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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Como ser? Eu queria e não queria ouvir – não queria e queria.

Resto de toda resposta, que tivesse, tinha de ser acusação. E eu quis. Deu o que me deu, e eu vim, perguntar forçado; sentido, perguntei: - “O recado mandado, Diadorim, tu diz. Teu falar no exato, dever de toda lealdade, é que eu a duras exijo – o que me reverte!...”

- “Sou teu amigo. O recado aquele, Riobaldo, pedi ao arrieiro para dar a uma mulher...”

- “Ah, então foi para uma moça, para a filha do fazendeiro da Santa Catarina, que Otacília é, e que é minha noiva; será?”

- “Riobaldo, pois foi. Em que é que você malda?”

Ao que, por praga, eu relutei no freio. Até o campolino meu cavalo assumiu um espanto. Porque surpreendi o mundo desequilibrado rústico, o que me pertencia e o que não me pertencia. Se a vida coisas assim às horas arranja, então que segurança de si é que a gente tem? Diadorim me olhava.

Diadorim esperou, sempre com serenidade. O amor dele por mim era de todo quilate: ele não tartameava mais de ciúme nem de medo. Disse assim: - “Pedi a ela que rezasse por você,

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Riobaldo... Assim pela esperança de saudade que ela tivesse, que não esbarrasse de rezar, o todo tempo, por costume antigo...”

No argame, no esquisito desgosto de meu espírito, vi que, mesmo antes dele falar, eu já sabia que aquilo era – o que ele não evitava de me dizer. Rude que ainda reperguntei, mesmo assim: -

“Ah, não! Ah, você acha que eu careço de suas rezas orações, por minha ajuda, Diadorim?”

- “Acho, de manhã à noite, Riobaldo... Demais. Nem sei mesmo se alguém te botou o malefício... Tua mãe, mesma, que estivesse viva, achava...” Mor, mor, aí, recebi surto de meu sangue, forte, no corpo da cara e na beira das orelhas, e logo doeu no meu beiço o que eu estava me mordendo, assim para não insultar Diadorim com nomes que fossem da maior ofensa.

Com um tapa na rédea, eu tirei de perto dele a cara de meu cavalo.

- “Acha tua vida, rapaz! Careço é de menos amizades...” –

ainda eu maldisse, me apartando. Ao que bem pensei: – Hás-de!

Rezas essas, o contra? Atira, tu, em anta, com chumbo fino... – e ri mamente. O que era que me transtornava, do meio para o fim, por essa fraseação?

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Sendo que, depois logo, quando esbarramos a caminhada do dia, eu fiz questão de não querer prosa nem presenças de ninguém, para que vissem que eu estava pensativo de projetos, e raivoso. Tristonho. A gente parava no findar do Chapadão, longe no poente, segundo se ia indo, por meu comando. As muitas sérias coisas referi comigo quando eu estava provando a fresca da tarde.

Por curto: minto, se não conto que estava duvidoso. E o senhor sabe no que era que eu estava imaginando, em quem. Ele é? Ele pode? Ainda hoje eu conheço tormentos por saber isso; trastempo que agora, quando as idades me sossegam. E o demo existe? Só se existe o estilo dele, solto, sem um ente próprio –

feito remanchas n’água. A saúde da gente entra no perigo daquilo, feito num calor, num frio. Eu, então? Ao que fui, na encruzilhada, à meia-noite, nas Veredas Mortas. Atravessei meus fantasmas? Assim mais eu pensei, esse sistema, assim eu menos penso. O que era para haver, se houvesse, mas que não houve: esse negócio. Se pois o Cujo nem não me apareceu, quando esperei, chamei por ele? Vendi minha alma algum? Vendi minha alma a quem não existe? Não será o pior?... Ah, não: não declaro.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Desgarrei da estrada, mas retomei meus passos. O senhor segurado não acha? Ao que tropecei, e o chão não quis minha queda. De hoje em dia, eu penso, eu purgo. Eu tive pena de minhas velhas roupas. E rezo. Para a minha reza, Deus dá as costas, mas abaixa meio ouvido. Rezo. Queria ver ainda uma igreja grande, brancas torres, reinando de alto sino, no estado do Chapadão. Como que algum santo ainda não há de vir, das beiras deste meu Urucuia? E o diabo não há! Nenhum. É o que tanto digo. Eu não vendi minha alma. Não assinei finco. Diadorim não sabia de nada. Diadorim só desconfiava de meus mesmos ares.

Escuto o claro riso dele, que era raramente; quer dizer: me alembro. Compadre meu Quelemém me dá conselhos, de tranqüilidade. O que ele renova é: - “... Em presente e futuros...”

Eu sei.

Sempre sei, realmente. Só o que eu quis, todo o tempo, o que eu pelejei para achar, era uma só coisa – a inteira – cujo significado e vislumbrado dela eu vejo que sempre tive. A que era: que existe uma receita, a norma dum caminho certo, estreito, de cada uma pessoa viver – e essa pauta cada um tem – mas a gente mesmo, no comum, não sabe encontrar; como é que, sozinho, por si, alguém ia poder encontrar e saber? Mas, esse norteado, tem. Tem que ter. Se não, a vida de todos ficava sendo

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas sempre o confuso dessa doideira que é. E que: para cada dia, e cada hora, só uma ação possível da gente é que consegue ser a certa. Aquilo está no encoberto; mas, fora dessa conseqüência, tudo o que eu fizer, o que o senhor fizer, o que o beltrano fizer, o que todo-o-mundo fizer, ou deixar de fazer, fica sendo falso, e é o errado. Ah, porque aquela outra é a lei, escondida e vivivel mas não achável, do verdadeiro viver: que para cada pessoa, sua continuação, já foi projetada, como o que se põe, em teatro, para cada representador – sua parte, que antes já foi inventada, num papel...

Ora, veja. Remedeio peco com pecado? Me torço! Com essa sonhação minha, compadre meu Quelemém concorda, eu acho. E procurar encontrar aquele caminho certo, eu quis, forcejei; só que fui demais, ou que cacei errado. Miséria em minha mão. Mas minha alma tem de ser de Deus: se não, como é que ela podia ser minha? O senhor reza comigo. A qualquer oração. Olhe: tudo o que não é oração, é maluqueira... Então, não sei se vendi? Digo ao senhor: meu medo é esse. Todos não vendem? Digo ao senhor: o diabo não existe, não há, e a ele eu vendi a alma... Meu medo é este. A quem vendi? Medo meu é este, meu senhor: então, a alma, a gente vende, só, é sem nenhum comprador...

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Divulgo o meu. Essas coisas que pensei assim; mas pensei abreviado. O que era como eu tivesse de furtar uma folga nos centros de minha confusão, por amor de ter algum claro juizo –

espaço de três credos. E o resto já vinha. O senhor verá, pois.

Porém mais além.

Na Serra do Tatu, o frio ali é tal, que, em madrugadas, a gente necessita de uns três cobertores. Na Serra dos Confins, meados de julho, lá já está sovertendo o laçaço dos ventos, desencontrados, de agosto; como que venta: árvores caídas.

Aonde eu ia, todos achavam natural. Chefe é chefe. Será que eles não sabiam que eu não sabia aonde ia? Isto é – digo – isto é. Não soubessem os começos e os finais. Dalgum modo, eu estava indo e sabendo. Sobre como é que a coruja conseguiu modo de poder voar sem se escutar o rumor do vôo? Ao que eu estava sofismado. Menos que não guardei raiva de Diadorim, nem sentimentos. O desar que ele tinha falado e feito, aquela ruim conversa nossa, não deixou nem nublo: melhor fugiu, de todo, de minha lembrança.

O palpite meu, primeiro, era de chegar até na Serra do Meio

– cruzar na Cachoeira-do-Urucuia. Daí, desisti. De repente, torci direto para o norte; foi no Lagamar, a travessia. Mas, fujo de

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas dizer: que, antes, no Lugar-doTouro, se arrecadou a exata munição. Ainda antes se dando, dias, que a gente tinha recebido uma boa surpresa. O Quipes!

Assim o Quipes, que retornava, depois de tantos meses. De desde que tinha cumprido a ordem de sair por travesso socorro, de lá ondonde estávamos cercados em combates, na Fazenda dos Tucanos – o senhor se alembrará. Ele vinha certo e alegre. E, de ver um companheiro assim se aparecer, de ausências, a gente ganhava mais mocidade.

Lampeiro, o Quipes entrado em boas roupas, montado num bom cavalo amarelo, pitando maço de cigarros de fábrica; rico feito um Mascarenhas. Arte que puxava um burro e uma burra, adestros, e tinha comprado coisas: até trempe e caçarolas, e açúcar real e chocolate em pó. Ao fagueiro, pujante, mesmo.

- “Ara, veja, como passou? E dond’ é que soube de nós?” –

eu em atiço perguntei.

- “Ao que pois, Tatarana: em faltas de notícia, formei meu pião por aí... Já estive em Ingazeiras, na Barra-da-Vaca, no Oi-Mãe, em Morrinhos... O Urucuia não é o meio do mundo?” –

assim ele se temperou.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas O que não era toda a verdade. O que ele estava era recém-chegando. E me tratou de Tatarana... O seja que tivesse vivido esses tempos tangendo urubu, adformas que vinha agora na ignorância de que eu é que era o Chefe. Indagou por Zé Bebelo; e pois de Zé Bebelo mesmo ele tudo não sabia. Nem o parar do Hermógenes. Nem não tinha nenhum sinal do Joaquim Beiju, assim como aviso de outras novidades do mundo não deu. Só, por terminar, se gabou de ter tido duas ofertas: para servir de jagunço de Dona Adelaide, no Capão Redondo, e do Coronel Rotílio Manduca – em sua Fazenda Baluarte.

- “Ah, entrei, gozando de minha pessoa de paz, até nas cidades de Januária e São-Francisco...” – ainda proseou. Devia de.ser verdade. Assim como verdade completa que, a burra e o burro, e a tralha, ou o dinheiro para tudo adquirir, ele devia de ter roubado tomado em terra de riquezas.

Tal que disse: - “Isto eu bem comprei, na venda do José Vassalo...” Desajuizado gastador, esse o Quipes.

Tanto ouvi, muito macambúzio. Onde que então, eu varava mundo, em comando, e ainda não prezava o meu nome. Eu – o Urutu-Branco! Ser Chefe de jagunço era isso. Ser o que não dava realce – qualquer um podia, fazendeiro com posses, mão em

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