Alaripe apareceu com uma vela, acendeu, enfiada numa garrafa.
Vela sozinha, para eles todos. Aí as lamparinas e candeias não bastavam? Debaixo dum alumiar de candeia, Zé Bebelo estava me convidando. Arte que logo entendi. Ele tinha mandado vir Joaquim Beiju e o Quipes, para um segredado.
Agora, aqueles dois, era para surtirem, saindo rastejando, conforme o quiçá; e cada um levava seu punhado de bilhetes, enviados. Por uma banda um, o outro da outra: o que Deus aprovasse, chegava. Assim eles aceitaram de cumprir, e motivos não perguntaram. Tudo em encoberto. Então – se Zé Bebelo guardava uma tenção honesta – por que, dito e feito, era que não punha todo o mundo ciente do tramado? Ainda esperei. Mas –
dirá o senhor – por que era que eu também não delatava aquilo, os efeitos e projetos, ao menos a Diadorim e Alaripe eu não contava? Deponho que não sei. Aos perigos, os perigos. Só duma coisa eu forte sabia... Só que eu ia vigiar sempre Zé Bebelo. Ele trair, vivo, eu não deixava. Zé Bebelo tinha sua espécie de natureza – que servia ou atraiçoava? Ah, depois eu ia ver.
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Ah, eu ia ver se, no engasgo da hora, ele ia querer se estrapafar.
Joaquim Beiju e o Quipes ainda foram na cozinha, cortar um de-comer, arranjar matula. Por essa volta, o jacaré mesmo combatia também, às vezes em que não estava cozinhando, e vinha atirar, da beira duma janela, com o Mijafogo. A noite breava própria; o mais escuro ia ser regulando em antes das dez horas, que quando depois podia subir um caco de lua. Aos poucos, foi dando um tão respeitável silêncio, não se atirava de parte nem de outra, a gente mesma ficava na cautela de não se fabricar rumor nenhum, de não se pautear sem necessidade. De noite, o clarão das pólvoras marca denúncia do lugar do atirador.
– “Noite é p’ra surpresas de estratagemas, noite é de bicho no usável...” – o Alaripe baixo falou. O cearense bom: esse permanecia em tudo igual, com ele a gente desproduzia qualquer remorso, o brigar parava sendo obrigação de vivente, conciso dever de homem. Por uns assim, eu punia. Por uns, assim, eu devia de ser inteiro leal, eu mesmo. Mas, então, eu carecia de encostar Zé Bebelo, o espremer na franca fala. A que ele soubesse de minha lei: a que ele sem um aviso não se desgraçasse. Mesmo por causa da gente – porque Zé Bebelo era a perdição, mas também só ele podia ser a salvação nossa. Então,
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas com ele eu ia falar, o quieto desafio. Adiantava? Aí não adiantasse. Mas, então, eu carecia de armar um poder, carecia de subir para cima daquele homem. Eu tinha de encher de medo as algibeiras de Zé Bebelo. Só isso era o que valia.
Contra o quanto, ele lavorava em firmes, pelo mais pensável, não descumpria de praxe nenhuma. Determinou o pessoal, para sono e sentinela, revezados. Onde perto de cada um dormindo, um parava acordado. Outros rondavam. Zé Bebelo, mesmo, ele não dormia? Sendo esse o segredo dele. Dava o ar de querer saber o mundo universo, administrava. Ao quase, que. A água para a serventia da casa vinha num rego, que beirava a cozinha, encostado, no lateral, descia e passava ainda por baixo da coberta. A gente podia encher as latas, sem arrisco. – “O que eles hão-de, é de demover o rego, lá em riba, botar fácil a gente a seco...” – Zé Bebelo ponderou. Mandou reservar quantia repleta: as vasilhas achadas e procuradas. Fizemos. Mas, de destorcerem o veio do rego, nunca que sucedeu aquilo. Até o derradeiro final, correu água bastante, todo o tempo, fresca abarulhava. Ao se fossem também empeçonhar o de beber? Toleima. Aonde iam ter sortimento de veneno, para águas correntes corromper?
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Deus escritura só os livros-mestres. Na noite Zé Bebelo saiu, engatinhando por mais escuro, e revestido com as roupas bem pretas que arranjou, dum e doutro. Ele devia de ter ido até longe, como rato em beira de paiol – que coruja come. Queria era farejar com os olhos o reprofundo. Voltou, aí deu ordem de outra coisa: que todos aproveitassem o sem-lua para suas necessidades boçais, aquelas tapadas estâncias. A gente ia, num vão de buracos, da banda das senzalas. Assim Zé Bebelo instruiu; e se virou para mim. – “Inimigo que faz igual numeração, ou menor do que a nossa.
Por via disso é que não tomam coragem de dar assalto, e é também que eles não conhecem o interior desta boa casa...”
Falou o tanto, comigo. Por que era que ele me escolhia, para os sussurros segredar? Me achava comparsa? – “... Os beócios, sem idéias... Não chegam a ser contrários para mim!” – ele muxoxou, até desapontado. A modo que eu, em Zé Bebelo, quase que tinha perdido toda minha fiança. A amizade dele eu para longe de mim já encostava – porquanto que, por mão minha, no incerto, ele podia ainda vir a precisar de ser matado. Eu estava em claro. Eu tinha preenchido aqueles bilhetes e cartas, amanuense, os linguados de papel – eu compartia as culpas. A invencionice de ambicioneiro. – “Riobaldo, Tatarana, tu vem comigo, porque tu é
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas ponteiro bom, fica de estado-maior meu...” – ele avolumou. Me inteirei. Ali, era a vez.
Ali era a alçada para eu fazer e falar o que já disse, que eu estava com essa razão na cabeça. Se tanto, pensei: “É a minha viveza...” Pelo que repontei:
– “É. Eu vou, com o senhor, e o urucuiano Salústio vem comigo. Vou com o senhor, e esse urucuiano Salústio vem comigo, mas é na hora da situação... Aí, na hora horinha, estou junto perto, para ver. A para ver como é, que será vai ser... O que será vai ser ou vai não ser...” – alastrei, no mau falar, no gaguejável. Senhor sabe por quê? Só porque ele me mirou, ainda mais mor, arrepentinamente, e eu a meio me estarreci – apeado, goro. Apatetado? Nem não sei. Tive medo não. Só que abaixaram meus excessos de coragem, só como um fogo se sopita. Todo fiquei outra vez normal demais; o que eu não queria. Tive medo não. Tive moleza, melindre. Agüentei não falar adiante.
Zé Bebelo luziu, ele foi de rajada:
– “Ao silêncio, Riobaldo Tatarana! Eh, eu sou o Chefe!?...”
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Saiba o senhor – lá como se diz – no vertiginosamente: avistei meus perigos. Avistei, como os olhos fechei, desvislumbrado. Aí como as pernas queriam estremecer para amolecer. Aí eu não me formava pessoa para enfrentar a chefia de Zé Bebelo?
Agora, pois. Mas agora não tinha outro jeito. Ah? Mas, aí, nem sei, eu não estava mais aceitando os olhos de Zé Bebelo me olhar. “No mundo não tem Zé Bebelo nenhum... Existiu, mas não existe... Nem nunca existiu... Tem esse chefe nenhum... Tem criatura nem visagem nenhuma com essa parecença presente nem com esse nome...” – eu estabeleci, em mansas idéias. Aceitei os olhos dele não, agarrei de olhar só para um lugarzinho, naquele peito, pinta de lugar, titiquinha de lugar – aonde se podia cravar certeira bala de arma, na veia grossa do coração... Imaginar isso, no curto. Nada mais nada. Tive medo não. Só aquele lugarzinho mortal. Teso olhei, tão docemente. Sentei em cima de um morro de grandes calmas? Eu estava estando. Até, quando minha tosse ouvi; depois ouvi minha voz, que falando a dável resposta:
– “Pois é, Chefe. E eu sou nada, não sou nada, não sou nada... Não sou mesmo nada, nadinha de nada, de nada... Sou a
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas coisinha nenhuma, o senhor sabe? Sou o nada coisinha mesma nenhuma de nada, o menorzinho de todos. O senhor sabe? De nada. De nada... De nada...”
Ao dito, falei; por quê? Mas Zé Bebelo me ouviu, inteiramente. As surpresas. Ele expôs uma desconfiança perturbada. Esticou o beiço. Bateu três vezes com a cabeça. Ele não tinha medo? Tinha as inquietações. Sei disso, soube, logo.
Assim eu tinha acertado. Zé Bebelo então se riu, modo generoso.
Adiantava? Ainda falou: – “Ah, qual, Tatarana. Tu vale o melhor.
Tu é meu homem!...” – para alargamentos. Murmurei o sosso de coisa, o que nem era palavras. – “A bem, vamos animar esses rapazes...” – amém, ele disse, espetaculava. Daí desapartamos, eu para a cozinha, ele para a varanda. O que eu tinha feito? Não por saber – mas somente pelo querer – eu tinha marcado. Agora, ele ia pensar em mim, mas meditado muito. Achei. Agora, ele ia não poder trair, simples, mas havia de raciocinar as vezes, dar de rédea para trás – do avançado para traição. A certa graça, a situação dele, aparvada. Eu estava com o bom jogo.
Aquela noite, meu quinhão dormi; no amiudar-do-galo o tiroteio já principiava renovado. Mas só os tiros espaços – para não esperdiçar, e render – porque eles estavam procedendo
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas como nós, o igual imediato. A guerra fina caprichada, bordada em bastidor. Fui ver o madrugar a manhã: uma brancura. O
senhor sabe: no levante, clareou o céu com o sol das barras. Mas o curralão já estava pendurado de urubus, os usos como eles viajam de todas as partes, urubu, passarão dos distúrbios. E, quando dava que rondava o vento, o curral fedia. Mas –
perdoando Deus – tresandava mais era dentro da casa, mesmo sendo enorme: os companheiros falecidos. Se taramelou o quarto, por tapar a soleira da porta se forrava com algodão em rama e aniagens. O fedor revinha surgindo sempre, traspassava.
A tanto, depois, a gente ouviu miados. – “Sape! O gato está lá...”
– algum gritou. Ah, era o gato, que sim. Saiu, soltado, surripiadamente, foi tornar a se ocultar debaixo dum catre, noutro cômodo. Carecia de se oferecer a ele de comer, que quem bem-trata gato consegue boa-sorte. No menos, na salade-fora, ocupei meu oficio, de mosquetear. A ganho, conforme as vazas, mais de um homem derrubei, que rolou, em réu, sei que defini. Avistante que os urubus já destemiam o se combater dos tiros, assaz eles baixavam, para o chão do curral, rebicavam grosso, depois paravam às filas, na cerca, acomodados acucados.
Quando pulavam de asas, abanassem aquele fedor. O dia andando, a catinga no ar aumenta. Aí eu não queria provar de
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