Trovoou truz, dava vento. E chuvas que minha língua lambeu. Nelas mais não falo. Mas, quando estiou o tempo, de vez, não sei se foi melhor: porque bateu de começo a fim dos Gerais um calor terrível. Aí, quem sofreu e não morreu, ainda se lembra dele. Esses meses do ar como que estavam desencontrados. Doenças e doenças! Nosso pessoal, montão deles, pegou a mazelar. Mas isto eu refiro depois. O senhor já que me ouviu até aqui, vá ouvindo. Porque está chegando hora d’eu ter que lhe contar a$ coisas muito estranhas.
Quadrante que assim viemos, por esses lugares, que o nome não se soubesse. Até, até. A estrada de todos os cotovelos.
Sertão, – se diz –, o senhor querendo procurar, nunca não encontra. De repente, por si, quando a gente não espera, o sertão vem. Mas, aonde lá, era o sertão churro,,o próprio, mesmo. Ia fazendo receios, perfazendo indagação. Descemos por umas grotas, no meio de serras de parte-vento e suas mães árvores. O
pongo de um ribeirão, o boqueirão de um rio. O Abaeté não era; se bem fosse que parecia: largo rio Abaete, no escalavrado, beiras amarelas. Aquele rio fazia uma grande volta, acolá, clareado, com
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas a vista de uns coqueiros. Ali era um lugar longe e bonito, como que me acenava. Mas não endireitamos para ele, porque o rumo determinado era outro, torando desviado muito, consoante. E
mais maninhava. Topar um vivente é que era mesmo grande raridade. Um homenzinho distante, roçando, lenhando, ou uma mulher= zinha fiando a estriga na roca ou tecendo em seu tear de pau, na porta de uma choça, de buriti toda. Outro homem quis me vender uma arara mansa, que a qual falava toda palavra que tem á. Outra velha, que estava fumando o pito de barro. Mas ela enrolou a cara no xale, não se ajuizaram os olhos dela. E o gado mesmo vasqueava: só por pouco acaso um boi ou vaca, de solidão, bicho passeado sem dono. Veado, sim, vi muitos: tinha vez que pulavam, num sonhoso, correndo, de corta campo, tanto tantos – uns dois, uns três, uns vinte, em grupos – mateiros e campeiros. Faltava era o sossego em todo silêncio, faltava rastro de fala humana. Aquilo perturbava, me sombreava. já depois, com andada de três dias, não se percebeu mais ninguém. Isso foi até onde o morro quebrou. Nós estávamos em fundos fundos.
Isto é, nos arrampadouros. Tinha uma estrada, aí na subida dela houvesse coisas. Uns galhos de árvores colocados –
ramalhos e jaribaras – forma de sinal: para não se passar. Mas esse aviso havia de ser particular, para o uso de outros, não para
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas o nosso destino. Não respeitamos, de jeito nenhum. Fomos indo.
No entrar numa guapira, se redobrou o achado daquelas ramas verdes, que não obedecemos. Eu vinha adiante, com o Acauã e o Nélson, instruindo o caminho. Já estávamos pelas rédeas, para outra subida de ladeira: mas aí escutamos o latir de cachorros. E
enxergamos um homem – no alto da virada – uns homens. Esses estavam com espineardas.
Os quantos homens, de estranhoso aspecto, que agitavam manejos para voltarmos de donde estávamos. Por certo não sabiam quem a gente era; e pensavam que três cavaleiros menos valessem. Mas, entendendo que do caminho não desgarrávamos, começaram a ficar estramontados. Um eu vi, que dava ordens: um roceiro brabo, arrastando as calças e as esporas. Mas os outros, chusmote deles, eram só molambos de miséria, quase que não possuíam o respeito de roupas de vestir. Um, aos menos trapos: nem bem só o esporte de uma tanga esfarrapada, e, em lugar de camisa, a ver a espécie de colete, de couro de jaguacacaca. Eram uns dez a quinze. Não consegui sentido no que eles ameaçavam, e vi que estavam aperrando as armas.
Queriam cobrar portagem? Andavam arrumando alguma jerimbamba? Não convinha avançar assim por cima deles, logo, mas também dar recuada podia ser uma vergonha. Esbarramos,
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas neles quase encostados. Íamos esperar o resto do pessoal. E eles, ali confrontes, não explicavam razão nenhuma. Só um disse:
– “Pode não... Pode não...”
E renuía com a cabeça, o banglafumém, mesmo quando falava, com uma voz de qualidade diversa, costumada daquela terra de lugar; e os outros renuindo também: – “Ah, pode não...
Pode não...” – com o vozeio soturno.
Nos tempos antigos, devia de ter sido assim.
Gente tão em célebres, conforme eu nunca tinha divulgado nem ouvido dizer, na vida. O das esporas foi se amontar num jumento – esse era o único animal-de-sela que ali tinham. Acho que montou para oferecer à gente maior vulto de respeito; tocava batendo palma de mão na anca do jegue, veio vindo, para primeiro se presenciar. Olhei para todos. Um tinha a barba muito preta, e aqueles seus olhos permeando. Um, mesmo em dia de horas tão calorosas, ele estava trajado com uma baeta vermelha, comprida, acho que por falta de outra vestimenta prestável. Ver a ver o sacerdote! – “Ih! Essa gente tem piolho e muquiranas...” – o Nélson disse, contrabaixo.
Todos estavam com alguma garantia: que eram lazarinas, bo-
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas cudas baludas, garruchas e bacamartes, escopetas e trabucão –
peças de armas de outras idades. Quase que cada um era escuro de feições, curtidos muito, mas um escuro com sarro ravo, amarelos de tanto comer só polpa de buriti, e fio que estavam bêbados, de beber tanta saeta. Um, zambo, troncudo, segurava somente um calaboca, mas devia de ser de braço terrível, no manobrar aquele cacete. O quanto feioso, de dar pena, constado chato o formo do nariz, estragada a boca grande demais, em três. Outro, que tinha uma foice encabada muito comprido, e um porongo pendurado a tiracol por uma embira, cochichava com os restantes uma séria falação: a qual uma espécie de pajelança. Artes vezes ele guinchava, feito o demônio gemedeiro. Esse, que por nome de Constantino acudia. Todos eles, com seus saquinhos chumbeiros e surrões, e polvorinhos de corno, e armamento tão desgraçado, mesmo assim não tomavam bastante receio de nossos rifles. Para o nosso juízo, eles eram doidos. Como é que, desvalimento de gente assim, podiam escolher ofício de salteador? Ah, mas não eram. Que o que acontecia era de serem só esses homens reperdidos sem salvação naquele recanto lontão de mundo, groteiros dum sertão, os catrumanos daquelas brenhas. O Acauã que explicou, o Acauã sabia deles. Que viviam tapados de Deus, assim nos
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas ocos. Nem não saíam dos solapos, segundo refleti, dando cria feito bichos, em socavas. Mas por ali deviam de ter suas casas e suas mulheres, seus meninos pequenos. Cafuas levantadas nas burguéias, em dobras de serra ou no chão das baixadas, beira de brejo; às vezes formando mesmo arruados. Aí plantavam suas rocinhas, às vezes não tinham gordura nem sal. Tanteei pena deles, grande pena. Como era que podiam parecer homens de exata valentia? Eles mesmos faziam preparo da pólvora de que tinham uso, ralado salitre das lapas, manipulando em panelas.
Que era uma pólvora preta, fedorenta, que estrondava com espalhafato, enchendo os lugares de fumaceira. E às vezes essa pólvora bruta fazia as armas rebentarem, queimando e matando o atirador. Como era que eles podiam brigar? Conforme podiam viver?
E enfim os companheiros apontaram em vinda, e subiram a primeira ladeira, aquele tropeado de guerreiros, em tão grande número numeroso. Quase eu queria me rir, do susto então dos catrumanos. Mas foi não, porque eles não se aluíram do ponto onde estavam, só que olhavam para o chão, calados, acho que porque essa é a forma de declararem seus espantos. O do jegue, Teofrásio, que era quem capitaneava, deu alguma intimação para o da foice, esse que o Dos-Anjos se chamava, era o falador; e
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas que foi quem veio adiante, saudar Zé Bebelo e render explicação:
– “Ossenhor uturje, mestre, a gente vinhemos, no graminhá... Ossenhor uturje...”
Ossos e queixos; e aquela voz que o homem guardava nos baixos peitos, era tôo que nem de se responder em ladainha dos santos, encomendação de mortos, responsório.
– “Ossenhor uturje, mestre... Não temos costume... Não temos costume... Que estamos resguardando essas estradas... De não vir ninguém daquela banda: povo do Sucruiú, que estão com a doença, que pega em todos... Ossenhor é grande chefe, dando sua placença. Ossenhor é Vossensenhoria? Peste de bexiga preta... Mas povoado da gente é o Pubo – que traslada do brejão, ossenhor com os seus passaram perto de lá, valor distante meia-légua... As mulheres ficaram, cuidando, cuidando... A gente vinhemos, no graminhá. Faz três dias... Cercar os caminhos. O povo de Sucruiú – estão dizendo : nem não estão enterrando mais os defuntos deles... Pode querer vir algum, com recado, trazendo a doença, e esta é a razão... Veio um, querendo pedir auxílios, relatar bobagens, essas mogúncias e brogúncias...
Mas teve de voltar, deveras retornou, não demos passa
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas gem. Estão com a maldição, a urros. Castigo de Deus Jesus! Povo do Sucruiú, gente dura de rúim... Ossenhor uturje, mestre: convém desemendar deste lado, não passar no Sucruiú, respraz... Bexiga da preta!...”
E aquele homem o Dos-Anjos tinha largado a foice no chão, botou o pé em riba; e abria os braços, depois ficou de mãos postas, acho que estava produzindo algum feitiço, com os olhos todos fechados. Ele era magro, magro, da vista da gente não se ter. Os outros deles, devagarosamente tinham vindo se chegando também. Zé Bebelo, seguro que por não se rir sem caridade, armou rosto reverso, aquele semblante serioso; e eles desconfiaram. Porque um, que era velhusco e estava com o chapéu-de-palha corroído nas todas beiras, apareceu com um dinheiro na palma da mão, oferecendo a Zé Bebelo, como em paga por perdoamento. A que era um dobrão de prata, antigo do Imperador, desses de novecentos – e-sessenta réis em cunho, mas que na Januária por ele dão dois mil-réis, ainda com senhoriagem de valer até os dez, na capital. Mas Zé Bebelo, com alta cortesia, rejeitou aquele dado dinheiro, e o catrumano velho não bem entendeu, pelo que permaneceu um tempo, com ele ofertado na mão. Assim os outros não entrediziam palavras, que só arregalados espiavam, para Zé Bebelo e para a moeda,
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