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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas E, num reverter de mão, eu já estava pensando: o que eu ia fazer com ele, com o seô Habão, por alguma alvíssara de mercê.

Porque, em fato, ele merecia, e eu a ele devia. Porque ele tinha vesprado em reconhecer meu poder, antes de outro qualquer; e mesmo um barão de presente dele tinha sido, e era, aquele meu formoso cavalo Siruiz, em qual eu estava amontado.

Aí, me lembrei, de uma coisa, e isso era próprio encargo para ele, cabendo em sua marca de qualidade. Me lembrei da pedra: a pedra de valor, tão bonita, que do Araçuaí eu tinha trazido, fazia tanto tempo. Tirei o embrulhinho, da bolsa do cinto. Apresentei a ele. Eu falei: - “Seô Habão, o senhor escute, o senhor cumpra: pega este mimo, zelando com os dedos todos de suas mãos... já e já, o senhor viaje, num bom animal, siga rumo dos Buritis Altos, cabeceira de vereda, para a Fazenda Santa Catarina...”

E mais disse: que era para entregar, de minha parte, à moça da casa, que Otacília se chamava, a qual era minha sempre noiva.

Mas não dando razão de nomear minha pessoa pelos altos títulos, nem citando chefia de jagunços... Mas somente prezar que eu era Riobaldo, com meus homens, trazendo glória e justiça em território dos Gerais de todos esses grandes rios que do

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas poente para o nascente vão, desde que o mundo mundo é, enquanto Deus dura!

Ah, não: em Deus não falasse. Seô Habão pôs atenção; perturbado mas sisudo, ele cogitava. O que ele dizia, carecia de ser repetido, esfiando o as sunto nas pontas dos dedos, tostões.

Ser rico é um diverso dissabor? Que um pudesse se acautelar assim, me atanazava. Quem era? O que por primeira vez reparei: que ele tinha as orelhas muito grandes, tão grandonas; até, sem querer, eu tive de experimentar com a mão o tamanho medido das minhas. Melhor trazer esse sujeito comigo, perto mais perto, para poder vigiar, por todas as partes? Melhor, não; o melhor seria desmanchar a presença dele em definitivas distâncias. – Não vou comer teus peitos, teu nariz, teus duros olhos moles... – eu pensei. Mas ele também tinha alguma espécie de chefia. Eu virei a cara, andei três passos, dando com Diadorim. - “O que eu tolero e desentendo, esse homem: que é, porque, dele, não se consegue ter raiva nem ter pena...” – falei. Mas vi um adejo sombrio no meu amigo, condenado que era de tristeza que não quer ceder suas lágrimas. O quanto, por causa da pedra de topázio? – eu reconheci. Eu não tinha tido dó de Diadorim.

“Dei’stá’, tem tempo, Diadorim, tem tempo...” – pensei, a meio.

Da amizade de Diadorim eu possuía completa certeza. E mais

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas não me amofinei. De manhã cedo, o senhor esbarra para pensar que a noite já vem vindo? O amor de alguém, à gente, muito forte, espanta e rebate, como coisa sempre inesperada. E eu estava naquelas impaciências. Trasmente que, em Otacília, mesmo, verdadeiro eu quase nem cuidava de sentir, de ter saudade. Otacília estava sendo uma incerteza – assunto longe começado. Visse, o que desse, viesse. O seô Habão ia, levava a pedra de topázio, a vida do mundo ia vivendo, coração dá tantas mudanças; meus dízimos eu pagava. O pássaro que se separa de outro, vai voando adeus o tempo todo. Ah, não, eu não – rio, riachos! – não me amofinava. Aquela tristeza de Diadorim eu não aceitei, nem ceitil não recebi. Ingratidão, para o mais-tarde.

Mas o seô Habão não queria ter terminado: negócio que carecia ainda de algum ponto. Dei licença. Ele perguntou, sonseante: ... se eu não prazia de enviar por ele algum recado também para o senhor meu pai, Selorico Mendes, dono do São Gregório, e de outras boas e ricas fazendas?... Eu achei graça, acenei que sim: disse que fosse, reproduzisse a minha saudação...

E então foi que o seô Habão levantou a cara, aquietado – até mediante sorriso. De sorte que, para corrigir em siso a tranqüilidade daquilo, eu determinei: - “O senhor vá logo, logo, de rota abatida... E de lá não quero nenhuma resposta...” –

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas enquanto ri, de ver como ele me obedecia expresso, sem necessidade de caráter.

Onde que, mal dele livre me vi, gritei, despachado, pelos demais. Dand’ ordens: - “A rodar por aí, me trazerem os homens!”

Que’s homens? Os todos que fossem e houvesse. - “Quem tiver instrumento – a toque! Quem gostar de dançar, arre melhor!

P’r’ apreparo, trazer as mulheres também... Com que as músicas, de lá, lá lá...” Tudo tinha de semelhar um social. Ao pois, quem era que ordenava, se prazia e mandava? Eu, senhor, eu: por meu renome, o Urutu-Branco... Ah, não. Festa?

Eu já estava resolvendo o contrário. Mas reunir aquela porção de homens, e formar todos de guerreiros. A com a gente, a que viessem. Aquilo valia? Os outros não falaram, decerto não acharam ou acharam. Ou quanto mais que, eles, os meus, só mesmo o mover por me agradar, só, era o que de si desejavam; e aquela minha lei era divertida. Saíram, espalhados sendo, em caçar, em boa alarida.

Mas trouxeram. Me trouxeram, rebanhal, os todos possíveis. Do Sucruiú, uns pouquinhos – alguns com as caras

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas secando os brotes das bexigas, más marcas, feito mijo na areia; outros um ou outro de semblante liso fresco, esses escapos de não terem tido a doença. Os que fingiam não me temer, achavam mais favorável querer ter vindo por próprio conselho; mal-abriam boca em risos. Dei que pronto todos provassem gol d’alguma cachaça. Aquela gente depunha que tão aturada de todas as pobrezas e desgraças. Haviam de vir, junto, à mansa força. Isso era perversidades? Mais longe de mim-que eu pretendia era retirar aqueles, todos, destorcidos de suas misérias.

Até que fiz. Ah, mas, mire e veja: a quantidade maior eram aqueles catrumanos – os do Pubo. Eles, em vozes. Ou o senhor não pode refigurar que estúrdia confusão calada eles paravam, acho que, de ser chamados e reunidos, eles estavam alertando em si o sair de um pavor. Ao depois, quando dei brado, queriam se alinhalinhar, mesmo, solertes, como se por soldados reconhecidos. Seriam eles assim bons no ruim, para guerra serviam, para meter em formatura? Tanto todo o mundo achava graça, meus jagunços queriam pagode. Ah, os catrumanos iam de ser, de refrescos. Iam, que nem onças comedeiras! Não entendiam nada, assim atarantados, com temor ouviam minha decisão. - “Filhos-da-mãe!” – eu declarei. Tive de repente fé naqueles desgraçados, com suas desvalidas armas de toda

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas antiguidade, e cabaças na bandola, e panelas de pólvora escura e fedor de fumaça ceguenta. Adivinhei a valia de maldade deles; soube que eles me respeitavam, entendiam em mim uma visão gloriã. Não queriam ter cobiças? Homens sujos de suas peles e trabalhos. Eles não arcavam, feito criminosos? - “O mundo, meus filhos, é longe daqui!” – eu defini. – Se queriam também vir? – perguntei. Ao vavar: o que era um dizer desseguido, conjunto, em que mal se entendia nada. Ah, esses melhor se sabiam se mudos sendo. Dei brado. Indaguei dum. Tomou um esforço de beira de coragem, para me responder. Esse aquele era o do chapéu encartuchado, rapaz moço. Respondeu que Sinfrônio se chamava; e indicou outro – que era o pai. Aquele outro, o pai, era um homem sem pescoço. Respondeu que se chamava Assunciano. E indicou outro. Mais adiante não deixei.

Deixasse, iam de dedo em dedo me passando para o daquelas pernas de fora, que Osirino era, as pernas forradas de lama seca; ou para o que coçava suas costas em pau de árvore, feito um bezerro ou um porco. Visli a sorrateira malícia nos jeitos deles. E

mais o do jegue – no jegue amontado, permanecendo de perfil, aquele bronzeado jumento – que tinha, o ho mam por nome Teofrásio; e só não desamontava do jegue por ordem minha, que em antes eu tinha-dado. Ele me disse: - “Dou louvor. Em tudo,

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas chefe, vos obedecemos...” – ele disse; e de lá se virou o focinho branco do jumento. O homem Teofrásio limpou a goela; mas com respeito. - “Assim vós prazido, chefe. Pedimos vossa benção...” E eu concedi – que o Teofrásio, meio chefim deles, o do jegue: que o jegue pudesse trazer. Daí houve porém. Que um, o sem pescoço, baixinho descoroçoou, na desengraça, observou:

- “... Quem é que vai tomar conta das famílias da gente, nesse mundão de ausências? Quem cuida das rocinhas nossas, em trabalhar pra o sustento das pessoas de obrigação?...” O que falou, tinha falado por todos. - “... Pra os roçados? Pra os plantios...” E mesmo um outro, de mãos postas como que para rezar, choramingou: - “Dou de comer à mea mul’é e treis fi’o’, em debaixo de meu sapé...” – e era um homem alto, espingolado, com todos os remendos em todos os molambos. - “Como é a tua graça, seô?” – indaguei. Se chamava Pedro Comprido. Mas, aí, eu já tinha pensado. - “Pois vamos! As famílias capinam e colhem, completo, enquanto vocês estiverem em glórias, por fora, guerreando para impor paz inteira neste sertão e para obrar vingança pela morte atraiçoada de loca Ramiro!...” – eu determinei. – I j’ Maria, é ver, nós, de Cristo, jagunceando...” –

escutei, dum. Daí, declarei mais: - “Vamos sair pelo mundo, tomando dinheiro dos que têm, e objetos e as vantagens, de toda

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas valia... E só vamos sossegar quando cada um já estiver farto, e já tiver recebido umas duas ou três mulheres, moças sacudidas, p’ra o renovame de sua cama ou rede!...” Ah, ô gente, oh e eles: que todos, quase todos, geral, reluzindo aprovação. Mesmo os meus homens. Fiz gesto, com meu contentamento. Queria o que só me faltou – que foi que o jumento do homem zurrasse. Eu ia transformar os regimentos desses foros. Convoquei todos nas armas. - “E o Borromeu? E o Borromeu?” – ainda perguntavam.

Quem era que esse Borromeu? Mandei vir. Um cego; ele era muito amarelo, escreiento, transformado. - “Responde, tu velho, Borromeu: que é que tu faz?” - “Estou no meu canto, cá, meu senhor... Estou me acostumando com o momentozinho de minha morte...” Cego, por ser cego, ele tinha direito de não tremer. - “Tu é devoto?” - “Pecador pior. Pecador sem o que fazer, pede preto, pede padre...” Apontou com o dedo. Levei os olhos. Não vi nada. É assim, a esmo, que os cegos fazem. Aquele era o bom rumo do Norte. - “Ah, meu senhor, eu sei é pedir muitas esmolas...” Pois, então, que viesse também o Borromeu, viesse. Mandei que montassem o dito num cavalo manso, que da banda da minha mão direita devia sempre de se emparelhar.

Alguns riram. E, pelo que riram, de certo não sabiam – que um desses, viajando parceiro com a gente, adivinha a vinda das

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas pragas que outros rogam, e vão defastando o mau poder delas; conforme aprendi dos antigos. E, por nada, mais me lembrei, de repentinamente, do menino pretozinho, que na casa do Valado a gente tinha surpreendido, que furtando num saco o que achava fácil de carregar. E tiveram de campear esse menino. Ele estava amoitado, o tempo todo, com a boca no chão, no meio do mandiocal. Quando foi pego, xingava, mordia e perneava. Ele se chamava Guirigó; com olhares demais, muito espertos. -

“Guirigó, tu vem vestido, ou nu?” Como que não vinha?

Aprontaram um cavalo para ele só, que devia de se emparelhar com o meu, da banda de minha mão esquerda. Há-de há, meu povo! Todos tocamos. Cavalos que chegassem, bastados, tinha não; mas, por diante, animais alheios a gente topasse, para se assenhorear, a laço e mãos. Os muitos vinham a pé, aqueles catrumanos ainda meio vigiados. Ver o seguinte. Eu queria esses campos. Pernoitamos, com marcha de dez léguas, assim mesmo.

Terçando um total de projetos, com os entusiasmos, no topo da cabeça minha, poder não pude dormir, mesmo com o cansaço em que estava, na noite não preguei os olhos. Mas conversei surgidamente com os que paravam, espalhados, de sentinelas, e mandei acender foguinhos de assar mandioca e fogueiras de iluminar. Ah, a gente ia encher os espaços deste mundo adiante.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Aonde é que jagunço ia? À vã, à vã. Tinha minha vontade, de estar em toda a parte. Mas, quadrando que primeiro, mais para o norte: para o Chapadão do Urucuia, aonde tanto boi berra.

Que eu recordava de ver o rio meu – beber em beira dele uma demão d’água... Ah, e essas estradas de chão branco, que dão mais assunto à luz das estrelas. Eu pensei, eu quis. E o Hermógenes, os Judas? Ara, inimigo, o senhor dê um passo, em que rumo qualquer, lá em sua frente o senhor encontra o mau...

Eu não tinha todo tempo? Safra em cima, eu em minha lordeza.

Mesmo deitado, eu sentia que estava caminhando, galopando.

Quando a madrugada bateu as asas, eu já estava abotoando a espora. Outra vez, eu digo: tem botim novo flote, e chinelo velho redomão. O dia ia ser lindo de leveza! – pelas beiradas do céu.

Forramos o estômago; e saímos, deslizando com a manhã, com o merujo do orvalho. O que eu via: altos de mata e além! As coisas todas eu pensava, e nada nenhuma não me sombreasse. Algum medo não palpitava frio por detrás de meus olhos; e, por via disso, eu de todos era o chefe, mesmo em silêncio singular.

Conforme assim, chegamos, no Pé-da-Pedra, fazenda da Barbaranha. Em perto de sete léguas. E o que aí foi, lhe conto.

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