João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas daquele cavalo, até, eu fui ficando mais e mais, enfrentava. Não me riram.
-“É deveras... Animal de riqueza: graúdo, farto e manteúdo...” - “Sorte é isto. Merecer e ter...”
- “Ainda bem que foi bem empregado...”
Só dissessem. Disfarcei meu regozijo. Disse logo foi a tenção de maiores idéias em desejos – segundo a como apeirado aquele eu já queria: que arreado à gaúcha, com peitoral com pratas em meia-lua, e as peças dos arreios chapeadas de belo metal.
- “Ara, que assim ouvi, Tatarana: o nome que ele vai se chamar é mesmo Barzabu?” – algum caçoou de me perguntar.
- “A não, meu compadre torto! Sossega a velha... Nome que dou a ele, d’ora em diante, conferido, é este – quem que aprender, aprende! – que é: o cavalo SiruizL..” – assim foi que eu respondi, sem tempo nenhum para pensamento. Montei.
Ah, as coisas influentes da vida chegam assim sorrateiras, ladroalmente. Pois Zé Bebelo estava aparecendo ali, e eu atinei, ligeiro, com o que não tinha refletido. Ao que: oferecer e receber um presente daquele, naquelas condições, era a mesma coisa que
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas forte ofender Zé Bebelo. Um dom de tanto quilate tinha de ser para o Chefe. Reconheci, aí. Mas não tirei para trás. Não desapeei. É de ver que, conforme em mim, nesses enquantos, eu já devia de estar fitando Zé Bebelo com um certo desprezo. Ia haver o que ia haver, e eu não me importei. Um qualquer chefe de jagunço havia de ter ímpeto de resolver aquilo fatal. Aí, esperei. Teria sido uma tenção dessas, de arder a desordem no meio nosso, a razão do seô Habão? Pensei o dito, num ínterim. E
pensei pontudo em minhas armas.
Mas Zé Bebelo, acabando de saber o acontecido, mirou em mim, somente, poupado risonho: - “Tal te fica bem, Professor, amontado nesse estampo, queremos havemos de te ver garboso, guerreando as boas batalhas... Em hora!...” – foi o que ele disse, se me seja que gostou pouco. Choveu para o meu arrozal! Ah, mesmo só inteligência, só, era que que era aquele homem.
Desapeei.
Como por um rasgo, para solércias, dei o cabresto ao Fafafa. Disse: – “Tu desarreia, amilha e escova, tu trata dele...” ; e isso fiz, porque o Fafafa, que tanto gostava simples de cavalos, era o prestante para cuidar dum animal, em mesmo que dele não sendo. Mas eu tinha dado uma ordem. Assim me refiz. E o seô
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Habão tinha trazido também boa quantidade de remédio para se tomar pela maleita, das pastilhas mais amargosas. Todo o mundo recebia.
Saí, uns passos. Eu estava dando as costas a Zé Bebelo. Ele podia, num relance, me agredir de morte, me atirar por detrás... –
atentei. Esbarrei em meu caminhar, fiquei assim parado, assim mesmo. O medo nenhum: eu estava forro, glorial, assegurado; quem ia conseguir audácias para atirar em mim? As deles haviam de amolecer e retombar, com emortecidos braços; eu podia dar as costas para todos. O que o Drão – o demonião – me disse, disse: seria só? Olhei para cima: pegaram nas nuvens do céu com mãos de azul. Aquela firme possança; assim permaneci, outro tempo, acendido. Eu leve, leve, feito de poder correr o mundo ao redor. Ao senhor eu conto, direto, isto como foi, num dia tão natural. Será que, de cousas tão forçosas, eu ia poder me esquecer? Aquele dia era uma véspera.
Em tanto o seô Habão jantou com a gente. Raimundo Lê repartiu com os carecidos as pastilhas de remédio. Diadorim meu amigo estava. Zé Bebelo me chamou adeparte, me expondo especializado diversas coisas que pretendia reformar de fazer.
Alaripe conversou comigo. E dessa derradeira conversa quero
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas referir ao senhor. Foi que, eu puxando, eu desejando saber, se falou muito nessas orações de curar a gente contra bala de morte, e em breves que fecham o corpo. Alaripe então contou uma estória, caso sucedido, fazia tempos, no giro do sertão. O qual era o seguinte.
Um José Misuso uma vez estava ensinando a um Etelvininho, a troco de quarenta mil-réis, como é que se faz a arte de um inimigo ter de errar o tiro que é destinado na gente.
Do que deu o preceito: - “... Só o sangue-frio de fé é que se carece – pra, na horinha, se encarar o outro, e um grito pensar, somente: Tu erra esse tiro, tu erra, tu erra, a bala sai vindo de lado, não acerta em mim, tu erra, tu erra, filho de uma cã!...”
Assim ele ensinou ao Etelvininho, o Misuso. Mas, aí, o Etelvininho reclamou: - “Ara, pois, se é só isso, só issozinho, pois então eu já sabia, mesmo por mim, sem ninguém me ensinar
– já fiz, executei assim, umas muitas vezes...” - “E fez igualzinho, conforme o que eu defini?” – indagou o José Misuso, duvidando.
- “Igualzinho justo. Só que, no fim, eu pensava insultado era: ...
seu filho duma cuia!...” – o Etelvininho respondeu. - “Ah, pois então” – o José Misuso cortou a questão - “... pois então basta que tu me pague só uns vinte mil-réis...”
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas A gente muito rimos todos. A hora a ser de satisfa, alegrias sobejavam. Se caçoou, se bebeu, um cantou o sebastião.
Mansinho, mãe, chegaram as voltas da noite. Dormi com a cara na lua.
Acordei. A madrugada com luar, me lembro, acordei com o rumor de cavaleiros que vinham chegando, no esquipado, e que travavam repentino com áspero estremecimento os cavalos: br’r’r’uuu... Calculei: uns dez. Ao que eram. Levantei, pulando de minha rede, quem podiam esses ser? Todos os companheiros nos rifles, e eu não tinha escutado aviso de sentinelas.
Madrugada essa boa claridade. Luar que só o sertão viu.
Vim dele.
- “Aí é o nosso João Goanhá, com os cabras...” – disse Diadorim, que tinha a rede dele armada da minha a uns três passos. Assim era. João Goanhá, o Paspe, Drumõo, o compadre Ciril, o Bobadela, o Isidoro... Tornar a encontrar companheiros desses, aí é que se põe significado na vida, se encompridando se encurtando. O João Goanhá, gordo, forte, barbudo. Era a dele uma barba muito fechada, muito preta. Veio do luar, chegou bom. Todo o mundo falava, a gente se abraçava. Com pouco o fogo se acendia, para o café, para algum almoço. Enquanto isso,
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Zé Bebelo, formado em pé, o mais rompante que pudesse, pedia notícias por interrogação.
Antes, as verdades, essas, as coisas comuns, conforme foi que se passaram. Mais não sei? Mesmo não tinha botado idéia na cabeça, acabando de despertar de meu sono. Diadorim era o que estava alegrinho especial: só se ele tinha bebido. Diadorim, de meu amor – põe o pezinho em cera branca, que eu rastreio a flor de tuas passadas. Me recordo de que as balas em meu revólver verifiquei. Eu queria a muita movimentação, horas novas. Como os rios não dormem. O rio não quer ir a nenhuma parte, ele quer é chegar a ser mais grosso, mais fundo. O Urucuia é um rio, o rio das montanhas. Rebebe o encharcar dos brejos, verde a verde, veredas, marimbus, a sombra separada dos buritizais, ele.
Recolhe e semeia areias. Fui cativo, para ser solto? Um buraquinho d’água mata minha sede, uma palmeira só me dá minha casa. Casinha que eu fiz, pequena – ô gente! – para o sereno remolhar. O Urucuia, o chapadão derredor dele. Estas árvores: essas árvores. Conversa, Zé Bebelo: conversa, com as marrecas chocas, no meio das varas do juncal. Mesmo na hora em que eu for morrer, eu sei que o Urucuia está sempre, ele corre. O que eu fui, o que eu fui. E esses velhos chapadões –
dele, dos Couros, de Antônio Pereira, dos Arrepiados, do Couto,
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