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Eu disse: - “Ah, não. Ah, paz!”

Ele disse: - “A uma coisa eu te digo, Riobaldo...” Eu disse: -

“Pois, fala.”

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Diadorim disse – a voz dele se paliava: - “Por querer bem é que eu falo, Riobaldo...” – feito o sussurro, nessas veredas, mão mansa, de tardinha, descabelando o buritizal.

Eu disse: - “Vai dizendo!” ; falei uma segunda palavra.

A testa dele merujava, coisas grossas gotas – mesmo me temesse? – aquele suor devia de se gelar. Aí era um aviso, que ele queria me fornecer? Aí eu não queria ouvir o que fosse, de repente eu não queria, eu não queria, fiz de ficar indignado. No eu no meu, não tivessem de me dar a toda aprovação? Ao redor de mim, assim obedecessem. A chefia sabe chefiar. Por certo, que, para a jagunçagem, os Gerais mal serviam. A pobreza daquelas terras, só pobreza, a sina tristezinha do pouco povo.

Aonde o povo no rareado, pelo que faltava de água naquelas chapadas; e a brabeza do gado, que caminhava em triste achar.

Desejar de minha gente, seria que se atravessasse o do-Chico – ir em cata de vilas e grandes arraiais, adonde se ajustar pagas e alugar muitos divertimentos. Conforme no renovável servisse: ir aonde houvesse política e eleição. Sabia disso. Eu não era pascácio.

Um chefe carece de saber é aquilo que ele não pergunta. E

mesmo eu sempre tive diversas saudades.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Reprazia, para mim, um dia reverter para o rio das Velhas, cujos campais de gado, com coqueiral de macaúbas, meio do mato, sobre morro, e o grande revôo baixo da nhaúma, e o mimoso pássaro que ensina carinhos – o manuelzinho-da-troa...

Diadorim, eu gostava dele? Tem muitas épocas de amor. Amor em perto, às vezes sossega, em muitos adiamentos – ao homem da branca barba. - “Tempo de guerrear!” – eu disse, para Alaripe, o Pacamã-de-Presas, o Acauã e o Fafafa: meus contra-guias. Em qualquer parte eu não podia arvorar bem fincado meu mastro-de-guerra? Primeiro, então, por ali mesmo, na areia roxa, para tomar o instinto do ar, a gente recruzava. Mas, dirá o senhor: e o Hermógenes? A guerra não era para ser contra o Hermógenes, os Judas? Sim, sei. Mas, eles, no meu ir eles iam vir, haviam-de.

Sabia isso era eu no coxim da sela, suor nosso. Seguindo, no raso e no monte, das areias tirando brilhos. A mal o mundo serenava, de tardinha, quando os jaós cantavam. Ou silêncio tão devassado, completo, que nos extremos dele a gente pode esperar o lãolalão de um sino. Diadorim não me entendesse? Ele entendia?

Assim, eu tivesse muito ódio, Diadorim havia de me entender. Mas eu estava acontecido. Por exemplo, vinha uma boiada, que passou, no bombalanceio. Aqueles vaqueiros, esses com os laços enrodilhados nas garupas, e que, por prazer,

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas aboiavam. Apreciei de ver como todos souberam jeito de esconder o medo que de mim deviam de ter. Boiada com rumo na barra do Paracatu, salvante que mudassem de roteiro. Mas a gente ia por lados contrários. Deles até carneamos duas reses. Se assou carne na moda do povo dos Gerais – que era com espeto de vara de folha-miúda, tanto tempo se esbrazeando para estorricar, o naco de carne se torrava como um fumo, e o gosto daquele cheiro se supria forte, só por si punha a boca da gente aguando. Dada a mais cachaça ao menino Guirigó e ao cego Borromeu: para eles falarem coisas diferentes do que certas, por em si desencontradas, diversas de tudo. Conselhos me davam?

Mesmo só o igual ao que pudesse dar o cajueiro-anão e o araticum, que – consoante o senhor escrito apontará – sobejam nesses campos. Mas a minha sina formava o rebrilhar; em tudo, digo ao senhor. Conforme fatos houve.

Da mulher – que me chamaram: ela não estava conseguindo botar seu filho no mundo. E era noite de luar, essa mulher assistindo num pobre rancho. Nem rancho, só um papiri à-toa. Eu fui. Abri, destapei a porta – que era simples encostada, pois que tinha porta; só não alembro se era um couro de boi ou um tranço de buriti. Entrei no olho da casa, lua me esperou lá fora. Mulher tão precisada: pobre que não teria o com que para

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas uma caixa-de-fósforo. E ali era um povoado só de papudos e pernósticos. A mulher me viu, da esteira em que estava se jazendo, no pouco chão, olhos dela alumiaram de pavores. Eu tirei da algibeira uma cédula de dinheiro, e falei: - “Toma, filha de Cristo, senhora dona: compra um agasalho para esse que vai nascer defendido e são, e que deve de se chamar Riobaldo...”

Digo ao senhor: e foi menino nascendo. Com as lágrimas nos olhos, aquela mulher rebeijou minha mão... Alto eu disse, no me despedir: - “Minha Senhora Dona: um menino nasceu – o mundo tornou a começar!...” – e saí para as luas.

Aquelas obras, então, Diadorim não visse? Ah, conselho de amigo só merece por ser leve, feito aragem de tardinha palmeando em lume-d’água. O amor dá as costas a toda reprovação. E era o que Diadorim agora desfazia em mim, no amargoso.

- “Repuno: que você está diferente de toda pessoa, Riobaldo... Você quer dansação e desordem...”

Mexi meu cuspe dentro da boca.

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- “ ... A bem é que falo, Riobaldo, não se agaste mais... E o que está demudando, em você, é o cômpito da alma – não é razão de autoridade de chefias...”

Diadorim disse, e a voz dele, ecosa, me rodeou; as certas sinceridades. Amizade de amor surpreende uns sinais da alma da gente, a qual é arraial escondido por detrás de sete serras? Aí, demorei. Eu ia aceitar essa repreensão? Ah, nunca. E, desaguardadamente, eu atinei com outro motivo, para opor: a extratada conversa, que Diadorim tinha tido, adeparte, com o arrieiro de uma tropa. Perguntei, contra: - “O segredo, com o velho arrieiro da tropa, Diadorim, que se falaram – era de minha pessoa?”

Essa tropa, que passara por nós, dias antes, rumava para o Abaeté, com carga de fumo, mantas de borracha, couros de onça e de lontra e cera de palmeiral, pouca coisa. Fossem atravessar o rio, num porto; iam passar por terras minhas conhecidas, nos sertões menores... Agora, eu queria saber.

- “Aquele levou um recado meu. Instruí o homem que levasse um recado...”

- “Um recado, de mim? Aí hei, que?! Malfiz?!...”

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas

- “Um recado. Mais tu não pergunte, Riobaldo: que, o que fiz, foi.” Dizendo, Diadorim se arredou de mim, com uma decisão de silêncio. Não vê, que nem precisava. Eu tinha guardado meus ouvidos. Eu não queria escutar o reto, naquela ocasião, por desânimo de ser. Diadorim tinha citado alma. O que ele soubesse, não soubesse, não tinha ciência de coisa nenhuma, da arte em que eu tinha ido estipular o Oculto, nas Veredas Mortas, no ermo da encruzilhada... Aquilo não formava meu segredo? E, mesmo, na dita madrugada de noite, não tinha sucedido, tão pois. O pacto nenhum – negócio não feito. A prova minha, era que o Demônio mesmo sabe que ele não há, só por só, que carece de existência. E eu estava livre limpo de contrato de culpa, podia carregar nômina; rezo o bendito!

Trastempo, mais outras coisas sobrevinham, mas por roda normal do mundo, ninguém podia afiançar o contrário. Apus pedra por sobre pedra, não guardo lembrança. Eu era o chefe.

Vez minha de dar comando e estar por mais alto. Zé Bebelo tinha de todo desaparecido. Agora, o que se carecia, era de se pegar mais munição. Todos deviam de me obedecer completamente. Só eu não queria abusar. Por que não queria?

Ah, então, eu estava em dúvidas. Até por isso era que eu estremecia, fino, no ouvir certas menções. A haver a coisa que de

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas longe me ameaçasse, feito o vem-vem das nuvens de chuva. O

demo, mesmo assim, podia me marcar? Se não fosse, como era que Diadorim viesse vir com aquelas palavras? Acho que eu não era capaz de ser uma coisa só o tempo todo.

Do que Diadorim se estranhava, era do seguinte: tinha sido o que aconteci com um sujeito senhor, um que disse se chamar nhô Constâncio Alves, que topamos no Chapéu-do-Boi. E

também do desgraçado do homenzinho-na-égua, com o cachorro dele, que vieram vindo, três léguas depois daquele. As coisas vãs, esparramáveis.

De que tivesse neste mundo um tal nhô Constâncio Alves, o que era que eu ponderava com isso? Mas ele mesmo ali loguinho falou: que era nado no pé da serra de Alegres, e sendo da minha primeira terra, também. Foi bem tratado. Mas disse que podia ser de ter me conhecido, quando eu menino. Isso me disse aquele nhô Constâncio Alves. Queria recompensas? Aos princípios, não desgostei de prosear com um antigo assim, compatrício, asseado em suas roupas e bem-vindo. Aí ele tomou café, com a gente. A dar, que o homem foi se avontadeando, encompridando as respostas; eu mesmo dava jeito para que ele tomasse coragem.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Até que, um certo momento, o pretinho Guirigó se chegou sorrateiro, e emitiu em minha orelha. - “Iô chefe...” – arenga do menino Guirigó, que às vezes bem não regulava. O capeta – ele falou no capeta? Ou então, só de olhar para ele, e escutar, eu pensei no capeta; mas, que era do capeta, eu entendi. Daí, de repente, quem mandava em mim já eram os meus avessos.

Aquele homem tinha quantia consigo: tinha consciência ruim e dinheiro em caixa... – assim eu defini. Aquele homem merecia punições de morte, eu vislumbrei, adivinhado. Com o poder de quê: luz de Lúcifer? E era, somente sei. A porque, sem prazo, se esquentou em mim o doido afã de matar aquele homem, tresmatado. O desejo em si, que nem era por conta do tal dinheiro: que bastava eu exigir e ele civilmente me entregava.

Mas matar, matar assassinado, por má lei. Pois não era? Aí, esfreguei bem minhas mãos, ia apalpar as armas. Aí tive até um pronto de rir: nhô Constâncio Alves não sabia que a vida era do tamanhinho só menos de que um minuto...

Ah, mas, então, do sobredentro de minhas idéias – do que nem certo sei se seja meu – uma minha-voz, vozinha forte demais, de tão fraca, suministrou um cochicho. Foi. Em tão curta ocasião que teve, essa vozinha me deu aviso. Ah, um recanto tem, miúdos remansos, aonde o demônio não consegue espaço

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