma devoção dele merecida trivial?

Certo seja. Não dividi as finuras. Mas, também, afiguro que responder mais não pude, por motivos de divertência. Qual que, na hora, deu de dar, diante, um desvôo de tanajuras, que pelas grandes quantidades delas, desabelhadas, foi coisa muito valente, para mim foi o visto nunca visto: em riscos, zunindo como enchiam o ar, caintes então, porque a lei delas é essa, como porque o corpo traseiro pesa tão bojudo, ovado, bichão maduro, elas não agüentam o arco de voar, iam semeando palmos de chão, de preto em acobreadas, e tudo mesmo cheirava à natureza delas, cheiro cujo que de limão ruivo que se assasse na chapa.

– 766 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Bagos dessas, muito mundialmente... Caso que os cavalos se espantavam, uns na só cisma até refugando. E o menino Guirigó, de ver mais que todos, tocou cá para adiante, com gritos e arteirices, tão entusiasmável; como tanto aprovei, porque o menino Guirigó do Sucruiú eu tinha botado viajante comigo era mesmo para ele saber do mundo. Mas o esbagoar estirante das tanajuras vinha para toda parte, mesmo no meio da gente, chume-chume, fantasiado duma chuva de pedras, e elas em tudo caíam, e perturbavam, nos ombros dos homens, e no pêlo dos animais. Como digo que eu mesmo a tapas enxotei muitas, e outras que depois tive de sacudir fora da croa de meu chapéu, por asseio. Içá, savitu: já ouvi dizer que homem faminto come frita com farinhas essa imundície... E os pássaros, eles sim, gaviãozinho, que no campo esmeirinhavam, havendo com o que encher os papos. Mas bem porém que cada tanajura, mal ia dando com o chão, no desabe, sabia que tinha de furar um buraco ligeirinho e se sumir desaparecida na terra, sem escolha de sorte, privas de suas asas, que elas mesmas já de si picavam desfolhadas, feito papelzinho. Isso é dos bichos do mundo; uso.

Mas, então, quando mirei e não vi, Diadorim se desaportou de meus olhos. Afundou no grosso dos outros. Ai-de! hei: e eu tinha mal entendido.

– 767 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas E o senhor tenha bons estribos: que informo que o que disse se deu bem em antes dele Diadorim ter tido a conversa com a mulher do Hermógenes. Que agora, do que sei, vou tosquejar.

Como de fato, desamarrou o tempo. Formou muita chuva.

Com assim, emendados chovidos três dias, então certificamos de permanecer esse tempo em prédio, e enchemos a Fazenda Carimã, que era de um denominado Timóteo Regimildiano da Silva; do Zabudo, no vulgar. Esse constituía parentesco proximado com os Silvalves, paracatuanos, cujos tiveram sesmarias, na confrontação das divisas, das duas bandas iguais. Do Zabudo: o senhor preste atenção no homem, para ver o que é um ser esperto.

Primeiro, encontramos de repente com ele, quando se ia por um assente – chapadazinha dessas, de capim fraco. Conciso já principiava a chuviscar, e eu estava pensando: que, por ali, menos longe, algum rancho ou alguma casa de sitiante havia de vagar. Nessa mesma horinha, o tal se apareceu. Conforme vinha, num cavalo baio, com uma daquelas engraçadas selas cutucas, que eles usam, e introduzido em botas-de-montar muito boas, dessas de couro de sucuriju, de que eles faziam antigamente. No natural, que foi ele ver a gente e levou choque.

– 768 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Instantezinho, porém, se converteu. Isto, que se desapeou, ligeiro, e tirou o chapéu, com cortesia mor, com gesto de braço, e manifestou:

– “Senhores meus cavaleiros, podem passar, sem susto e com gosto, que aqui está é um amigo...”

– “Amigo de quem?” – eu revidei.

– “Vosso, meussenhor cavaleiro... Amigo e criado...”

Esperança dele era ver a gente pelas costas. Com ele apertei: aonde que morasse? – “Lá daquela banda, meussenhor...

Sitiozinho raso...” – outrarte ele respondeu, nhento, pasmado.

Atalhei: – “A pois, pra lá vamos, adonde menos chova. O senhor mostre.” Aí ele remudou os modos, falando em muito aprazimento, em honras de sinceridade. A fazenda era ali, só a uns passos. Assim ele já se astuciava.

Do Zabudo, homem somítico, muito enjoativo e sensato.

Requeri dele o prêmio – que marquei em arras de sete contos – e ele se desesperou, conforme caretas, e suas costas das mãos, mesmas, uma e depois a outra, diversas vezes ele beijava. Sempre gemendo que não e que sim, pediu vênia de me noticiar como os negócios da lavoura para ele nos derradeiros três anos andavam

– 769 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas desandando, com peste que no gado deu e redeu, e praga no canavial: por via dela, nem fervia mais safra. E, tudo que falava, explicava e redizia, mesmo se fiou de querer me levar, debaixo de temporal, para exemplificar minhas vistas com o pejorativo de suas posses. Por causa da caceteação, concedi rebates, acabei deixando o estipulado em três-contosquinhentos; e também por receio de se pegar em mim a nhaca daquele atraso. Se bem que, no repleto de dinheiro ganho goiano, como já se estando, eu descarecia de sistema de bruteza com ninguém. E mesmo se traçou que o sustento nosso ele por metade fornecia gracioso, sem estipêndio; escatimava, mas dava. Ao tanto que o resto eu pagava caro, e os percebidos: certas dúzias de ferraduras, o milho para os animais, umas mantas de toicinho e dez quartilhos de cachaça – que, em justo dizer, nem prestava. Bom, lá, era o fumo de rolo. E, já dava de ser: como desemboque, eu pagasse a ele só para se comportar calado. Por fim, penso, a falha nossa lá, para aquele do-Zabudo, ficou quase de graça.

E dito e referido, que chovia em Goiás todo, assistimos dentro de casa, só saindo no quintal para chupar jabuticabas. A gente tinha baralhos, se jogou, rouba-monte e escopa, porque truque eu não consentia, por achar que me faltava floreado rompante para os motes e gritos, que nesse endiabrado jogo

– 770 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas compertencem; e mesmo por achar vadiado, para a minha chefia.

Então bem, enquanto a gente formava essa distração, o do-Zabudo ia e vinha, flauteando, excogitando decerto – para ratinhar e sisar a gente com mangonhas – outras velhaquices choradas. E foi, de repente, ele se chegou com esta, que não se esperava por barato nem caro: – Que a nhã senhora, aquela, suplicava o favor dum particular com o moço chamado Reinaldo...

Essa, nhã, refiro, era a mulher do Hermógenes; que em reserva fechada se tinha, no quarto-do-oratório. E Diadorim, saber o senhor tem, era o conhecido por “Reinaldo”.

Que me invocou – o senhor vai dizer – me causou espantos? Haviade. Eu estava na sala-de-jantar, jogando, com João Goanhá, João Concliz e Marcelino Pampa. Alaripe, com a baciinha de lixívia em areia e com estopa, na soleira da porta para o quintal, acendrava as armas. Ele falou: – “Deus que, olh’ lá: que se o Reinaldo não dá cabo da criatura...” Descontamos. – “Eh, ela será que faz mandraca?” – João Goanhá alvitrou, com essas risadas. – “Ara, para obrar bom feitiço, que valha, diz-se que só mesmo negra, ou negro...” Isto que Marcelino Pampa deu de opinião, enquanto pegava o sete-belo com o sete-de-paus. Eu

– 771 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas joguei, e João Goanhá somou seis e três, na mesa, conforme pegou com um valete, e escopou. Diadorim se tinha encaminhado para onde estava a mulher, para ir ouvir o que ela queria que ele ouvisse.

Tocou minha vez de baralhar e repartir cartas. Ou seria algum pedido que ela tivesse de fazer a ele, bem. Daí, João Goanhá esteve dizendo que a mulher rogava era por sua liberdade. E eu desconversei, observando casual, primeiro a respeito do luxo de tantos anéis que João Goanhá gostava de botar em cheios dedos; e depois chamei atenção para as goteiras abertas na telha-vã daquele grande cômodo, que se carecia de dispor umas latas em diversos pontos e até uma gamela, no meio da mesa, fim de se aparar águas da chuva. Mas, mesmo por mim, eu já tinha perdido a simpatia no divertimento do jogo, e me ergui de lá, fui ver a coisa nenhuma, no alpendre, onde até homens dormiam madraços, aborrecidos com um chover tão constante.

Diadorim não vinha, não dava de sair do quarto-do-oratório. E, quando foi que veio, não me contou nada. O que disse, comum: – “Ah, ela só chorou mágoas...” Não perguntei passo. Devido que não perguntei logo à primeira, depois foi não

– 772 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas ficando bem, para o meu brio, o perguntar. Diadorim se atarantava quieto, nem não era correto o que ele estava fazendo –

escondendo fatos. Palavras que vieram a gume em minha boca, foram estas: – Que eu não gostava de hipocrisias... Pensei, e não disse. Eu podia duvidar das ações de Diadorim? Lá ele alguma criatura para traição? Rosmes! Idéia essa não aceitei, por plausível nenhum. Mas, de motivo como me desgostei, assim resolvi a saída da gente dali da Carimã, no instante mesmo, e dei ordem.

Fossem trazer os cavalos, e arrear, atrás do tempo que fizesse –

enxurradas tais, nuvens grossas, céu nubloso e trovão em ronco.

Chuvas com que os caminhos se afundavam.

E assim cumpriram. Mas, aí nem bem os cavalos vieram no curral, se deu uma estiada muito repentina – por um montão de vento. O céu firmou, e sol, com todos os bons sinais. Ante o que

– por isso e por tanto – a admiração do pessoal foi de grandes mostras. E eu vi que: menos me entendiam, mais me davam os maiores poderes de chefia maior.

Só o do-Zabudo, saiba o senhor, parava fora da roda, sem influência nenhuma, feito um tratante. Saiba o senhor que assim ele ainda me veio, com visagens e embaraços, por amortecer a paga, pedindo ágios de calote e prazos mercantis. Agora – mais

– 773 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas que tudo – saiba o senhor uma coisa, a que ele, para os fins, executou na hora da confusão da saída, no zafamar. Pois de repente trouxe e ofertou a Diadorim, de regalo, uma caixeta da boa e melhor marmelada goiana, dada a valores: – “Ademais o senhor prove o de que demais gostará... A de Santa Luzia, perto desta, perde por famosa...” Dando aquilo a Diadorim, ele não queria disfarçado me agradar, por vantagens? Se sei. O que é que estivesse adedentro das idéias daquele homem? O jeito estúrdio e ladino de olhar a gente, outrolhos – e que na hora não me fez explicação. Sendo que, mediado esse obséquio a Diadorim, ele conseguiu mesmo me adular. Saranga fui, contracontas, contra aquele paranãnista lordaço. Ele se saiu quite, por pouco não pegou até dinheiro meu emprestado. Mesmo pelos cavalos e burros que cedeu, recebeu igual quantidade dos nossos, bem melhores, somente que estavam cansados. Teve até permissão de conservar o dele próprio, o baio, que disse ser de venerada estimação, por herdado pessoal do pai. Nele, amontado prazido, naquela dita cutuca, pandegamente, pois ainda veio, por quarto-de-légua, fazendo companhia à gente. Coisa assim, não se vê.

Tanto ambicionava, que nem temia. Sempre me olhava, finório, com as curiosidades. E assim. Agora, o senhor prestou toda a atenção nesse homem, do-Zabudo? O diabo dele. O senhor me

Are sens