O zunzum da guerra acontecendo era que me estorvava de direito pensar. E Zé Bebelo não estava ali não era para isso, para pensar por todos? Como que fosse, o papel, para o que carecia, era pouco. Tinham de caçar mais papel, qualquer, por ali devia de ter. Enquanto isso, eu cumprisse de escrever, na seca mão da necessidade.
E ouvimos praga de dor.
– “Ao que foi?” Uns gemidos, despautados, de sorrogo. –
“Companheiro ofendido. O Leocádio...” – ouvimos. Sem-modos se precipitado, Zé Bebelo avançou para ali, para ver. Sem determinação tomada de ir, eu também já estava lá, atrás dele. O
homem, o primeiro ferido, caído sentado, as pernas estendidas para diante, as costas amparadas na parede; com a mão esquerda era que ele suportava sua testa, mas com a direita ainda segurava o rifle, que o asno rifle ele não tinha largado. Conforme Raimundo Lê já tinha exigido, alguns vinham da cozinha,
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas trazendo as latas d’água. Raimundo Lê lavava a cara do homem ensangüentada, do Leocádio. Esse estava atirado pelas queixadas, má bala que lhe partira o osso, o vermelho brabotava e pingava.
– “Meu filho, tu agüenta ainda brigar?” – Zé Bebelo quis saber.
O Leocádio, que fez careta, garantiu que podia: – “O que posso.
Em nome de Deus e de meu São Sebastião guerreiro, o que posso!” Sempre sendo a careta sem gracejo; pois falar era o que para ele custava e maltratava. – “E da Lei... E da lei, também...
Ah, então, vamos, faz vingança, menino, faz vingança!” – Zé Bebelo aforçurou. Semelhante só botasse apreço nos fatos por resultar. Zé Bebelo se endemoninhava.
Segurou meu braço, suscitado de se voltar para a mesa, para se escrever, amanuense. Pelo discorrer, revólver na mão, às vezes achei, em minha fantasia, que ele estava me ameaçando. –
“Ei, ai, vamos ver. Que tenho esquadrão reiúno: esses é que vão vir me dar retaguarda!” – ele falasse. Eu escrevesse, com mais urgência. Os bilhetes – missiva para o senhor oficial comandante das forças militares, outro para o excelentíssimo juiz da comarca de São Francisco, outro para o presidente-da-câmara de Vila Risonha, outro para o promotor. – “Apresta. A massa do volume deles também dá valor...” – ele regendo.
Acertei. Escrevi. O teor era aquilo mesmo, o simples: que, se os
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas soldados no soflagrante viessem, de rota abatida, sem esperdiçar minuto, então aqui na Fazenda dos Tucanos pegavam caça grossa, reunida – de lobo, jaguatirica e onça – de toda a jagunçada maior reinante no vezvez desses gerais sertões. A rasa, à justa, e cerrar com fecho formal: Ordem e Progresso, viva a Paz e a Constituição da Lei! Assinado: José Rebelo Adro Antunes, cidadão e candidato.
No pique dum momento, perdi e achei minha idéia, e esbarrei. A em pé, agora formada, eu conseguia a alumiação daquela desconfiança. Assim. Em que maldei, foi: aquilo não seria traição? Rasteiro, tive que olhei Zé Bebelo, no grude dos olhos. Daí, tão claro e aligeirado pensei – os prefácios. Aquele tinha sido homem pago estipendiado pelo Governo, agora os soldados do Governo com ele se encontravam. E nós, todos?
Diadorim e eu, os tristes e alegres sofrimentos da gente, a célebre morte de Medeiro Vaz, a vingança em nome de Joca Ramiro?
Nem eu sabia ao certo, depois, no correr de tantos meses, o extrato da vida de Zé Bebelo, o que ele tinha realmente feito, somenos se cumprida a viagem de ida até em Goiás. Soubesse, o pior, era que ele, por oficio e por espécie, não podia esbarrar de pensar, não podia esbarrar de pensar inventado para adiante, sem repouso, sempre mais. A gente estava por conta dele – e sem
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas repouso nenhum também, nenhum – o portanto. E ele tinha trazido o bando cá para perto do São Francisco, tinha querido falhar os três dias naquela fazenda atacável. Quem sabe, então, o recado para os soldados virem, ele mesmo já não teria enviado, desde tempos? Idéia, essa. Arre de espanto – ah, como quando onça de-lado pula, quando a canoa revira, quando cobra chicoteia. Desse de ser? Ao caminho dos infernos – para prazo!
Aí, careci de querer a calma. O tiroteio já redobrava. Ouvi a guerra.
Decerto eu estava exagerado. Antes Zé Bebelo havendo de ser mesmo o chefe para a hora, safado capaz. Nem se desprazia.
– “Oi, xô! P’ra esses, munição não falta?...” – ele escarnecendo disse, quando as descargas vieram em salva mais forte – o fiufiu e os papocos. Ah as balas que partiam telhas e que as paredes todas recebiam. Cacos caindo, do alto. – “Te apressa, Tatarana, que nós dois temos também de atirar!” Alegre dito. Na janela, ali, tinham pendurado igualmente um daqueles couros de boi: bala dava, zaque-zaque, empurrando o couro, daí perdia a força e baldava no chão. A cada bala, o couro se fastava, brando, no ter o choque, balangava e voltava no lugar, só com mossa feita, sem se rasgar. Assim ele amortecia as todas, para isso era que o couro servia. “Traição?” – eu não queria pensar. Eu já tinha preenchido
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas três cartas. Não é do tutuco nem do zumbiz das balas, o que daquele dia em minha cabeça não me esqueço; mas do bater do couro preto, adejante, que sempre duro e mole no ar se repetia.
Advindo que algum me trouxe mais papel, achado por ali, nos quartos, em remexidas gavetas. Só coisa escrita já, de tinta firme; mas a gente podendo aproveitar o espaço embaixo, ou a banda de trás, reverso dita. Que era que estava escrito nos papéis tão velhos? Um favor de carta, de tempos idos, num vigente fevereiro, 11, quando ainda se tinha Imperador, no no-me dele com respeito se falava. E noticiando chegada em poder, de remessa de ferramenta, remédios, algodão trançado tinto. A fatura de negócios com escravos, compra, os recibos, por Nicolau Serapião da Rocha. Outras cartas... – “Escreve, filho, escreve, ligeiro...” A traição, então? Altamente eu escutava os gritos dos companheiros, xingatório, no meio da desbraga do quanto combate, na torração. Aqui mesmo, esgueirados para a janela, o Duzentos e o Rasga-em-Baixo agora ombreavam armas, seu vez-em-quando a ponto atiravam. Assim como não pude, eu esbarrei, outra vez – e encarei Zé Bebelo sem final.
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– “Que é? Que é lá?!” – ele me perguntou. Devia ter me deduzido, dos meus olhos, mesmo melhor do que o que eu sabia de mim.
– “A pois... Por que é que o senhor não se assina, ao pé: Zé Bebelo Vaz Ramiro... como o senhor outrora mesmo declarou?...” – eu cacei contra, reperguntando.
Ato visível, que ele esteve pego, no usual de seu modo, assim, de se espantar no ar. Conheci. Às vezes, também, um atraiçoa, sem nem saber o que é que está produzindo-às falsas hajas! Mas ele não tinha surpreendido a verdade do meu indagar, a expedição de minha dúvida. Conforme, prazido consigo, recachou, e me disse, me engambelando:
– “Ah, hã-an... Também pensei. Tanto que pensei; mas, não se pode... Muito alta e sincera é a devoção, mas o exato das praxes impõe é outras coisas: impõe é o duro legal...”
Aí, fui escrevendo. Simples, fui, porque fui; ah, porque a vida é miserável. A letra saía tremida, no demoroso. Meu outro braço também recomeçava a doer, quase’que. “Traição”... – sem querer eu fui lançando no papel a palavra; mas risquei. Uma bala no couro assoviou soco, outra entrou atrás, entrou com o couro
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas levantado, deu na parede defronte, ricocheteou e veio cair, quente, perto da gente. Ali na parede, tinha um chifre de boi de se dependurar roupa; até armador de rede era de chifre de boi, naquela Casa. Sumamente, eu esperei o pispissiu de alguma outra bala, eu queria. Soubesse por quê? O pensar caladíssimo de Zé Bebelo me perturbava.
Mas ele disse: – “Que é que é?” – se debruçando. – “Que erro que foi?” Não viu, porque eu já tinha riscado. Mas, então, ele muito falou. Ia explicando. De noite, no escuro feito, ia mandar dois cabras, dos mais espertos viajeiros, para rastejarem por ali, furando o cerco, cada um levava ruma igual daquelas cartas. Assim, Deus azado ajudasse, e eles ou ao menos um deles conseguisse, então era resumo certo que a soldadesca se mo-vimentava de vir. Apareciam, os trapezavam, apropositavam, arrebentavam com os Hermógenes!
– “E a gente?” – eu perguntei.
– “Ãe? A gente? A ver, que você não me entendeu? A gente obra jeito de se escapar, no cererê da confusão...”
Antes, tanto, que era muito difícil – eu repostei.