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Nonde nada eu não disse. Se menos pensei em Otacília.

Nem maldisse Diadorim, de que não se calava. A mais, pirraçou:

– “Vai-te, pega essa prenda jóia, leva dá para ela, de presente de noivado...”

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Demorei no fazer um cigarro. Nós estávamos na beira do cerrado, cimo donde a ladeirinha do resfriado principia; a gente parava debaixo dum paratudo – pau como diz o goiano, que é a caraíba mesma – árvore que respondia à saudade de suas irmãs dela, crescidas em lontão, nas boas beiras do Urucuia. Acolá era a vereda. Com o tempo se refrescando, e o desabafo do ar, buriti revira altas palmas. A por perto, se ouvia a algazarra dos companheiros. De ver, eu tinha dó, minha pena sincera de Diadorim, nessas jornadas. De verdade, entardecia. Derradeira arara já revoava.

– “... Ou quem sabe você resolve melhor mandar de dádiva para aquela mulherzinha especial, a da Rama-de-Ouro, filha da feiticeira... Arte que essa mais serve, Riobaldo, ela faz o gozo do mundo, dá açúcar e sal a todo passante...”

Não era na Rama-de-Ouro – era na Aroeirinha. Mas, por que era que ele falava no nome de Nhorinhá, com tão cravável lembrança? Ao crer, que soubesse mais do que eu mesmo o que eu produzia no coração, o encoberto e o esquecido. Nhorinhá –

florzinha amarela do chão, que diz: – Eu sou bonita!... E tudo neste mundo podia ser beleza, mas Diadorim escolhia era o ódio.

Por isso era que eu gostava dele em paz? No não: gostava por

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas destino, fosse do antigo do ser, donde vem a conta dos prazeres e sofrimentos. Igual gostava de Nhorinhá – a sem-mesquinhice, para todos formosa, de saia cor-de-limão, prostitutriz. Só que, de que gostava de Nhorinhá, eu ainda não sabia, filha de Ana Duzuza. O senhor estude: o buriti é das margens, ele cai seus cocos na vereda – as águas levam – em beiras, o coquinho as águas mesmas replantam; dai o buritizal, de um lado e do outro se alinhando, acompanhando, que nem que por um cálculo.

– “... Você se casa, Riobaldo, com a moça da Santa Catarina. Vocês vão casar, sei de mim, se sei; ela é bonita, reconheço, gentil moça paçã, peço a Deus que ela te tenha sempre muito amor... Estou vendo vocês dois juntos, tão juntos, prendido nos cabelos dela um botão de bogari. Ah, o que as mulheres tanto se vestem: camisa de cassa branca, com muitas rendas... A noiva, com o alvo véu de filó...”

Diadorim mesmo repassava carinho naquela fala. Melar mel de flor. E me embebia – o que estava me ensinando a gostar da minha Otacília. Era? Agora falava devagarinho, de sonsom, feito se imaginasse sempre, a si mesmo uma estória recontasse.

Altas borboletas num desvoejar. Como se eu nem estivesse ali ao pé. Ele falava de Otacília. Dela vivendo o razoável de cada

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas dia, no estar. Otacília penteando compridos cabelos e perfumando com óleo de sete-amores, para que minhas mãos gostassem deles mais. E Otacília tomando conta da casa, de nossos filhos, que decerto íamos ter. Otacília no quarto, rezando ajoelhada diante de imagem, e já aprontada para a noite, em camisola fina de ló. Otacília indo por meu braço às festas da cidade, vaidosa de se feliz e de tudo, em seu vestido novo de molmol. Ao tanto, deusdadamente ele discorresse. De meu juízo eu perdi o que tinha sido o começo da nossa discussão, agora só ficava ouvinte, descambava numa sonhice. Com o coração que batia ligeiro como o de um passarinho pombo. Mas me lembro que no desamparo repentino de Diadorim sucedia uma estranhez

– alguma causa que ele até de si guardava, e que eu não podia inteligir. Uma tristeza meiga, muito definitiva. No tempo, não apareci no meio daquilo. Assim foi que foi. Até que vieram uns companheiros, com João Concliz, Sidurino e João Vaqueiro, que ajuntaram lenhas e armaram um fogo bem debaixo do paratudo.

Ao relançar das labaredas, e o refreixo das cores dando lá acima nos galhos e folhas, essas trocavam tantos brilhos e rebrilhos, de dourado, vermelhos e alaranjado às brasas, essas esplendências, com mais realce que todas as pedras de Araçuaí, do Jequitinhonha e da Diamantina. Era dia-de-anos daquela árvore? Ao

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas quando bem anoiteceu, foi assim. A gente só sabe bem aquilo que não entende.

O senhor veja: eu, de Diadorim, hoje em dia, eu queria recordar muito mais coisas, que valessem, do esquisito e do trivial; mas não posso. Coisas que se deitaram, esqueci fora do rendimento. O que renovar e ter eu não consigo, modo nenhum.

Acho que é porque ele estava sempre tão perto demais de mim, e eu gostava demais dele.

Na surgida manhã, saímos, para a parte final da caminhada.

Zé Bebelo, certa hora, me chamou. Inda que avante, Zé Bebelo mesmo devia de estar curtindo más e piores: fio que ele amargava a vitória que tinha inventado. Noção dos inimigos nossos, que, seja lá por onde, puxavam posse de sua munição e de suas montadas e cargas, socorridos de tudo quanto careciam. – “Um Hermógenes quer tomar conta do sertão dos Gerais...” – eu tirei liberdade para dizer. Mesmo mais indiretas disse; e isso me realiviou, no dizer, pouco somente, que era só por picardia.

Direto, disso, Zé Bebelo não me respondeu; ele pensava as mil coisas. Em tanto, nesses cálculos de meditação, ele ligeiro sobrezumbia com os beiços, e balangava às esquerdas-edireitas as abas enfunadas do chapéu; e às vezes assoprava sem ser por can-

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas saço de marcha. O que das idéias sobrava, era que ele referia: –

“Ainda não entendo... Ainda não entendo... Até agora, reconheço, ele tem tido uma sorte... Sapo sem-colarinho, rei-gordo... Mas, deixa a gente ir e vir, que os ovos e dúzias ele paga!...” Do Hermógenes discursava – orçamento do Hermógenes. E, de ouvir que a sorte do Hermógenes existia alta, isso me penou, tanto me certificava. Aí fiquei a menos. Nem eu não queria arreliar Zé Bebelo. Mas, para mim, ele estava muito errado: pelos passos e movimentos, porque gostava prático da guerra, do que provava um muito forte prazer; e por isso não tinha boa razão para um resultado final. Assim achei, espiando o alto céu, que é com as nuvens e os urubus repartido. Deponho: de que é que aquilo me adiantava? E chuvas dadas, derramadas.

Aí, vai, chegamos no Currais-do-Padre.

O lugar que não tinha curral nenhum, nem padre: só o buritizal, com um morador. Mas o ao em redor, em grandes pastos, era o capim melhor milagroso – que o que deixava de ser provisório rico era o meloso de muito óleo, a não ver uns fios de santa-luzia azul, e do duro-do-brejo, nas baixadas, e, nos altos com pedregal, o jasmim-da-serra. De lá vinham saindo renascidos, engordados, os nossos cavalos, isto é, os que tinham sido de Medeiro Vaz, e que agora herdávamos. Regozijei.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Escolhi um, animal vistoso, celheado, acastanhado murzelo, que bem me pareceu; e dei em erro, porque ele era meio sendeiro e historiento. Daqui veio que o nome que teve foi de “Padrim Selorico”. Mas o dono do sítio, que não sabia ler nem escrever, assim mesmo possuía um livro, capeado em couro, que se chamava o “Senclér das Ilhas”, e que pedi para deletrear nos meus descansos. Foi o primeiro desses que encontrei, de romance, porque antes eu só tinha conhecido livros de estudo. Nele achei outras verdades, muito extraordinárias.

Além de que, tudo o que eu tivesse de resolver, de minha vida, fui deixando para os seguintes. Dia de ser de chuva, que madrugou tarde: boi nos cinzentos. E os pássaros de passagem precisavam de gritar muito uns para os outros. Diadorim moderava o falar comigo, e me ver, recolhido em certo vexame, receoso; eu achei. Já disse ao senhor? – dia a dia ele raiava, em formosura. E chuva alta, que envinha, estava mandando urubu voar para casa. Os cavalos pastavam com mais pressa. Nunca, em todos meus tempos, eu vi inverno tamanho demorado. Era para espera. Mesmo assim, Zé Bebelo pôs ordem de se ir. Porque estávamos quase todos montados em pêlo, carecíamos de tocar para o Curral Caetano, onde se tinha quantidade grande de arreios guardados. Depois, daí, para buscar munição, na Virgem-

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Mãe. Prazo não se perdia. Aos caminhos barrancosos, de sopega, feito torrão de açúcar preto se derretendo, empapados. Aos barros fomos, como perdidas criaturas, de se rir, se chorar. E –

mas o senhor sabe o que isso é? – aqueles nossos cavalos não tinham ferraduras.

Pra mais onde? Ah, aonde os altos bons: o Chapadão do Urucuia, em que tanto boi berra. Mas nunca chegamos nem na Virgem-Mãe. Afiguro, desde o começo desconfiei de que estávamos em engano. Rumos que eu menos sabia, no viável.

Como a serra que vinha vindo, enquanto para ela eu ia indo, em tantos dias: longe lá, de repente os olhos da gente percebem um fio de tremor – se vê é um risquinho preto, que com léguas andadas vira cinzento e vira azul – daí, depois, parede de morro se faz. No arquear dali, foi que se pegou o primeiro caminho achado, para se passar. Bem baixamos. Os rios estavam sujos, em espumas. Não havendo a ajuda de Joaquim Beiju, que estava dando para dela se sentir falta. Zé Bebelo, em assarapanto, até os dedos da mão dele não deixavam de se perpassar, contando rosário nas tiras da rédea. Que andávamos desconhecidos no errado. Disso, tarde se soube – quem que guiava tinha enredado nomes: em vez da Virgem-Mãe, creu de se levar tudo para a

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Virgem-da-Laje, logo lugar outro, vereda muito longe para o sul, no sítio que tem engenho-de-pilões. Mas já era tarde.

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