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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas conhecia em favor dele a arte do Coisa-Má, com tamanha proteção? Ah, pois porque ele não sofria nem se cansava, nunca perdia nem adoecia; e, o que queria, arrumava, tudo; sendo que, no fim de qualquer aperto, sempre sobrevinha para corrigimento alguma revirada, no instinto derradeiro. E como era a razão desse segredo? – “Ah, que essas coisas são por um prazo... Assinou a alma em pagamento. Ora, o que é que vale?

Que é que a gente faz com alma?...” O Lacrau se ria, só por acento. Ele me dizia que a natureza do Hermógenes demudava, não favorecendo que ele tivesse pena de ninguém, nem respeitasse honestidade neste mundo. – “Pra matar, ele foi sempre muito pontual... Se diz. O que é porque o Cujo rebatizou a cabeça dele com sangue certo: que foi o de um homem são e justo, sangrado sem razão...” Mas a valência que ele achava era despropositada de enorme, medonha mais forte que a de reza-brava, muito mais própria do que a de fechamento-de-corpo. Pactário ele era, se avezando por cima de todos. – “Você, que não cede nenhum valor à alma, você, Lacrau, era capaz de fechar desse pacto?” – eu indaguei. – “Ah, não, mano, quero lá não navegar por detrás das coisas...

Coragem minha é para se remedir contra homem levado feito eu, não é para marcar a meia-noite nessas encruzilhadas,

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas enfrentar a Figura...” Calado, considerei comigo. Esse Lacrau tirava a sensatez da insensatez. Outras informações ele disse. O

senhor não é como eu? Sem crer, cri.

Às parlendas, bobéia. O medo, que todos acabavam tendo do Hermógenes, era que gerava essas estórias, o quanto famanava. O fato fazia fato. Mas, no existir dessa gente do sertão, então não houvesse, por bem dizer, um homem mais homem? Os outros, o resto, essas criaturas. Só o Hermógenes, arrenegado, senhoraço, destemido. Rúim, mas inteirado, legítimo, para toda certeza, a maldade pura. Ele, de tudo tinha sido capaz, até de acabar com Joca Ramiro, em tantas alturas.

Assim eu discerni, sorrateiro, muito estudantemente. Nem birra nem agarre eu não estava acautelando. Em tudo reconheci: que o Hermógenes era grande destacado daquele porte, igual ao pico do serro do Itambé, quando se vê quando se vem da banda da Mãe-dos-Homens – surgido alto nas nuvens nos horizontes. Até amigo meu pudesse mesmo ser; um homem, que havia. Mas Diadorim era quem estava certo: o acontecimento que se carecia era de terminar com um.

Diadorim, o Reinaldo, me lembrei dele como menino, com a roupinha nova e o chapéu novo de couro, guiando meu ânimo para se aventurar a travessia do Rio do Chico, na canoa

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas afundadeira. Esse menino, e eu, é que éramos destinados para dar cabo do Filho do Demo, do Pactário! O que era o direito, que se tinha. O que eu pensei, deu de ser assim.

Mas em tanto, com as mudanças e peripécias, no afinco de tudo lhe referir, ditas conforme digo – não toco no nome de Otacília? Nela eu queria pensar, na ocasião; mas mal que, cada vez, achava mais custoso. A ser que se nublando a sustância da recordação, a esquecida formosura. Assim a nossa conversação de amor, lá na Santa Catarina, não consistisse mais do que em uma estória alheia, escutada de outra pessoa contar. Sei que eu queria uma saudade. Para isso rezei, a todas as minhas Nossas Senhoras Sertanejas. Mas rebotei de lado aquelas orações, na água fina e no ar dos ventos. Elas, era feito eu lavrasse falso, não me davam nenhuma cortesia. Só um vexame, de minha extração e da minha pessoa: a certeza de que o pai dela nunca havia de conceder o casamento, nem tolerar meu remarcado de jagunço, entalado na perdição, sem honradez costumeira. As quantias por paga! O senhor entende, o que conto assim é resumo; pois, no estado do viver, as coisas vão enqueridas com muita astúcia: um dia é todo para a esperança, o seguinte para a desconsolação.

Mas eu achei, aí, a possibilidade capaz, a razão. A razão maior, era uma. O senhor não quer, o senhor não está querendo saber?

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Aquilo, que eu ainda não tinha sido capaz de executar.

Aquilo, para satisfazer honra de minha opinião, somente que fosse. – “Ah, qualquer dia destes, qualquer hora...” – era como eu me aprazava. O dum dia, duma noite. Duma meia-noite. Só para confirmar constância da minha decisão, pois digo, acertar aquela fraqueza. Ao que, alguma espécie aquilo continha? Na verdade real do Arrenegado, a célebre aparição, eu não cria.

Nem. E, agora, com isto, que falei, já está ciente o senhor?

Aquilo, o resto... Aquilo – era eu ir à meia-noite, na encruzilhada, esperar o Maligno – fechar o trato, fazer o pacto!

Vejo que o senhor não riu, mesmo em tendo vontade.

Também tive. Ah, hoje, ah – tomara eu ter! Rir, antes da hora, engasga. E eu me enviava pelo sério. Uma precisão eu encarecia: aí, de sopesar minhas seguidas forças, como quem pula a largura dum barranco, como quem saca sua faca para relumiar.

E veio mesmo outra manhã, sem assunto, eu decidi comigo: – É hoje... Mas dessa vez eu ainda remudei. Sem motivo para sim, sem motivo para não. Delonguei, deveras. Não é que, não foi de medo. Nem eu cria que, no passo daquilo, pudesse se dar alguma visão. O que eu tinha, por mim – só a invenção de coragem. Alguma coisice por principiar. O que

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas algum tivesse feito, por que era que eu não ia poder? E o mais –

é peta! – nonada. Do Tristonho vir negociar nas trevas de encruzilhadas, na morte das horas, soforma dalgum bicho de pêlo escuro, por entre chorinhos e estados austeros, e daí erguido sujeito diante de homem, e se representando, canhim, beiçudo, manquinho, por cima dos pés de bode, balançando chapéu vermelho emplumado, medonho como exigia documento com sangue vivo assinado, e como se despedia, depois, no estrondo e forte enxofre. Eu não acreditava, mesmo quando estremecia. T’arreneguei.

Com isso, o tempo mais parava. Também, fazia mais de mês que a gente estava naquela tapera de retiro, cujo a Coruja era que era o nome, por um desses impossíveis de Zé Bebelo.

Ao que mais foi que aconteceu ali? Bem, passa um bando de papagaios, o senhor pensa que eles levaram de sua pessoa alguma diversão. Mas os papagaios estão voando já longe, e o rumor deles, conforme o vento, faz que nem estivessem retornando. Diadorim, esse, nunca teve instante desiludido.

Sempre eu gostava muito dele. Só que não falasse; por aquele tempo eu quase não abria boca para conversação.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas E se deu que chegaram lá dois homens, quando não se esperava, um deles se vendo que sendo patrão, e o outro algum vaqueiro de seu serviço. Aí logo se soube: era o dono daqueles lugares, do retiro do Valado, principalmente; e ele, conforme já disse, seô Habão se chamava. Ali, quando dei fé, ele já tinha se apeado; estava curvado para o chão, mas seguro com a mão esquerda na rédea de seu cavalo. Era um homem de boa idade, vestido com brim azul encorpado escuro, e calçando pretas botas joelhudas. Quando levantou o olhar, outra vez, notei que tinha boa catadura. Mas o cavalo – esse me entusiasmou: era um animal gateado, grande, com imponência e todo brio, de rabejo vasto; e mais tarde o senhor verá o que ele era; cavalo de cara alta, de beiço mole, cavalo que debruça bem e que em poço bebia remolhando a testa. Ele sabia olhar redor-mirado a gente, com simpatias ou com desprezos, e respirava para dentro dos peitos a maior quantidade de ar que desejava, por quantas ventas tão largas ele tinha. Bem, dele depois lhe conto.

Seô Habão estava conversando com Zé Bebelo. Admirei a noção dele: que era uma calma muito sensata e firmada, junto com um miúdo comportamento. E vigiava os traços simples do arredor, não perdendo azo de reparar em todas as coisas, como era que estavam em que pé. Olhares de dono – o senhor sabe. E

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas assim foi que ele declarou a Zé Bebelo que, na ocasião, estava desprevenido, não transportava consigo o dinheiro razoável.

Mas que, se a gente desse a ele o gosto de seguirmos até à verdadeira sua fazenda-grande que possuía, na vertente do Resplandor, dali a umas vinte léguas de lonjura, ele havia de fornecer ademais um auxílio, em espórtulas. E ele falou aquilo com tantas sinceras medidas – a gente se capacitando do profundo que o dinheiro para ele devia de ter valor. Por aí, vi que ele era adiantado e sagaz. Porque: ema, no chapadão, é a primeira que ouve e se sacode e corre – e mesmo em quando tenha razão.

Mas, com seus modos guerreiros, Zé Bebelo abriu um gesto, à fidalgamente, nem deixando o outro estipular:

– “Ah, isso não, patrício meu amigo, he, mas absolutamente! A gente não é gente da desordem... E favor, de sobra, nós já devemos ao senhorpela pousada em suas terras e pelas cabeças de gado de sua posse, que temos carneado, por precisão de sustento...”

O homem depressa pronunciou que tinha prazer naquilo, que sua boiada toda estava às ordens; mas, como por uma regra, perguntou assim mesmo quantas cabeças, mais ou menos, a

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas gente já tinha consumido. Assim ele dava balanço, inquiria, e espiava gerente para tudo, como se até do céu, e do vento suão, homem carecesse de cuidar comercial. Eu pensei: enquanto aquele homem vivesse, a gente sabia que o mundo não se acabava. E ele era sertanejo? Sobre minha surpresa, que era.

Serras que se vão saindo, para destapar outras serras. Tem de todas as coisas. Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas.

Fiquei notando. Em como Zé Bebelo aos poucos mais proseava, com ensejos de ir mostrando a valia declarada que tinha, de jagunço chefe famoso; e daí, sutil, se reconhecia da parte dele um certo desejo de agradar ao outro. Por causa que o outro era diferido, composto em outra séria qualidade de preocupações. E seô Habão, que escutava com respeito, devagar-zinho pegava a fazer perguntas, com a idéia na lavoura, nos trabalhos perdidos daquele ano, por desando das chuvas temporãs e do sol grave, e das doenças sucedidas. O que me dava a qual inquietação, que era de ver: conheci que fazendeiro-mor é sujeito da terra definitivo, mas que jagunço não passa de ser homem muito provisório.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas E Zé Bebelo mesmo se cansava de falar demonstrado.

Porque seô Hahão, mansoso e manso, sem glória nenhuma, era um toco de pau, que não se destorce, fincado sempre para o seu arrumo. Ele só entendia de assuntos triviais, mas cuidava deles com uma força vagarosa, verdadeira, de boi-decoice. E, no mais, nem ouvia, apesar de toda a cortesia de respeito, quando se falava em loca Ramiro, no Hermógenes e no Ricardão, em tiroteios com os praças e na grande tomada, por quinhentos cavaleiros, da formosa cidade de São Francisco – que é a que o Rio olha com melhor amor. Daí, assim ia sendo que, mesmo sem sentir, o próprio Zé Bebelo se via principiando a ter de falar com ele em todas as pestes de gado, e nas boas leiras de vazante, no feijão-da-seca e nos arrozais cacheando, em que os passarinhos de Deus viram em a má praga. Com efeito, nos intervalos daquela dividida conversa, não sei o que Zé Bebelo sentia nem achava.

Eu, digo – me disse: que um homem assim, seô Habão, era para se querer longe da gente; ou, pois, então, que logo se exigisse e deportasse. Do contrário, não tinha sincero jeito possível: porque ele era de raça tão persistente, no diverso da nossa, que somente a estância dele, em frente, já media, conferia e reprovava.

Mas, sei lá, só por um doente desejo de necessidade de ver bem se aquilo era, o certo foi que não sosseguei até poder me

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas presenciar com ele, perto a perto, e inventar conversação. E nem custoso não me foi, porque ele passou ali com a gente muitas horas, quase que o dia todo. Dei um jeito, fazendo como se menos quisesse, e vim em fala. Seô Habão me olhou com tantã norma desusada, que eu senti minhas falsidades. E esqueci as palavras primeiras, que tinha aprontado para declarar.

– “Seô Capitão Habão...” – eu disse; e num relance eu conheci que estava também tendo de falar o p’r’ agradar.

Assim, o que dissertei foi que eu sabia do título de capitão que ele usufruía, por ter relido o diploma, na casa do Valado, que de roubos a furtos a gente do Sucruiú tinha devastado. E

contei a ele que a referida patente eu tinha por cautela apanhado do chão e guardado dentro do oratório, por detrás das imagens dos santos.

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