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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas sal, roi farinha seca, com punhado de rapadura. Na casa toda, como que não se achava um litro de cal, um caneco de creolina, por vil remédio. Morreu o Quim Pidão, se botou o corpo por cima dum banco na sala, provisório: ninguém não queria mais coragem de ir abrir com presteza o quarto dos defuntos. O dia envelhecia. A roubo, estive perto de Diadorim, quase só para espiar, quase sem a conversação. De ver Diadorim, com agrado, minha tenência pegava a se enfraquecer. Outros receios eu concebendo. O prazo que ali assim íamos ter de tolerar, no carrego da guerra. A gente até carecesse, no derradeiro durar, de comer somente os couros assados – conforme o caso terrível de Dutra Cunha, de um diabo, que, em sua fazenda do Canindé, resistiu ao cerco de Cosme de Andrade e Olivino Oliviano. Esse Dutra Cunha era o homem de um olho só. Zé Bebelo bem sabia a história dele. Agora, de Zé Bebelo eu risse. Montante de outras coisas ainda podiam suceder, de desde a madrugadinha até à viração da tarde? Mas ninguém falava em Joaquim Beiju e no Quipes. A uma hora dessas, ou eles já estavam arriados pelo inimigo, ou então, traquejando nos caminhos, a rumo de cidades. Assim – entardecer, anoitecer – galopassem em algum cavalo arranjado nos campos, e o tempo da gente eles estendiam. Será que haviam de vir os soldados? Aquele outro

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas dia, morreu mais o Acerejo. A tudo, o cheiro de morte velha. –

“O mau-fétido que vai terminar mazelando a gente...” – sempre um dizer. A dita morrinha, até a água que se bebia pegava na boca da gente, e rançava. A Casa dos Tucanos agüentava as batalhas, aquela casa tão vasta em grande, com dez janelas por banda, e aprofundada até em pedras de piçarrão a cava dos alicerces. A Casa acho que falava um falar – resposta ao assovioso – a quando um tiro estrala em dois, dois. De embiricica, entrantes as balas vinham, puxavam um fio de ar.

Eh, lascassem! Mas os companheiros por conta à-toa riam, não acrescentavam cangalha aos pesares. Mesmo, quando se sobrecarregava um rir, os que estavam mais longe mandavam saber o porquê, ou gritavam por perguntar, em empenho de combate. A resto, um Zé Vital deu ataque: o qual era um acesso sacramentado de feioso, principiando depois que ele se queixava de sentir o nariz quente, ele mesmo já sabia a data – e daí proclamava um grito de porco com frio, e caía estatelado no chão, duro como um cano de arma; mas atazanava batendo com os braços e pernas, querendo às ânsias coisa ou criatura em que se agarrar, o onde esbugalhava os olhos, a boca aspumada, escumando. Se disse: – “Isto é doença velha pertencida, isto não é fato de guerra...” Acesso que passava a estado meio

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas semimorto, num vago – pois deitaram o Zé Vital numa canastra de couro. Ao para a tarde, para a noite. Aí tudo navegava. A Casa estava se enchendo de moscas, dessas de enterro, as produzidas. A cada que cada, elas presumiam o sujo, em penca maior, pretejavam. Para as coisas que há de pior, a gente não alcança fechar as portas. Desdenhei Diadorim. De ver Diadorim, que, em febre de acertar e executar, não tomava consigo muita cautela, só forcejava por vingança – punições maravilhosas. Diadorim, mesmo, a cara muito branca, de da alma não se reconhecer, os olhos rajados de vermelho, o encovo. Aquilo era o crer da guerra. Por que causa? Porque Joca Ramiro constava de assassinado morrido? A razão normal de coisa nenhuma não é verdadeira, não maneja. Arreneguei do que é a força – e que a gente não sabe – assombros da noite. A minha terra era longe dali, no restante do mundo. O sertão é sem lugar. A Bigri, mulher minha mãe, não tinha me rogado praga. Alta manhã – em tudo repetido o igual: o cantar do rifleio, afora o feder ruim dos mortos e cavalos, e a moscaria, que se esparramava. Mesmo com a minha vontade toda de paz e descanso, eu estava trazido ali, no extrato, no meio daquela diversidade, despropósitos, com a morte da banda da mão esquerda e da banda da mão direita, com a morte nova em

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas minha frente, eu senhor de certeza nenhuma. Sem Otacília, minha noiva, que era para ser dona de tantos territórios agrícolas e adadas pastagens, com tantas vertentes e veredas, formosura dos buritizais. O que era isso, que a desordem da vida podia sempre mais do que a gente? Adjaz que me aconformar com aquilo eu não queria, descido na inferneira.

Carecia de que tudo esbarrasse, momental meu, para se ter um recomeço. E isso era. Pela última vez, pelas últimas. Eu queria minha vida própria, por meu querer governada. A tristeza, por Diadorim: que o ódio dele, no fatal, por uma desforra, parecia até ódio de gente velha – sem a pele do olho. Diadorim carecia do sangue do Hermógenes e do Ricardão, por via. Dois rios diferentes – era o que nós dois atravessávamos? Do lado de Diadorim restei, um tanto, no afã de escopetear. O inimigo nunca se via, nem bem o malmal, na fumacinha expelida, de cada uma pólvora. Arte, artimanha: que agora eles decerto andavam disfarçados de mbaiá – o senhor sabe – isto é, revestidos com moitas verdes e folhagens. Adequado que, embaiados assim, sempre escapavam muito de nosso ver e mirar. Ah, mas, deles, tiros vinham, bala estripitriz, e o trapuz de nossas telhas se despencando. A mãe morte. Quem devia mais, esse morria? – “Õ xente! Não é que pegaram em mim, e eu

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas estou passando, estou ficando cegado?...” – exclamou o Evaristo Caitité, quando descuidou a meia-banda e levou em si uma carga total. Ele já estava sem jogo nenhum no corpo, as partes das pernas se esfriavam. Antes quase rindo se acabou; ficou tão de olhos. – “O que é que ele vê? Vê a vitória!...” – Zé Bebelo se cresceu no dizer. A vitória e os urubus, que a farto comiam, e o Manuelzinho-da-Croa, meu cavalinho pedrês, que eu nele não ia poder nunca mais amontar. Assustava era o alopro dos companheiros, que não se sujeitavam mais de dormir, estavam pertencidos perturbados. A caso de se ter mão na nervosia deles, que queriam dar saída e lanços, avançar no ar. Doidagem desses comuns repentes, o desfazer do ajuntado. – “A firmeza, meus filhos. Fôlego e paciência, a gente sempre tem – é só requerer e repuxar, mais um dedo e outro dedo dobrado...” – Zé Bebelo media os modos de valer. Assim sendo, agora, só o remedeio, com as esperanças, extraordinárias. A um jeito de se escapar dali, a gente, a salvos? Zé Bebelo era a única possibilidade para isso, como constante pensava e repensava, obrava. E eu cri. Zé Bebelo, que gostava sempre de deixar primeiro tudo piorar bem, no complicado. Um gole de cachaça me deu bom conselho. Sem a vinda dos soldados – se viessem – a gente não estava perdidos?

Zé Bebelo não era quem tinha chamado os soldados? Ah, mas,

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas agora, Zé Bebelo não ia mais trair, não ia – e isso só por minha causa. Zé Bebelo carecia de rédeas de um outro diverso poder e forte sentir, que tomasse conta, desse rumo a ele. Assim eu estava sendo. Eu sabia. Zé Bebelo, mesmo nos relances de me olhar, fingia não conhecer minha vigiação, afetava. Mas ele se estreitava em meus palpos, conscienciado. Agora, ele tinha de especular, de afinar a cabeça, para o trabalho de imaginar maior, achar alguma outra invenção – para resolver o final com acerto para a vitória de nós todos – sem traição nem airagem. A tanto, cri, acreditado. Sabia que Zé Bebelo era muito capaz. Só não ri.

“Ao menos outro deles, dos Hermógenes, quero ver se resgato de abater, até vir o sereno do anoitecido...” – eu meditei. Não deu. Não pude. O que houve, o conseguinte, foi que Zé Bebelo pegou em meu ombro. Ele mudou de lugar, e pôs a cara no meio da luz. – “Aí, está ouvindo, Tatarana Riobaldo, está ouvindo?” –

ele disse, com um sorriso de tão grandes brilhos, que não era de ruindade e nem de bondade. Aquilo foi num dia, devia de estar sendo por volta de umas três da tarde, pelo rumo do sol. Ouvi!

Mas, então, a soldadesca tinha vindo, alcançada, estavam chegando? Era. Era! Remexendo um rebuliço, de nós todos, mesmo porque os mais não conheciam aquele motivo, de nada não soubessem o tencionado. Os praças? O tiroteio deles,

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas pegando os Hermógenes de supetão, surpresa bruta, de retaguarda. Os tiros, que eram: ... a bala, bala, bala... bala, bala, ba-la... a bala: bá!... – desfechavam com metralhadora. Aí arrejarrajava, feito um capitão de vento. Até destroçavam também nas custas da Casa? – “Apre, meninos, faz mal não. A vantagem do valente é o silêncio do rumor...” – Zé Bebelo sentenciava. Zé Bebelo trepava em altas serras. Duvidava de nada. Que vencia! Quem vence, é custoso não ficar com a cara de demônio.

Dele de perto não saí, a atenção e ordem ele recomendava.

O cano de meu rifle era tutor dele? Antes de minha hora, no que ele mandasse opor e falasse eu não podia basear dúvidas.

Mas, desde vez, aquilo a vir gastava as minhas forças. Ali – sem a vontade, mas por mais do que todos saber – eu estava sendo o segundo. Andando que Zé Bebelo falecesse ou trastejasse, eu tinha de tomar assumida a chefia, e mandar e comandar? Outro fosse – eu não; Jesus e guia! É baixo, os homens não iam me obedecer; nem de me entender eles não eram capazes. Capaz de me entender e de me obedecer, nos casos, só mesmo Zé Bebelo.

A jus – pensei – Zé Bebelo, somente, era que podia ser o meu segundo. Estúrdio, isso, nem eu não sabendo bem por que, mas era preciso. Era; eu o motivo não sabendo. Se fiz de saber, foi

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas pior. O que é que uma pessoa é, assim por detrás dos buracos dos ouvidos e dos olhos? Mas as pernas não estavam. Ah, fiquei de angústias. O medo resiste por si, em muitas formas. Só o que restava para mim, para me espiritar – era eu ser tudo o que fosse para eu ser, no tempo da quelas horas. Minha mão, meu rifle. As coisas que eu tinha de ensinar à minha inteligência.

Agora, o que era que se esperava? Só Zé Bebelo decerto podia responder, mas ele não dava senha de mudança. Onde o normal. Aí já se via o dia quase em fim, com as cores do sol.

Voavam uns guaxes. Dos soldados e dos judas, quase que não se ouvia empipoco de arma, só os tiros salteados, a cá e lá, como se escasso quisessem briga. A gente sobrossosa, nesse ensino de onça, traiçoeiros todos. Astúcias que manobrando em esconso deviam de estar, para trás e para os lados, pelo jeito melhor de pegarem o encoberto dos lugares, querendo enrolar os outros, para o remate de dar bote. – “Soldado pede é cautela, e o dobro-soldo...” – acho que um disse. Aquela era a ocasião mais arriscada. Ao que jagunço é isto – o senhor ponha letreiro. Ao encosto no rifle e apreparo nas patronas – isso era o que bastava.

Nenhum dos companheiros estava desinquieto, nem ralava apreensão. Nenhum conversava precisando de saber a maneira de escapulir vivos dali, da Fazenda dos Tucanos. Com a chegada

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas da soldadesca, o que parecia moagem era para eles era festa.

Assim uns gritaram feito araras machas. Gente! Feito meninos.

Disso eu fiz um pensamento: que eu era muito diverso deles todos, que sim. Então, eu não era jagunço completo, estava ali no meio executando um erro. Tudo receei. Eles não pensavam. Zé Bebelo, esse raciocinava o tempo inteiro, mas na regra do prático. E eu? Vi a morte com muitas caras. Sozinho estive – o senhor saiba. Mas, nisso, conforme o acontecido exato, uma coisa muito inesperada se deu. Da banda do mato, de repente, por cima das moitas de lobolobo, alguém levantou um pano branco, na ponta de uma vara.

A gente não tinha licença de abrir fogo no alvo daquele trapo. Apraz que a gente ia consentir em negócio com os judas?

Aqueles, para mim, guardavama definitiva marca, e só o que podiam trazer era a maldição. Mas Zé Bebelo, maneiro em presteza, já tinha amarrado um grande lenço branco na ponta de um rifle, e mandou que o Mão-de-Lixa aquilo erguesse e sacudisse no ar. – “A regra que é regra!” – Zé Bebelo disse. – “A solenidade de embaixador sempre se tem de consentir; até para herege, até para bugre...” Aprovavam, os outros, deram razão.

Achei que estavam com a vontade de saber que notícias eram, o que vir vinha. Com o que mais admirei: a mensagem daqueles

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas panos brancos, de lá e de cá, durou um certo tempo. Como tudo nesta vida carece de se acertar direito.

Depois, um sujeito apareceu, do capim, e veio, devia de ter passado por um rombo feito na cerca. A certa distância estava, no eirado, e um dos nossos disse, reconhecendo: – “Ah, é o Rodrigues Peludo, homem devoto do Ricardão...” Que era, que era – os outros companheiros concordaram. Atrás desse, meio engatinhando também, surgiu mais um: – “É o Lacrau!” E o Rodrigues Peludo virava para trás, falava qualquer coisa, parecia que estava mandando o Lacrau ir s’embora. Mas o Lacrau teimava, seguia acompanhando o outro. – “Xente, dond’ é que está se comparecendo esse Lacrau? Faz tempo que não se tinha ciência nenhuma dele...” O qual era dos Gerais do Bolor, terra jequitinhonha, e homem de certa valia. Caboclo claro. E que, ele sendo réu, tinha esfaqueado na sala de júri um promotor, em outroras. De ver os dois, perto, assim pessoas, escada acima, e presentes em pé, diante da gente, nas decididas condições, achei muita esquisitice. Rodrigues Peludo levantou os olhos, feito se a gente estivesse no céu, e saudou normal. Daí disse:

– “Seô Chefe...”

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