Aí o senhor via os companheiros, um por um, prazidos, em beira do café. Assim, também, por que se agüentava aquilo, era por causa da boa camaradagem, e dessa movimentação
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas sempre. Com todos, quase todos, eu bem combinava, não tive questões. Gente certa. E no entre esses, que eram, o senhor me ouça bem: Zé Bebelo, nosso chefe, indo à frente, e que não sediava folga nem cansaço; o Reinaldo-que era Diadorim: sabendo deste, o senhor sabe minha vida; o Alaripe, que era de ferro e de ouro, e de carne e osso, e de minha melhor estimação; Marcelino Pampa, segundo em chefe, cumpridor de tudo e senhor de muito respeito; João Concliz, que com o Sesfredo porfiava, assoviando imitado de toda qualidade de pássaros, este nunca se esquecia de nada; o Quipes, sujeito ligeiro, capaz de abrir num dia suas quinze léguas, cavalos que haja; Joaquim Beiju, rastreador, de todos esses sertões dos Gerais sabente; o Tipote, que achava os lugares d’água, feito boi geralista ou buriti em broto de semente; o Suzarte, outro rastreador, feito cão cachorro ensinado, boa pessoa; o Queque, que sempre tinha saudade de sua rocinha antiga, desejo dele era tornar a ter um pedacinho de terra plantadeira; o Marimbondo, faquista, perigoso nos repentes quando bebia um tanto de mais; o Acauã, um roxo esquipático, só de se olhar para ele se via o vulto da guerra; o Mão-de-Lixa, porreteiro, nunca largava um bom cacete, que nas mãos dele era a pior arma; Freitas Macho, grão-mogolense, contava ao senhor qualquer patranha que prouvesse, e assim
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas descrevia, o senhor acabava acreditando que fosse verdade; o Conceiço, guardava numa sacola todo retrato de mulher que ia achando, até recortado de folhinha ou de jornal; José Gervásio, caçador muito bom; José ]itirana, filho dum lugar que se chamava a Capelinha-do-Chumbo: esse sempre dizia que eu era muito parecido com um tio dele, Timóteo chamado; o Preto Mangaba, da Cachoeira-do-Choro, dizia-se que entendia de toda mandraca; João Vaqueiro, amigo em tanto, o senhor já sabe; o Coscorão, que tinha sido carreiro de muito ofício, mas constante que era canhoto; o jacaré, cozinheiro nosso; Cavalcânti, competente sujeito, só que muito soberbose ofendia com qualquer brincadeira ou palavra; o Feliciano, caolho; o Marruaz, homem desmarcado de forçoso: capaz de segurar as duas pernas dum poldro; Guima, que ganhava em todo jogo de baralho, era do sertão do Abaeté; Jiribibe, quase menino, filho de todos no afetual paternal; o Moçambicão – um negro enorme, pai e mãe dele tinham sido escravos nas lavras; Jesualdo, rapaz cordato – a ele fiquei devendo, sem me lembrar de pagar, quantia de dezoito mil-réis; o Jequitinhão, antigo capataz arrieiro, que só se dizia por ditados; o Nélson, que me pedia para escrever carta, para ele mandar para a mãe, em não sei onde moradora; Dimas Doido, que doido mesmo não era, só valente e esquentado; o Sidurino,
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas tudo o que ele falava divertia a gente; Pacamã-de-Presas, que queria qualquer dia ir cumprir promessa, de acender velas e ajoelhar adiante, no São Bom Jesus da Lapa; Rasga-em-Baixo, caolho também, com movimentos desencontrados, dizia que nunca tinha conhecido mãe nem pai; o Fafafa, sempre cheirando a suor de cavalo, se deitava no chão e o cavalo vinha cheirar a cara dele; Jõe Bexiguento, sobrenomeado “Alparcatas”, deste qual o senhor, recital, já sabe; um José Quitério: comia de tudo, até calango, gafanhoto, cobra; um infeliz Treciziano; o irmão de um, José Félix; o Liberato; o Osmundo. E os urucuianos que Zé Bebelo tinha trazido: aquele Pantaleão, um Salústio João, os outros. E –
que ia me esquecendo – Raimundo Lê, puçanguara, entendido de curar qualquer doença, e Quim Queiroz, que da munição dava conta, e o Justino, ferrador e alveitar. A mais, que nos dedos conto: o Pitolô, José Micuim, Zé Onça, Zé Paquera, Pedro Pintado, Pedro Afonso, Zé Vital, João Bugre, Pereirão, o Jalapa, Zé Beiçudo, Nestor. E Diodolfo, o Duzentos, João Vereda, Felisberto, o Testa-em-Pé, Remigildo, o Jósio, Domingos Trançado, Leocádio, Pau-na-Cobra, Simião, Zé Geralista, o Trigoso, o Cajueiro, Nhô Faísca, o Araruta, Durval Foguista, Chico Vosso, Acrísio e o Tus caninho Caramé.
Amostro, para o senhor ver que eu me alembro. Afora algum de que eu me esqueci – isto é: mais muitos... Todos juntos, aquilo
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas tranqüilizava os ares. A liberdade é assim, movimentação. E
bastantes morreram, no final. Esse sertão, esta terra.
A verdade que com Diadorim eu ia, ambos e todos. Além de que Zé Bebelo comandava. – “Ao que vamos, vamos, meu filho, Professor: arrumar esses bodes na barranca do rio, e impor ao Hermógenes o combate...” – Zé Bebelo preluzia, comedindo pompa com sua grande cabeça. Assim de loguinho não aprovei, então ele imaginou que eu estava descrendo. – “Agora coage tua cisma, que eu estou senhor dos meus projetos. Tudo já pensei e repensei, guardo dentro daqui o resumo bem traçado!” – e ele pontoava com dedo na testa. Acreditar eu acreditasse, não duvidei. O que eu podia não saber era se eu mesmo estava em ocasiões de boa-sorte.
A ser, porque, numa volta do Ribeirão-do-Galho-da-Vida, a gente tinha topado com turma de inimigos, retornados para lá por espiação. Aí foi curto fogo, mas eu levei uma bala, de raspaz, na carne do braço, perdi muito sangue. Raimundo Lê banhou com casca de angico, na hora melhorei; Diadorim amarrou bem, com pano duma camisa rasgada. Apreciei a delicadeza dele.
Atual, todos prestaram em mim amizade de atenção, aquilo vinha a ser até um consolo. Só que, depois de dois dias, o braço me
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas doía inteiro e inchava, sei que a inchação me cansasse muito, sempre eu queria esbarrar pra água beber. – “Se eu tiver de atirar, então como é que faço? Não posso...” – era outro meu receio.
Admirei, porque o José Félix também tinha tido ferimento, na coxa e na perna, mas a natureza dele era limpa, o ofendido secava por si, nem parecendo ser. Assim a primeira vez que me sucedia um a-mal, isso me perturbasse. O que me sofria até nas margens do peito, e nos dedos da mão, não me concedendo movimentos.
Muito temi por meu corpo. “Ah, minha Otacília” – eu gemi em mim. – “Pode que nunca mais você me veja, e então nem viúva minha você não vai ser...” Uns recomendavam arnica-do-campo, outros aconselhavam emplastro de bálsamo, com isso rente se sarava. Aí Raimundo Lê garantiu cura com erva-boa. Mas onde era que erva-boa se ia achar?
À Fazenda dos Tucanos chegamos, lá esbarramos – é na beira da Lagoa Raposa, passada a Vereda do Enxu. Visitamos o fazendão vazio, não tinha almaviva de se ver. E do Rio-do-Chico longe não se estava. Assim então por que era que não se avançar logo, às duras marchas, para atacar? – “Sei de mim, sei...” – Zé Bebelo menos disse, sem explicação. Desconheci. Cacei um catre, cama-de-vento, num quarto meio escuro; com coisa nenhuma não me importei. – “Retém as forças, Riobaldo. Vou campear o
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas remédio, nesses matos...” – Diadorim falou. A gente nos Tucanos ia falhar dois dias, ali ficamos comendo palmito e secando em sol a carne de dois bois.
No primeiro dia, de tardinha, apareceu um boiadeiro, que com seus camaradas viajando. Vinham de Campo-Capão-Redondo, em caminhada para Morrinhos. Por que tinham riscado aquela grande volta? – “O senhor dá paz à gente, Chefe?”
– o boiadeiro perguntou. – “Dou paz, damos, amigos...” – Zé Bebelo respondeu. A quieto, o boiadeiro então achou que devia de as novidades relatar. Que se estava em meio de perigos. Sim.
Os soldados! – “Os que soldados, esses, mano velho?”
Soldadesca pronta, do Governo, mais de uns cinqüenta. Assim onde era que estavam? – “Ao que estão em São Francisco e em Vila Risonha, e mais outros deles vão vindo chegando, Chefe; é o que eu ouvi dizer...” Zé Bebelo, escutando, redondamente. Só quis mais saber. Se isso, se aquilo. Se o boiadeiro sabia o nome do Promotor de Vila Risonha, e do juiz de Direito, do Delegado, do Coletor, do Vigário. O do Oficial comandante da tropa, o boiadeiro não acertava dizer. Aquele boiadeiro era homem sério, com palavra merecida e vontade de estar bem com todos. Tinha uma garrafa de vinho depurativo na bagagem, me presenteou
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas com um gole, me fez bem. Pousou lá, no outro dia se foram, muito cedo.
Nesse entremear, eu senti meu braço melhor, e estive mais disposto. Andei andando, vi aquela fazenda. Essa era enorme –
o corredor de muitos grandes passos. Tinha as senzalas, na raia do pátio de dentro, e, na do de fora, em redor, o engenho, a casa-dos-arreios, muitas moradas de agregados e os depósitos; esse pátio de fora sendo largo, lajeado, e com um cruzeiro bem no meio. Mas o capim crescia regular, enfeite de abandono. Não de todo. Pois tinham desamparado um gato, ali esquecido, o qual veio para perto do jacaré cozinheiro, suplicar comida. Até por dentro do eirado, mansejavam uns bois e vacas, gado reboleiro. Aí João Vaqueiro viu um berrante bom, pendurado na parede da sala-grande; pegou nele, chegou na varanda, e tocou: as reses entendiam, uma ou outra respondendo, e entraram no curral, para a beira dos cochos, na esperança de sal. – “Não faz mês que o povo daqui aqui ainda estava...” – João Vaqueiro declarou. E era verdade, com efeito, pois na despensa muita coisa se encontrando aproveitável. Nos Tucanos, valia a pena.
Os dois dias ficaram três, que tão depressa passaram.
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Madrugada, no em que se ia partir dali, eu acordei ainda com o escuro, no amiudar. Só assim acordei, por um rumor, seria o Simião, que estava dormindo no mesmo cômodo e tacteando se levantava. Mas me chamou. – “A gente vai pegar a cavalhada.
Vamos?” – ele disse. Não gostei. – “Estou enfermo. Então vou?!
Quem é que rala a minha mandioca?” – repontei, áspero. Virei para o canto; assim eu estava apreciando aquele catre de couro.
O Simião decerto ia, mais o Fafafa e Doristino, estavam bons para o orvalho dos pastos. Diadorim, que dormia num colchão, encostado na outra banda, já tinha se levantado antes e desaparecido do quarto. Ainda persisti numa madorna. Aquela moradia hospedava tanto – assim sem donos – só para nós.
Aquele mundo de fazenda, sumido nos sussurros, os trastes grandes, o conforto das arcas de roupa, a cal nas paredes idosas, o bolor. Aí o que pasmava era a paz. Pensei por que seria tudo alheio demais: um sujo velho respeitável, e a picumã nos altos.
Pensei bobagens. Até que escutei assoviação e gritos, tropear de cavalaria. “Ah, os cavalos na madrugada, os cavalos!...” – de repente me lembrei, antiqüíssimo, aquilo eu carecia de rever.
Afoito, corri, compareci numa janela – era o dia clareando, as barras quebradas. O pessoal chegava com os cavalos. Os cavalos enchiam o curralão, prazentes. Respirar é que era bom, tomar
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