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que era. Que eles – quem havia de não crer? – que eles mesmos agora estavam atirando por misericórdia nos cavalos sobreferidos, para a eles dar paz. Ao que estavam. – “As graças a Deus!...” – exclamou Zé Bebelo, alumiado, com um alívio de

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas homem bom. – “Ah, é marmo!” – o Alaripe exclamou também.

Mas o Fafafa nem nada não disse, não conseguia: o quanto pôde, se assentou no chão, com as duas mãos apertando os lados da cara, e cheio chorou, feito criança – com todo o nosso respeito, com a valentia ele agora se chorava. Aí, então, se esperou. Durado de um certo tempo, descansamos os rifles, nem um tirozinho não se deu. O intervalo para deixar a eles folga de matarem em definitivo nossos pobres cavalos. Mesmo quando o arraso do último rincho no ar se desfez de vez, a gente ainda se estarrecia quietos, um tempo grande, mais prazo – até que o som e o silêncio, e a lembrança daquele sofrer, pudessem se enralecer embora, para algum longe. Daí, depois, tudo recomeçou de novo, em mais bravo. E nisto, que conto ao senhor, se vê o sertão do mundo. Que Deus existe, sim, devagarinho, depressa. Ele existe

– mas quase só por intermédio da ação das pessoas: de bons e maus. Coisas imensas no mundo. O grande-sertão é a forte arma.

Deus é um gatilho?

Mas conto menos do que foi: a meio, por em dobro não contar. Assim seja que o senhor uma idéia se faça. Altas misérias nossas. Mesmo eu – que, o senhor já viu, reviro retentiva com espelho cem-dobro de lumes, e tudo, graúdo e miúdo, guardo –

mesmo eu não acerto no descrever o que se passou assim,

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas passamos, cercados guerreantes dentro da Casa dos Tucanos, pelas balas dos capangas do Hermógenes, por causa. Vá de retro!

– nanje os dias e as noites não recordo. Digo os seis, e acho que minto; se der por os cinco ou quatro, não minto mais? Só foi um tempo. Só que alargou demora de anos – às vezes achei; ou às vezes também, por diverso sentir, acho que se perpassou, no zuo de um minuto mito: briga de beija-flor. Agora, que mais idoso me vejo, e quanto mais remoto aquilo reside, a lembrança demuda de valor – se transforma, se compõe, em uma espécie de decorrido formoso. Consegui o pensar direito: penso como um rio tanto anda: que as árvores das beiradas mal nem vejo... Quem me entende? O que eu queira. Os fatos passados obedecem à gente; os em vir, também. Só o poder do presente é que é furiável? Não. Esse obedece igual – e é o que é. Isto, já aprendi.

A bobéia? Pois, de mim, isto o que é, o senhor saiba – é lavar ouro. Então, onde é que está a verdadeira lâmpada de Deus, a lisa e real verdade?

A ser que aqueles dias e noites se entupiram emendados, num ataranto, servindo para a terrível coisa, só. Aí era um tempo no tempo. A gente povoava um alvo encoberto, confinado. O

senhor sabe o que é se caber estabelecido dessa constante maneira? Se deram não sei os quantos mil tiros: isso nas minhas

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas orelhas aumentou – o que azoava sempre e zinia, pipocava, proprial, estralejava. Assentes o reboco e os vedos, as linhas e telhas da antiga casarona alheia, era o que para a gente antepunha defesa. Um pudesse narrar – falo para o senhor crer – que a casa-grande toda ressentia, rangendo queixumes, e em seus escuros paços se esquentava. Ao por mim, hora em que pensei, eles iam acabar arriando tudo, aquela fazenda em quadradão. Não foi.

Não foi, como logo o senhor vai ver. Porque, o que o senhor vai é – ouvir toda a estória contada.

Morreu mais o Berósio. Morreu o Cajueiro. O Moçambicão e Quim Queiroz, para a gente se sortir, traziam as quantidades de balas. Rente Zé Bebelo andava em toda a parte, mandando se atirar economizado e certeiro. – “Ah, oé, meus filhos: não vão desperdiçar. Matem só gente viva!” – ele trestampava – “... É

coragem, e qué’pe-te! que o morto morrido e matado não agride mais...” Aí cada um gritava para os outros valentia de exclamação, para que o medo não houvesse. Aí os judas xingávamos. Para não se ter medo? Ah, para não se ter medo é que se vai à raiva. A sebo! De dor do calor de inchação, aquele meu braço sempre piorava. Alaripe me cedeu, de bondoso, uma vasilha com água fria, carreou para mim; em entremeio de atirar, eu molhava bem um pano, torcia por cima do braço, o gotejado

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas frescor de alívio. Um companheiro sempre me ajudando, conforme agradeci. Um urucuiano, daqueles cinco urucuianos de Zé Bebelo. Isso, no instante, estranhei. Notei, de repente: aquele homem, fazia tempo que não se arredava de mim, sempre me seguindo, por perto.

Solevei uma desconfiança. Sempre o vulto presente daquele homem; seria só por acasos? O urucuiano, deles, que o Salústio se chamava. O que tinha os olhos miudinhos em cara redonda, boca mole e sete fios de barba compridos no queixo. Arreliado falei: – “Que que é? Tu amigou comigo?! Tatu – tua casa...” –

para ele. Semi-sério ele se riu. Comparsa urucuiano dos olhos verdes, homem muito feioso. Ainda nada não disse, coçou a barriga com as costas dobradas da mão – gesto de urucuiano. Eu bati com a minha mão direita por cima da canhota, que pegava o rifle, e deixei deixada – gesto de jagunço. Apertei com ele: – “Ao que me quer?” Me deu resposta: – “Ao assistir o senhor, sua bizarrice... O senhor é atirador! É no junto do que sabe bem, que a gente aprende o melhor...” A verdade com que ele me louvava.

Se riu, muito sincero. Não desgostei da companhia dele, para os bastantes silêncios. Assim é o que digo: que, quando o tiroteio batia forte, de lá, e daí de repente estiava – aquilo servia um pesado, salteação. Surdo pensei: aqueles Hermógenes eram gente

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas em tal como nós, até pouquinho tempo reunidos companheiros, se diz – irmãos; e agora se atravavam, naquela vontade de desigualar. Mas, por quê? Então o mundo era muita doideira e pouca razão? De perto, a doideira não se figurava transcrita. Pois o urucuiano Salústio João mais olhei. Ali, ajoelhado, ele mirava e atirava. Atirava e fechava os olhos. Quando abria outra vez, queria ver alguém vivo?

Sosseguei. Aí eu não devia de pensar tantas idéias. O

pensar assim produzia mal – já era invocar o receio. Porque, então, eu sobrava fora da roda, havia de ir esfriar sozinho.

Agora, por me valer, eu tinha de me ser como os outros, a força unida da gente mamava era no suscenso da ira. O ódio quase sem rumo, sem porteira. Do Hermógenes e do Ricardão? Neles eu nem pensava. Antes pensei outra vez foi no embuste do urucuiano. Atual ele se ajoelhava dobroso, com a perna muito para trás, a outra muito para diante. Aquele homem – achei –

estava mandado por Zé Bebelo, para espreitar meus atos.

A prova que era: de que Zé Bebelo despachava traição. As espumas dele me espirravam. Será que fosse para o urucuiano Salústio no primeiro descuido meu me amortizar? Tanto, não; apostei. Zé Bebelo me queria vigiado, para eu não contar aos

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas outros a verdade. Ora bem, que uns companheiros tinham avistado os bilhetes eu escrever – o fato esquisito, assim, em hora de começo de fogo; mas por certo pensavam que era para fazendeiros amigos nossos, chefes de homens, rogando que viessem, com retaguarda e reforço. Agora, Zé Bebelo temia que eu candongasse. Aí mandou o urucuiano fazer a minha sombra. Mas Zé Bebelo carecia de mim, enquanto o cerco de combate desse de durar. Traidor mesmo traidor, e eu também não precisava dele

– da cabeça de pensar exato? Ao que, naquele tempo, eu não sabia pensar com poder. Aprendendo eu estava? Não sabia pensar com poder – por isso matava. Eu aqui – os de lá do lado de lá. A anhanga que em riba da gente despejavam, balaços de tantos rifles, balas que quebram tetos e portas. Ah, isso era desgraça sem mão mandante, ofensa sem nenhum fazedor –

quase feito uma chuva-de-pedra, acontecer de trovões e raios, tempestade – parecesse? Eu ia ter raiva dos homens que não enxergava? Podia ter? Tinha, toda, era dos que eu matava bem.

Mas nem bem não era mesmo raiva; era só confirmação.

Desse jeito foi que entardeceu, o sol piscou; a gente tendo perdido a certeza dos horários do dia. Afã de dessossego, era só.

Daí, pegava um cansaço. Fechasse a noite, o perigo podia vir a ser maior. Os Hermógenes não iam investir, mediante trevas,

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas para um fim ali dentro, de coronha e faca? Morreu mais o Quiabo. Outros atestavam uns ferimentos. Por se necessitar da capela, os defuntos a gente foi levando para um cômodo pequeno e sem janela, que era pegado na escadinha do corredor.

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