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Mas, aí, foi que vi e repeli o que que é ódio de leproso! Na cabeça daqueles olhos, eu armei minha pontaria.

E ouvi o vir dum cavaleiro. Esperei. Não dissessem que eu tinha baleado à traição o maldelazento, com escondidos de não ter testemunhas. Quem vinha? Em já madruga-manhã, tudo clareado, reconheci: Diadorim! Embolsei a arma, sem razão.

Diadorim me perseguia? “Vigia, Diadorim: tu pune por este?!” –

eu havia de indagar, apontando o esconso do leproso. “Estou aqui, te vejo é você mesmo, Riobaldo...” – ele ia dizer - “...

Riobaldo, tem tento!”... A imaginação dessa conversa, eu pensei de relance, como uma brasa chia em dentro de vasilha d’água.

Assim estremeci, eu ente. Porque, do bafo mesmo de minha idéia vã, eu estava catando tal anúncio de acusação: – Tu traz o Arrenegado... Eu e ele – o Dê?! Então, num sutil, podia mesmo

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas ser que ele quisesse estar tomando conta de mim? – Aí, nem nunca, nem! – eu rosnei, riso. Espinoteei na sela, feito acordado dum cochilo de cão. E Diadorim tropeava chegando. Mas eu virei rédea e roseteei, com brado, meu animal cumprindo: rompemos em galope que era um abismo...

-Eh, diogo! dianho!... Eh diogo, eh dião...

Retos, fomos, desabalando, que um quarto-de-légua quase, por doidejo. Nós três? Que eu pensei. E esbarrei, por tanto; meu cavalo sacudiu o pescoço todo. Espiei em roda, até com a mão.

Não vi o demo... Meu espírito era uma coceira enorme. Como eu ia poder contra esse vapor de mal, que parecia entrado dentro de mim, pesando em meu estômago e apertando minha largura de respirar? Aí eu carecia de negar pouso a ele. A nega. Eu quis! Eu quis?

Como olhei, Diadorim estava acolá, estacado parado no lugar, perto da árvore do homem. Por certo ele tinha enxergado a coisa viva, e estava desentendendo meu espaço, esses desatinos.

Contemplei Diadorim, daquela distância. Montado sempre, teso de consciência, ele me parecia mais alto de ser, e não bulia, por mim avistado. E o lázaro? Ah, esse, que se espertasse, que fugisse, para não falecer... Que é que adiantava que, àquela hora,

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas os passarinhos cantassem, acabando de amanhecer o campo sertão? A enquanto sobejasse de viver um lázaro assim, mesmo muito longe, neste mundo, tudo restava em doente e perigoso, conforme homem tem nojo é do humano.

Condenado de maldito, por toda lei, aquele estrago de homem estava; remarcado: seu corpo, sua culpa! Se não, então por que era que ele não dava cabo do mal, ou não deixava o mal dar logo cabo dele? Homem, ele já estava era morto. Que o que Diadorim dissesse; que dissesse. Que aquele homem leproso era meu irmão, igual, criatura de si? Eu desmentia. Como era que, sabendo de um lázaro assim, eu ia poder prezar meu amor por Diadorim, por Otacília?! E eu não era o Urutu-Branco? Chefe não era para arrecadar vantagens, mas para emendar o defeituoso. Esporeei, voltando. “Não sou do demo e não sou de Deus!” – pensei bruto, que nem se exclamasse; mas exclamação que havia de ser em duas vozes, uma muito diferente da outra.

Vim feito. Tornei a empunhar o revólver. Mas completei, eu mesmo, aquilo que Diadorim decerto ia me responder:

“Riobaldo, tu mata o pobre, mas, ao menos, por não desprezar, mata com tua mão cravando faca-tu vê que, por trás do podre, o sangue do coração dele é são e quente...” Encostar nele a ponta de minha franqueira de cabo prateante? – Toma! Tu cai no

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas chão... Agalopando assim, joguei fora meu revólver. Joguei – ou foi um ramo de rompe-gibão que relou arrancando a arma de meu pulso. Cheguei, esbarrei. Meu cavalo, tão airoso, batia mão, rapava; ele deu um bufo de burro. Vi Diadorim. Mas o leprento tinha ganhado para se ir, graças que não assisti à arriação dele: decerto descendo às pressas, se escapando de gatas nas moitas de feijão-bravo. Desse, tive um cansaço enorme; pode que seja por não saber se matava ou não matava, caso ele ainda estivesse lá.

Do leproso.

Mas Diadorim, conforme diante de mim estava parado, reluzia no rosto, com uma beleza ainda maior, fora de todo comum. Os olhos-vislumbre meu – que cresciam sem beira, dum verde dos outros verdes, como o de nenhum pasto. E tudo meio se sombreava, mas só de boa doçura. Sobre o que juro ao senhor: Diadorim, nas asas do instante, na pessoa dele vi foi a imagem tão formosa da minha Nossa Senhora da Abadia! A santa...

Reforço o dizer: que era belezas e amor, com inteiro respeito, e mais o realce de alguma coisa que o entender da gente por si não alcança.

Mas repeli aquilo. Visão arvoada. Como que eu estava separado dele por um fogueirão, por alta cerca de achas, por

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas profundo valo, por larguez enorme dum rio em enchente. De que jeito eu podia amar um homem, meu de natureza igual, macho em suas roupas e suas armas, espalhado rústico em suas ações?! Me franzi. Ele tinha a culpa? Eu tinha a culpa? Eu era o chefe. O sertão não tem janelas nem portas. E a regra é assim: ou o senhor bendito governa o sertão, ou o sertão maldito vos governa... Aquilo eu repeli?

Antes que Diadorim mesmo abrisse boca para me sorrir, me falar, eu tive de fazer uma coisa. A meio em ânsia, meio em astúcia; meio em raiva. Como foi que peguei o vivo de tal idéia, em gesto, como se deu de que me alembrei daquilo? Homem, não sei. Mas enfiei mão: por entre armas e cartucheiras, e correias de mochilas, abri à berra meu jaleco e a minha camisa. Aí peguei o cordão, o fio do escapulário da Virgem – que em tanto cortei, por não poder arrebentar – e joguei para Diadorim, que aparou na mão. Ia me fazer alguma pergunta, que eu não consenti, a voz dele era que mais significava. Isto é, porque eu primeiro falei, como resumo. - “Hei-á, voltar – que o povoão está de minha espera!” – eu enfim disse; eu ainda estava respirando muito ligeiro demais.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Assim eu dava era ordem, como convinha. Eu não estava de francamentes. Para mim, um palmo, àquela hora, podia medir três braças. Apertei. Nem meu cavalo carecia disso: era eu encolher um pé, e ele já via vôo. À paz! Mas Diadorim, vez de logo vir, tocou em contrário. Sustentei em esbarro meu Siruiz, a ver, querendo as curiosidades. Diadorim estava indo lá, modo de caçar e recolher o revólver, que de minha mão tinha caído. Num repousozinho de coração, calado eu agradeci à amizade dele essa fineza. Daí, vim. Sempre longe em frente, portanto que meu cavalo soberbo não dava alcance para ele se emparelhar. Daí, cantei. Mesmo mal, me canteipor causa que via que, medeando tão grandes silêncios, era que Diadorim tomava mais sorrateiro poder em meu afeto, que não era possível concernente. Entre isso, chegamos de volta no arranchamento. Mas cheguei lá foi para ter ocupação de uma estúrdia novidade. Com os urucuianos.

O senhor estando lembrado: aqueles cinco, soturnos homens, catrumanos também, dos Gerais, cabras do Alto-Urucuia. Os primeiros que com Zé Bebelo tinham vindo surgidos, e que com ele desceram o Rio Paracatu, numa balsa de talos de buriti. Esses sempre mereceram pouca história da gente, por quietos e certos, bem procedidos, sujeitos de furtadas palavras. Agora eles comigo queriam um entendimento. Um

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Diodato, esse era o cabo deles. Formou em frente dos outros, puxando a parlagem.

Queriam conversa comigo em só, apartada. Eu apreciasse aqueles homens. A valentia deles estava por dentro de muita seriedade. Urucuiano conversa com o peixe para vir no anzol – o povo diz. As lérias. Como contam também que nos Gerais goianos se salga o de-comer com suor de cavalo... Sei lá, sei? Um lugar conhece outro é por calúnias e falsos levantados; as pessoas também, nesta vida. Mas aqueles cinco me condiziam. Admirei de ver que eles todos ainda estavam a pé, mas com dobros e bissacos nas costas, feito prontos para pedestre viagem. Sisudez deles ainda semelhava maior. Então constituí meus ouvidos, para o cabecilho, Diodato.

- “Praz vosso respeito, Chefe, a gente decidiram... A gente vamos’embora. Praz vossas ordens...” – o homem me disse, assim mesmo, casmurro com serenidade. Tive de ver bem suas feições, uma cara assim se examinava aos poucos.

Entendi, mas reperguntei. O homem não coçou a cabeça.

Olhos de santo de madeira. O nariz dele era bem grande, nariz que não se empinava. Só tinha a barbazinha que tem um queixo de cavalo.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas O homem não coçou a cabeça. Firme disse. Queriam ir-s’embora, duma vez; careciam. Ah, eles bem que conheciam a regra: que um jagunço sai do bando quando quer – só tem que definir a ida e devolver o que ao chefe ou ao patrão pertence. As armas, eles não devolviam, porque eram deles; mas, como tinham de primeiro vindo a pé, largavam bem agora os cavalos. Pegavam era um tanto de matula – trivial de farinha e carne-seca, e rapadura, para uns três dias, mal. Mesmo assim, era doideira, achei. Doideira tencionarem vagar reto dali donde estávamos, alto ermo, distantes brenhas. Por que é que iam, nem esperando eu desse minha primeira ganhada?

- “A isso, meio acontecidos, Chefe... A conforme a gente carece, praz vosso respeito, senhor, sim...” – o homem meio respondeu, bastante sincero. Reparei no chapéu na cabeça dele, que era de couro de veado suaçuapara, com macias abas e formato muito composto. A cara dele mesmo dava um ar honrável, circunspecto, por mal que com manchas, sarro de alguma velha moléstia, semelhando nódoas de caldo de caju. -

“Sua graça, toda, é Diodato de quê?” – indaguei. - “Diodato Nariz, por alcunha...” – ele disse; disse, de brancura. Conheci como eu nunca tinha dado tento d’atenção naqueles homens, cuja valia. Assim que eles eram, de batismo: e o Pantaleão,

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Salústio João, João Tatu e O-Bispo. Naquela hora, era que eu punha tino. Nunca mais tive notícia desses. Hoje, repenso.

Naquela hora, eu cogitava jeito de conservar todos em companhia. Remei minhas perguntas. Donde que eram?

- “Desses córregos...” Do Buriti-Comprido, Tamboril, Cambaúba, Virgens, Mata-Cachorro, das Cobras... Para cima da Bazra-da-Vaca, Ari nos... Em sertão são. Isso, que são lugares. E

que é que me adiantava saber que tinham suas ocas por lá? O que eu inventei de conhecer era donde tinham estado, quando Zé Bebelo deu com eles, que vinha voltando de Goiás. - “Ah, senhor sim, nas beiras... Roças do rio São Marcos, senhor sim, no Esparramado... Fazenda duma Dona Mogiana...” Cabras dessa Dona Mogiana? Eram. Tinham sido. Mas com sua labuta de plantações. Que qualidades de crimes eles tinham feito, para principiar, crimes de boa inerência? E por que era que tinham querido vir com Zé Bebelo? Isso eu quis perguntar. O que de repente perguntei: - “Por via de que é que vocês desespiritaram de seguir vinda com a gente?” Falei, e refuguei para não ter falado; que gabo e questão não são regra de se negociar. Mas o homem Diodato, distanciado duma minha pergunta dessas, esbarrou vez, demorão; mesmo, num desajeito, ele fungava. E ele comigo não tinha ajuste, mas não queria me ofender sem a razão.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Chega olhou para os companheiros, que acenavam devagar com as cabeças, mas numa maneira brandazinha de sonsa, fora de tudo o mais, para não se entender se é sestro ou anuído – que é do jeito comum como essa gente costuma.

- “Ara, senhor, sim...” – por fim ele falou resposta: - “... que a influência esmoreceu... A gente gastou o entendido...” ; e estava quase meio envergonhado.

Eu disse: - “A pois?”

- “Não vê, Chefe, praz vosso respeito: as coisas demudaram... Que viemos com siu Zé Bebel’... Vai, a gente gastou o entendido...” – ele disse. - “O que Zé Bebelo falou, quando chamou vocês?”

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