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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas o mais – alma e palma, e desalma... Deus e o Demo! – “Acabar com o Hermógenes! Reduzir aquele homem!...” –; e isso figurei mais por precisar de firmar o espírito em formalidade de alguma razão. Do Hermógenes, mesmo, existido, eu mero me lembrava

– feito ele fosse para mim uma criancinha moliçosa e mijona, em seus despropósitos, a formiguinha passeando por diante da gente – entre o pé e o pisado. Eu muxoxava. Espremia, p’r’ ali, amassava. Mas, Ele – o Dado, o Danado – sim: para se entestar comigo – eu mais forte do que o Ele; do que o pavor d’Ele – e lamber o chão e aceitar minhas ordens. Somei sensatez. Cobra antes de picar tem ódio algum? Não sobra momento. Cobra desfecha desferido, dá bote, se deu. A já que eu estava ali, eu queria, eu podia, eu ali ficava. Feito Ele. Nós dois, e tornopio do pé-devento – o ró-ró girado mundo a fora, no dobar, funil de final, desses redemoinhos: ... o Diabo, na rua, no meio do redemunho... Ah, ri; ele não. Aheu, eu, eu! “Deus ou o Demo –

para o jagunço Riobaldo!” A pé firmado. Eu esperava, eh! De dentro do resumo, e do mundo em maior, aquela crista eu repuxei, toda, aquela firmeza me revestiu: fôlego de fôlego de fôlego – da mais-força, de maior-coragem. A que vem, tirada a mando, de setenta e setentas distâncias do profundo mesmo da gente. Como era que isso se passou? Naquela estação, eu nem

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas sabia maiores havenças; eu, assim, eu espantava qualquer pássaro.

Sapateei, então me assustando de que nem gota de nada sucedia, e a hora em vão passava. Então, ele não queria existir?

Existisse. Viesse! Chegasse, para o desenlace desse passo. Digo direi, de verdade: eu estava bêbado de meu. Ah, esta vida, às não-vezes, é terrível bonita, horrorosamente, esta vida é grande.

Remordi o ar:

– “Lúcifer! Lúcifer!...” – aí eu bramei, desengolindo.

Não. Nada. O que a noite tem é o vozeio dum ser-só – que principia feito grilos e estalinhos, e o sapo-cachorro, tão arranhão. E que termina num queixume borbulhado tremido, de passarinho ninhante mal-acordado dum totalzinho sono.

– “Lúcifer! Satanás!...”

Só outro silêncio. O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo, demais.

– “Ei, Lúcifer! Satanás, dos meus Infernos!”

Voz minha se estragasse, em mim tudo era cordas e cobras.

E foi aí. Foi. Ele não existe, e não apareceu nem respondeu – que

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas é um falso imaginado. Mas eu supri que ele tinha me ouvido. Me ouviu, a conforme a ciência da noite e o envir de espaços, que medeia. Como que adquirisse minhas palavras todas; fechou o arrocho do assunto. Ao que eu recebi de volta um adejo, um gozo de agarro, daí umas tranqüilidades-de pancada. Lembrei dum rio que viesse adentro a casa de meu pai. Vi as asas. Arquei o puxo do poder meu, naquele átimo. Aí podia ser mais? A peta, eu querer saldar: que isso não é falável. As coisas assim a gente mesmo não pega nem abarca. Cabem é no brilho da noite.

Aragem do sagrado. Absolutas estrelas!

Pois ainda tardei, esbarrado lá, no burro do lugar. Mas como que já estivesse rendido de avesso, de meus íntimos esvaziado. – “E a noite não descamba!...” Assim parava eu, por reles desânimo de me aluir dali, com efeito; nem firmava em nada minha tenção. As quantas horas? E aquele frio, me reduzindo. Porque a noite tinha de fazer para mim um corpo de mãe – que mais não fala, pronto de parir, ou, quando o que fala, a gente não entende? Despresenciei. Aquilo foi um buracão de tempo.

A mor, bem na descida, avante, branquejavam aqueles grossos de ar, que lubrinam, que corrubiam. Dos marimbus, das

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Veredas-Mortas. Garoa da madrugada. E, a bem dizer por um caminho sem expedição, saí, fui vindo m’embora. Eu tinha tanto friúme, assim mesmo me requeimava forte sede. Desci, de retorno, para a beira dos buritis, aonde o pano d’água. A clarida-dezinha das estrelas indicava a raso a lisura daquilo. Ali era bebedouro de veados e onças. Curvei, bebi, bebi. E a água até nem não estava de frio geral: não apalpei nela a mornidão que devia-de, nos casos de frio real o tempo estar fazendo. Meu corpo era que sentia um frio, de si, frior de dentro e de fora, no me rigir. Nunca em minha vida eu não tinha sentido a solidão duma friagem assim. E se aquele gelado inteiriço não me largasse mais.

Foi orvalhando. O ermo do lugar ia virando visível, com o esboço no céu, no mermar da d’alva. As barras quebrando. Eu encostei na boca o chão, tinha derreado as forças comuns do meu corpo. Ao perto d’água, piorava aquele desleixo de frio.

Abracei com uma árvore, um pé de breubranco. Anta por ali tinha rebentado galhos, e estrumado. – “Posso me esconder de mim?...” Soporado, fiquei permanecendo. O não sei quanto tempo foi que estive. Desentendi os cantos com que piam, os passarinhos na madrugança. Eu jazi mole no chato, no folhiço, feito se um morcegãocaiaria me tivesse chupado. Só levantei de lá

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas foi com fome. Ao alembrável, ainda avistei uma meleira de abelha aratim, no baixo do pau-de-vaca, o mel sumoso se escorria como uma mina d’água, pelo chão, no meio das folhas secas e verdes. Aquilo se arruinava, desperdiçado. Senhor, senhor

– o senhor não puxa o céu antes da hora! Ao que digo, não digo?

Cheguei no meio dos outros, quando o jacaré estava terminando de coar café. – “Tu treme friúra, pegou da maleita?”

– algum me perguntou. – “Que os carregue!” – eu arrespondi. E

mesmo com o sol saindo bom, cacei um cobertor e uma rede.

Arte – o enfim que nada não tinha me acontecido, e eu queria aliviar da recordação, ligeiro, o desatino daquela noite. Assim eu estava desdormido, cisado. Aí mesmo, no momento, fui ecogitando: que a função do jagunço não tem seu que, nem p’ra que. Assaz a gente vive, assaz alguma vez raciocina. Sonhar, só, não. O demônio é o Dos-Fins, o Austero, o Severo-Mor.

Aporro!

Sabendo que, de lá em diante, jamais nunca eu não sonhei mais, nem pudesse; aquele jogo fácil de costume, que de primeiro antecipava meus dias e noites, perdi pago. Isso era um sinal? Porque os prazos principiavam... E, o que eu fazia, era que eu pensava sem querer, o pensar de novidades. Tudo agora

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas reluzia com clareza, ocupando minhas idéias, e de tantas coisas passadas diversas eu inventava lembrança, de fatos esquecidos em muito remoto, neles eu topava outra razão; sem nem que fosse por minha própria vontade. Até eu não puxava por isso, e pensava o qual, assim mesmo, quase sem esbarrar, o todo tempo.

Nos começos, aquilo bem que achei esquipático. Mas, com o seguinte, vim aceitando esse regime, por justo, normal, assim.

E fui vendo que aos poucos eu entrava numa alegria estrita, contente com o viver, mas apressadamente. A dizer, eu não me afoitei logo de crer nessa alegria direito, como que o trivial da tristeza pudesse retornar. Ah, voltou não; por oras, não voltava.

– “Uai, tão falante, Tatarana? Quem te veja...” – me perguntaram; o Alaripe perguntou. Será que de mim debicavam.

Eu estava, com efeito, relatando mediante certos floreados umas passagens de meus tempos, e depois descrevendo, por diversão, os benefícios que os grados do Governo podiam desempenhar, remediando o sertão do desdeixo. E, nesse falar, eu repetia os ditos vezeiros de Zé Bebelo em tantos discursos.

Mas, o que eu pelejava era para afetar, por imitação de troça, os sestros de Zé Bebelo. E eles, os companheiros, não me

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas entendiam. Tanto, que foi só entenderem, e logo pegaram a rir.

Aí riam, de miséria melhorada.

– “Os mestres, que está certo, amigo...” – o Àlaripe dissesse. - “Deveras, está certo, mano-velho...” – outro, o Rasgaem-Baixo, inteirou.

Aquilo não tolerei. Esse vesgueiro Rasga-em-Baixo, o qual entornava de lado a cabeça, gastando ar demais, o que respirava três vezes forte, e fuxicando o nariz, numa fungação. Desentendi e impliquei.

– “Certo de que, nesta vida? Pois eu nem costumo nunca xingar ninguém de filho daquela ou dessa, por receio de que seja mesmo verdade...” Assim a eles eu disse. Tanto enquanto riam, apreciando me ouvir, eu contei a estória de um rapaz enlouquecido devagar, nos Aiáis, não longezinho da Vereda-da-Aldeia: o qual não queria adormecer, por um súbito medo que nele deu, de que de alguma noite pudesse não saber mais como se acordar outra vez, e no inteiro de seu sono restasse preso.

Mais me acudiam dessas fantasias. E eu relanceei, de repente, e falei o que era que a gente precisava:

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas

– “Urgentemente é se mandar portador, a lugar de farmácia, comprar adquirido remédio forte, que há, para se terminar com a maleita, em definitividade!”

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