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As forças me amanheceram acordado.

Adiante da gente, o mangabeiral. Depois, o raso. Aí o Liso do Suçuarão – em fundo e largo, as cinqüenta léguas e as quase trinta léguas, das mais. Ninguém me fazia voltar a seco de lá.

Aquela hora, eu só não me desconheci, porque bebi de mim –

esses mares. Também eu não ia naquilo sem alguma razão, mas movido merecido. Por conta do Hermógenes? Nossos dois bandos viajavam em guerra e contraguerra, e desenrolando caminhos, por esses Gerais, cães, se caçando. Só que o sertão é grande ocultado demais. Então, eu ia, varava o Liso, ia atacar a

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Fazenda dele, com família. Ovo é coisa esmigalhável. E a bem.

Para vencer justo, o senhor não olhe e nem veja o inimigo, volte para a sua obrigação. Mas eu dava as costas à cobra e achava o ninho dela, para melhor acerto. Ao que, esse não tinha sido o arrojo de Medeiro Vaz?

O dia parava formoso, suando sol, mesmo o vento suspendido. Vi o chão mudar, com a cor de velho, e as lagartixas que percorriam de leve, por debaixo das moitas de caculucage. O

pessoal meu não devia de estar com inquietação? Vi uma coruja –

mas corujinha entortadeira; e coruja só agoura mesmo é em centro de noite, quando dá para risã. E cuspi no branco leite duma maria-brava, que toda às sãs cheirosa florescia. Era a hora.

Repuxei os freios, bem esbarrando. Equei os meus homens.

- “Aqui, gente.”

Guerreiros em minha presença! Com certo rebuliço, como todos vieram, para saber daquela novidade. Declarei a eles.

Todos me entenderam? Em fila – as caras todas ficando iguais.

Me seguissem? Ah, nenhum não tinha ar do que ia ser, e que fazia tantos dias eu tencionava. Nem João Goanhá, Marcelino Pampa, João Concliz, nem o Alaripe. Nem Diadorim. Diadorim me olhou tremeluzentemente: de coragem, de disposto. Ele, sim.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Mas, os outros? Seria que medissem meu mor atrevimento? Era feito se eu estivesse aloucado extenso.

Porque, o que eu estava mandando, nem Medeiro Vaz mesmo não teria sido capaz de crer: eu queria tudo, sem nada!

Aprofundar naquele raso perverso – o chão esturricado, solidão, chão aventesma – mas sem preparativos nenhuns, nem cargueiros repletos de bom mantimento, nem bois tangidos para carneação, nem bogós de couro-cru derramando de cheios, nem tropa de jegues para carregar água. Para que eu carecia de tantos embaraços? Pois os próprios antigos não sabiam que um dia virá, quando a gente pode permanecer deitada em rede ou cama, e as enxadas saindo sozinhas para capinar roça, e as foices, para colherem por si, e o carro indo por sua lei buscar a colheita, e tudo, o que não é o homem, é sua, dele, obediência? Isso, não pensei – mas meu coração pensava. Eu não era o do certo: eu era era o da sina! E nem enviei adiante nenhuma patrulha de farejadores – nem Suzarte, Nélson ou o Quipes, que tapejassem; nem o Tipote para trilhar e entender, ver se divulgava os socorros: alguma grota duvidável d’água.

Se o cada um que se valesse, cada um que me seguisse. -

“Agora vamos entrar, para pernoitar lá dentro...” – eu determinei.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Só era se aviar. Mas o menino Guirigó, mal me ouvindo, falou: -

“A gente? A gente.”

Esse era um menino, eu não devia de mandar alguém conduzir o Guirigó de volta, para que em lugar seguro deixassem? No ar não fiz. Se não, por que era então que ele para tudo tinha vindo? Os outros, não me cumprissem, eu havia de voltar de lá, dar de mão de minha tenção? Nuncas. Só melhor sozinho eu ia. Ia, por meus brancos ossos. Transe, tempo, que esperei a resposta deles. Dei a palavra! Meus homens. Ah, jagunço não despreza quem dá ordens diabradas.

- “Se amanhã meu dia for, em depois-d’amanhã não me vejo.” - “Antes de menino nascer, hora de sua morte está marcada!”

- “Teu destino dando em data, da meia-noite tu vivente não passa...” Os que diziam assim eram todos eles, secundando os cabecilhas. Valentes que eram, e como foram se animando. Ao que me obedeciam, ao meu melhor em redor. A gente andou no comum, até ao fim do grameal. Aí, se estava, se esbarrava, frente a frente com o Liso. Rédeas às ordens. A gente se moveu.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Sol em glória. Eu pensei em Otacilia; pensei, como se um beijo mandasse. Soltando rédeas, entrei nos horizontes. Aonde entrei, na areia cinzenta, todos me acompanhando. E os cavalos, vagarosos; viajavam como dentro dum mar.

O senhor vê e vê? Alguém a alto me levou, alguém, salvo a um seguinte. Águas não desmanchavam meu torrão de sal. Ah, nem eu não tive incerteza em mente. Assim fomos. Aí eu em frente adiante.

A fortes braços de anjos sojigado. O digo? Os outros, a em passo em passo, usufruíam quinhão da minha andraja coragem.

Rasgamos sertão. Só o real. Se passou como se passou, nem refiro que fosse difícil-ah; essa vez não podia ser! Sobrelégios?

Tudo ajudou a gente, o caminho mesmo se economizava. As estrelas pareciam muito quentes. Nos nove dias, atravessamos.

Todos; bem, todos, tirante um. Que conto.

O que era – que o raso não era tão terrível? Ou foi por graças que achamos todo o carecido, nãostante no ir em rumos incertos, sem mesmo se percurar? De melhor em bom, sem os maiores notáveis sofrimentos, sem em-errar ponto. O que era, no cujo interior, o Liso do Suçuarão? – era um feio mundo, por si, exagerado. O chão sem se vestir, que quase sem seus tufos de

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas capim seco em apraz e apraz, e que se ia e ia, até nãoonde a vista não se achava e se perdia. Com tudo, que tinha de tudo. Os trechos de plano calçado rijo: casco que fere faíscas – cavalo repisa em pedra azul. Depois, o frouxo, palmo de areia de cinza em-sobre pedras. E até barrancos e morretes. A gente estava encostada no sol. Mas, com a sorte nos mandada, o céu enuveou, o que deu pronto mormaço, e refresco. Tudo de bom socorro, em az. A uns lugares estranhos. Ali tinha carrapato... Que é que chupavam, por seu miudinho viver? Eh, achamos reses bravas –

gado escorraçado fugido, que se acostumaram por lá, ou que de lá não sabiam sair; um gado que assiste por aqueles fins, e que como veados se matava. Mas também dois veados a gente caçou

– e tinham achado jeito de estarem gordos... Ali, então, tinha de tudo? Afiguro que tinha. Sempre ouvi zum de abelha. O dar de aranhas, formigas, abelhas do mato que indicavam flores.

Todo o tanto, que de sede não se penou demais. Porque, solerte subitamente, pra um mistério do ar, sobrechegamos assim, em paragens. No que nem o senhor nem ninguém não crê: em paragens, com plantas.

De justiça, digo, também: uma regra se teve, sem se saber de quem foi que veio a idéia dessa combinação. Qual foi que a

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas gente se apartou, em grupos de poucos, jornadeando com a maior distância aberta. Mas que, assim, quando um avistasse qualquer coisa diversa, podia dar sinal, chamando os outros para novidade boa.

Eu que digo. Mesmo, não era só capim áspero, ou planta peluda como um gambá morto, o cabeça-de-frade pintarroxa, um mandacaru que assustava. Ou o xiquexique espinharol, cobrejando com suas lagartonas, aquilo que, em chuvas, de flor dói em branco. Ou cacto preto, cacto azul, bicho luís-cacheiro.

Ah, não. Cavalos iam pisando no quipá, que até rebaixado, esgarço no chão, e começavam as folhagens – que eram urtigão e assa-peixe, e o neves, mas depois a tinta-dos-gentios de flor belazul, que é o anil-trepador, e até essas sertaneja-assim e a maria-zipe, amarelas, pespingue de orvalhosas, e a sinhazinha, muito melindrosa flor, que também guarda muito orvalho, orvalho pesa tanto: parece que as folhas vão murchar. E erva-curraleira... E a quixabeira que dava quixabas.

Digo – se achava água. O que não em-apenas água de touceira de gra vatá, conservada. Mas, em lugar onde foi córrego morto, cacimba d’água, viável, para os cavalos. Então, alegria. E

tinha até uns embrejados, onde só faltava o buriti: palmeira alalã

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas

– pelas veredas. E buraco-poço, água que dava prazer em se olhar. Devido que, nas beiras – o senhor crê? – se via a coragem de árvores, árvores de mata, indas que pouco altaneiras: simaruba, o anis, canela-do-brejo, pau-amarante, o pombo; e gameleira. A gameleira branca! Como outro-tempo se cantava: Sombra, só de gameleira,

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