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porque a vida é mutirão de todos, por todos remexida e temperada. Assim eu tinha trazido o pretinho Guirigó, do Sucruiú, e agora ele estava indo para se deitar no limpo e fofo, nos braços das jovens e donzelas carregado. Somente que, inteirado no sono, ele mesmo disso não soubesse, nem aproveitasse, do que em sua existência dele era que estava se sucedendo. - “A pois, boa noite o senhor tenha, Chefe, com um aprazível amanhecer...” – assim seo Ornelas me saudou. Ao que eu, regozijado e bem servido, retribuí a ele, quase com aquelas mesmas palavras.

As partes, que se deram ou não se deram, ali na Barbaranha, eu aplico, não por vezo meu de dar delongas e empalhar o tempo maior do senhor como meu ouvinte. Mas só porque o compadre meu Quelemém deduziu que os fatos daquela era faziam significado de muita importância em minha vida verdadeira, e entradamente o caso relatado pelo seo Ornelas,

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas que com a lição solerte do dr. Hilário se tinha formado. Aí, narro.

O senhor me releve e suponha.

No outro dia, acordei com a boca amarga e doce, e o través de baixar alguma ordem comandando; esse dia com essa noite não se pertencia. Achamos, de recrutagem, os cavalos que pudemos – o que foram os dez, os burros e mulas também contados. O seo Ornelas honrava os atos. Além do que quis que eu falhasse, para a festa, com o meu povo; mas achei mais sobressaído ir mesmo embora, exato. Semeei para trás de mim o bom ensejo, para poder ser de vir a colher, mais para diante, outros assim tão bons e melhores. Sincero o dito, a gente agradeceu, subindo todos em selas, e a limpo seguimos – a manhã ainda com diversas claridades. Seo Ornelas externou as despedidas, com o x’totó de foguetes, conforme se lembrou de mandar começar a soltação, cujos por bem uma meia-dúzia. O

pessoal deu vivas, gloriando o mastro com a bandeira do santo.

Ao que, pelo mais, puxei em frente, pondo meu cavalo: com espora, rédea e pernas. Deciso.

Rompemos umas duas léguas, em estradas de muita areia.

Mas eu já estava agastado. O que nesta vida muda com mais presteza: é lufo de noruega, caminhos de anta em setembro e

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas outubro, e negócios dos sentimentos da gente. Assim, de repente, eu achei: que a conversa com aquele seo Ornelas tinha me rebaixado. Aos poucos eu tivesse perdido a vigiação de minha alçada, no acaso da presença dele, debaixo daqueles telhados. A opinião das outras pessoas vai se escorrendo delas, sorrateira, e se mescla aos tantos, mesmo sem a gente saber, com a maneira da idéia da gente! Se sério, então, um tinha de apertar os dentes, drede em amouco, opor seus olhos. A cuspir para diante. Alguma instância, das outras pessoas, pegava na gente, assim feito doença, com retardo. Apartado de todos – era a norma que me servia – no sutil e no trivial. A culpa minha, maior, era meu costume de curiosidades de coração. Isso de estimar os outros, muito ligeiro, defeito esse que me entorpecia. O tanto que, daí depois, essas pessoas andavam em minha desilusão: de repente todos estavam endoidecendo... Do agravo, como ia em pensar, achei asperezas até na goela; e o cuspe não cabia em minha boca, salgado como um suadouro de cangalha. Aí então, estou lembrado, vendo como vi o Alaripe de mim a curta distância – e que, em tudo comedido, guardava o balanceio brando no coxim da sela, de vaqueiro de gado tangedor. Chamei para ele vir.

- “Ah, o velho entregou os cavalos, hem, Alaripe? Coração dele aguou...” – blasonei. - “... Deu por paz. Alaripe, ei, essa paz

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas não te enjoa?” - “Ah, é deveras... A uns, é o que sucede...” - “Mas a paz não é boa? Então, como é que ela enjoa, assim mesmo?” -

“Natureza da gente, mal completada...” - “Tudo tu vê, Alaripe: eu acho que o enjôo da paz será também algum outro medo da guerra...” - “Pode que seja.” - “E mas só o medo da guerra é que vira valentia...” - “Mal bem não entendo, meu chefe, mas deve de ser...” - “Pois não é? Só quando se tem rio fundo, ou cava de buraco, é que a gente por riba põe ponte...”

Assaz essas coisas, eu inventava em fala, para ter meus eixos, meus aços. A boca do boi quer sal – o sal do barro vermelho. Eu estava chamando umas bizarrias. Força dessa minha maneira: eu estava pelo calor de tudo. E a gente ia indo, aquela comprida cavalhada. Um ribeirão raso e estreito se passou

– nem bem seis braças. Riacho desses que os que vão morrer chamam de rio-Jordão. Todo o mundo passou, por tanto, diante de mim, eu esbarrado em pé – isto é, a cavalo.

A virar o ar, viemos; em caminho não se descansou um dia.

Agora eram os brejos da beira do Paracatu. Mas eu tinha conseguido encher em mim causas enormes. Dispor do ror daquilo eu não conciliava, conforme perseguia, custoso, vermelho meu. Somente quis, nem podia dizer aos outros o que

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas queria, somente então uns versos dei, que se puxaram, os meus, seguintes:

Hei-de às armas, fechei trato

nas Veredas com o Cão.

Hei-de amor em seus destinos

conforme o sim pelo não.

Em tempo de vaquejada

todo gado é barbatão:

deu doideira na boiada

soltaram o Rei do Sertão...

Travessia dos Gerais

tudo com armas na mão...

O Sertão é a sombra minha

e o rei dele é Capitão!...

Arte que cantei, e todas as cachaças. Depois os outros à fanfa entoaram – mesmo sem me entender, só por bazófias –

mas rogando no estatuto daquela letra e retornando meu rompante; cantavam melhor cantando. De todos, menos vi Diadorim: ele era o em silêncios. Ao de que triste; e como eu ia poder levar em altos aquela tristeza? Aí – eu quis: feito a correnteza. Daí, não quis, não, de repentemente. Desde que eu

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas era o chefe, assim eu via Diadorim de mim mais apartado.

Quieto; muito quieto é que a gente chama o amor: como em quieto as coisas chamam a gente. E já se estava antefrente do Paracatu – que também recovava o pouco e escasso. Esbarrei não, nem examinei o adiante. Demiti meu cavalo n’água. Os outros me acompanharam. Assim atravessamos.

Vai, viemos, viemos. Esses dias em ondas. Sei só as encostas que subi, a festo. O Chapadão: céu de ferro. E era a lua-nova. Aquelas pedras brancas, que de noite tanto esfriam. As caraíbas estavam dando flor. Por ponto de meu corpo, medi o enrolar dos longes ventos. Aí se viu, em seus couros, um vaqueiro pessoalmente. A esse, perfiz: - “Amigo o amigo, aqui é aqui?” Ao que ele confirmou: - “Aqui, o senhor, meu senhor, os senhores estão nos andares do rio Urucuia...” Aos campos. Sentei que estava. Estrela gosta de brilhar é por cima do Chapadão.

Tanta doideira fiz? A prazo. Como aquela vista reta vai longe, longe, nunca esbarra. Assim eu entrei dentro da minha liberdade.

Oi, grita, arara, araraúna, para a tua voz desenrouquecer! O

Chapadão é uma estada, estando. Somente eu sabia respirar.

Sumo bebi de mim, e do que eu não me tonteava. Só estive em meus dias. E ainda hoje, o suceder deste meu coração copia é o eco daquele tempo; e qualquer fio de meu cabelo branco que o

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas senhor arranque, declara o real daquilo, daquilo – sem traslado...

Ali eu diante de portas abertas, por livre ir, às larguras de claridade... Acho que foi assim.

Assim. Mas alguém me impediu. Ou era que mesmo desse jeito tinha de ser? Urubus perpassaram, extremamente, e para o poente vinham. Diadorim me chamou, pegando em meu braço.

Diadorim vigiou aquelas diferenças: ele temeu; temeu por minha salvação, a minha perdição. Ou foi que minha Nossa Senhora da Abadia mandou que assim tivesse de ser? Mas Diadorim tirou o açoite de minha ação, ele me puxou, eu segurado, o propósito para trás. Nas grimpas, naquelas, o significado duma coisa tive, que depois lhe relato. Ah, só no azul do anoitecer é que o Chapadão tem fim.

Foi na descida de algumas ladeiras, no se costear um barrocão. Diadorim disse: - “Estou aqui, te vejo mesmo, Riobaldo!”

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