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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas impedimento desses, no deslindar. Onde ele? Ah! Ah e foi aí –

então – que estouradamente achei: fortes idéias! Rapatrás, fazendo meu cavalo também se arquear e empinar, às patas – eu disse. Disse, que bradei – num entusiasmamento daqueles mesmos de Zé Bebelo – a fala igual à de Zé Bebelo, na baralhada em pompa dos animais, arre crinas, na arroubagem de arruaça.

Eu pronunciei: - “Rai’-a-puta-pô! Não tenho que matar este desgraçado, porque minha palavra prenhada não foi com ele: quem eu vi, primeiro, e avistei, foi esse cachorrinho!...”

Só um assarapanto de silêncio. Daí, me vivavam. Todos entenderam, me admiraram. A tanto que sei. Agora, eu, digo ao senhor: dele, do Demo – naquele instante – agora era eu quem ria!

- “Ei-ei, gente, segura o cão!” – dei ordem. Num três-tempo a cachorrinha estava pega, se esbrabejava. No que uma peia, um laço ou um cabresto, eram desconformes para isso, então o Pacamã-de-Presas e o Jiribibe arrumaram uma jarda de fina corda, com ela se amarrou o bichinho num pé de assa-leitão.

- “Não deixem ela uivar... Não deixem ela uivar...” – foi o que o cego Borromeu disse, pelo modo ele tinha medo de uivado de cachorro. - “A bom, cachorro a gente enforca...” – o menino

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Guirigó deu atrevimento de ensinar. Mandei que esse menino fosse para mais longe, perder as influências. Deram uma palmada na anca do cavalo dele, que o João Vaqueiro puxou, para ir exilar os dois em boa conveniente distância.

- “Um cachorro, quando se enforca, chora lágrimas – os olhos dele regulam com os de gente...” – foi o que o Alaripe disse, com simples voz. A tudo, pensei. Agora, matar aquela cachorrinha? O que menos eu pudesse, só mesmo por pragas.

Pelo tanto que a cachorrinha se prezava correta, latindo tão relatado. Ah, não! Ah, não, não matava. Mais, por aí, eu também já tinha aprendido – das sutilezas. Tornei a transdizer: -

“Adoude!... E nem não foi essa cadela. A égua, essa é que foi – a que primeiro deu nas minhas vistas!”

Real, mudando o propósito – e para que isto bem se entenda. Fio que me aprovaram. Divertidos, todos; quem é que ia me contrariar? Eu era senhor dali e daqui: eu falando, ficava sendo. Do Demo, mesmo, não tirei noção. Agora eu estava com outra pressa. - “Desapeiem o homem, mandemos embora, que se vá!” – em ato ordenei. Até porque ele se cessava sem entendimento das coisas, sem ação. Transes que em instante temi: aquele homem morresse, roqueado no medo, rebaixado

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas dessa forma – então, ah, aí, então, o destino de lugar, para mim, estava definitivo: só sendo nas extremas do fim do Inferno...

Com jeito, com asco, uns dos meus cumpriram meu mandado, desamontaram o homem, e o homem quase nem se impunha de ficar em pé. - “Tu foge fora daqui, tu te vai embora!” – eu disse, tive de gritar. Aí ele entendeu, e saiu. Por um momento, pensei que fosse correr. Mas esbarrou, sem espiar para trás. Agora era que achava pranto, com bem de choro: estava chorando soluços fortes, igual se fosse criança pequena. Aquilo não tinha nenhuma sensatez e me dava gastura, astúcia que remexia com minhas resistências. Aborrecidos, os do meu pessoal gritaram com ele, que tornou a pegar a correr, ao tom dos brados. Ainda esbarrou, outra vez, devia de estar chorando, conforme os ombros dele se sacudiam. Arrochei. Assim foi em arrebrusco: sobreveio em mim a estúrdia arfagem de chorar também – eu nas margens do mar.

Não quis e nem pude. Ânsia que meus olhos, para dentro, davam em escuro. As graças d’arte – sabe o senhor : na escuridão, não se chora, por não se ver, como não se pita cigarro... Com isso, desgostei de mim. Ah, no final da vez, o que ria o riso principal era ele, o demo. O Tisnado! Assim, por causa da judiação que eu, mesmo por querer salvar a vida dele, eu tinha procedido de demorar assim, com aquele homem. Antes tivesse logo matado.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Como é que se podia desrespeitar tudo desse jeito, numa desgraçada pessoa, roupeada? Como é? E o homem não tinha vislumbrado de espiar para trás, para saber de sua cachorrinha. E

a cachorrinha estava ali, bem amarrada na dignidade. Tanto ela não latia mais, que todos tinham se esquecido dela. Agora eu colhi em mim um estado de desânimo. A ser, que, por conta daquele homem, por meus desmandos, quem sabe eu ia ter, mais para adiante, de pagar, com graves castigos?

Algum tempo estava se passando, daí já tinham desarreado a égua, e o lombilho e os baixeiros botaram dependurados num galho de árvore de beira estrada. Ali estava aquele magro animal, preso somentemente no cabresto, que o Fafafa segurava; assim esperavam que eu desse cabo dela, eu mesmo, ou que mandasse outro fazer, segundo tinha sido a minha decisão. A cachorrinha, essa, eu pensei: eu dava para Diadorim, que perto todo o tempo tinha ficado, calado durante tudo. E, pois, era a hora de minha acertação, mesmo com a contrariedade. Ao dito, porque eu tinha começado a desastrada estória, que um final razoável carecia de ter. Suficiente sacar garrucha, e mirar o tiro na testa da égua, que se debruçava de pernas abertas, se acabando. A tanto, pois?

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Ao que o Fafafa, que não teve poder em si de se consentir silêncio, virou para mim, e disse: - “Nosso Chefe, com vênia eu peço: o senhor aceite de eu pagar em dinheiro o preço deste inocente animal, que seja poupado... A egüinha não é de todo ruim...”

Aonde que ele disse, outros secundaram: eu deixasse.

Repente meu foi meio irado; porque até o Fafafa me atravessava.

Os demais, a ver que reprovavam minha decisão, de que a égua se matasse. A gente revoltosa? Ah, não; que, em seguida, gostei, eu mesmo. Instante em que me prazia ouvir o meu pessoal discordar daquilo, com a égua, a frio e por fria razão. Do demo era que eles discordavam! Rapaziada boa, solerte. Só que, assim, como eles queriam, não estava em meu regulamento resolver.

Vender, não vendia a vida da égua ao Fafafa. Ah, não. Resumi um recurso, por aí alerta. O que foi como pronunciei: -

“Delibero o certo: o primeiro que eu vi, foi essa égua. Ela tinha de receber a morte... Ah, mas égua não é gente, não é pessoa que existe. E que? Ah, então, não é cabível que se mate a égua, por tanto que a minha palavra decidida era de se matar um homem!

Não executo. A alçada da palavra se perdeu por si e se gastou –

pois não está dito? Acho e dou que o negócio veio ao terminado.”

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Verdadeiramente, com alegria, foi que todos me aprovaram.

Ou seja que me admiravam em real, pela esperteza de toda solução que eu achava; e mesmo nem sabiam que essas minhas espertezas eram cobradas da manha do Tentador. Contente, tanto, e descontente, comigo, era que eu estava. Porque essas coisas, de certo modo, me tiravam o poder do chão. Mas, uma na outra, eu limpei o seco de minhas mãos.

- “Aí, correr alguém, em tempo de campear outra vez esse homem...” – eu disse. - “Trazer, a modo de se dar a ele dinheiro, se dar de comer e um café, e tornar a entregar a ele o que é dele...”

Eu falava era por devolver a égua. E o Suzarte, José Gervásio e Jiribibe, torcendo em galope, foram pelo homem. A égua, que se soltou, caçava moitas de capim, para pastar. Com o que, já que se estava por descanso e espera, e se tinha boa aguada na vereda perto, o jacaré armou a trempe e coou café. Sentei, na sombra dum pau-doce, fiquei ouvindo os gabos que os em redor de mim me dessem, como arras de procedimentos maiores.

- “Tal a tal, o Chefe tira mais finíssimas artimanhas do que o Zé Bebelo próprio...” – um disse.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas

- “À fé, que determina com a mesma justiça que-Medeiro Vaz...” – outro falou, mais aduloso.

Isso, bom louvo, sossegava a minha perturbação. Aquela hora, eu estimava meus homens, que vivessem, que falassem.

Mas, para afirmar idéia e respeito de que eu estava em minha chefia independente, mandei que aquietassem, pelo que eu ia aproveitar para uma sesta de soneques. Aprazia escutar o ventinho do chapadão, com o suave rumor que assopra e faz, nas folhas do bate-caixa. A cachorrinha, amarrada mesmo, se sujeitava de não latir: figuro que alguém estava dando a ela pedaços de carne-seca. Alembro que eu ainda podia caber nesse domingozinho de tranqüilidade. O melhor – ah, pensei, o melhor de tudo! – era que o Anhangão não aparecesse, não se visse porfiando no meio de todos; e que mesmo o mais certo era d’ele, demo, não competir, por não ter nenhuma existência.

Tirei minha madorna, a pouco. Suzarte, Jiribibe e José Gervásio já retornavam, com o vazio tido, sem o resultado algum. - “... Sujeito se sumiu nesse mundo, carregando com o rastro, medo dele era medonho... Só achamos o nada dele...” –

assim rendiam explicação. Que é que se podia remediar? Seguir nossa marcha, sem mais tardanças. A gente largava a égua ali,

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas acaso algum dia o homem voltava, ou dela por boca de outros tinha notícia. Amontamos. E a cachorrinha? - “Reinaldo, essa tu quer?” – perguntei a Diadorim. Meante o que, ele melhor respondeu: - “Só convém se soltar a coitadinha, de seguro ela vai se encontrar com onde estiver o dono...” E ele mesmo desatou.

Valia o senhor ver o raio de amor que tangeu a cachorrinhazinha: que latiu suas alegrias e airada correu, sem nenhuma demora, feito fosse para um pronto destino, há-de asas! Foi ela em longe desaparecer, e nós tocamos, no caminho contrário. A égua ficou lá, pastando; e o arreio do homem, como um espantalho, pendurado no ramo de árvore, até as moscas do campo já se ajuntassem nele.

Do que acontecido, me senti muito livre. Trotei, adiante.

Eu ia, à meia~ rédea, não me instava, não pensava. Será – mal pergunto eu ao senhor – que viajei este sertão com o Outro sendo meu sócio? Vá retro! Mas não tenho modo de entender como Diadorim estranhou meus semblantes. E por via disso é que tinha sido a nossa conversação – por causa do de que agora lhe dei conta miudamente.

Do que discuti com Diadorim, do que derradeiro ele me disse, me ficou um retardo. Aquele passo me envergonhava.

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