"Unleash your creativity and unlock your potential with MsgBrains.Com - the innovative platform for nurturing your intellect." » » ,,Grande Sertão: Veredas'' - de João Guimarães Rosa,

Add to favorite ,,Grande Sertão: Veredas'' - de João Guimarães Rosa,

Select the language in which you want the text you are reading to be translated, then select the words you don't know with the cursor to get the translation above the selected word!




Go to page:
Text Size:

chato no chão, mais deitado do que ajoelhado. – “A benção!” –

pois disse. E a idéia dele rodou ligeira, pois, quando se notou, tinha tirado do bojo do saco o que estava lá: que era um pé de

– 561 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas alpercata de homem, um candieirozinho pequeno, desses que vinham da Bahia, uma escumadeira de cozinha e um arranjado envernizado de couro preto, que nem boldrié – que tudo jogou fora, para uma banda, o longe que pôde. Seguinte o que, mostrou à gente o saco vazio, e com isto dizendo, arquejado:

– “Tirei não, nada não... Tenho nada... Tenho nada...”

Isso tudo se deu curto, que nem o mijar dum sapo; e dum modo tal inocente, de quem visse risse. E em coisa tão tola declarada assim a gente até crê razão, por ser tão afã de absurdo.

– “Donde é que vocês vieram, dond’é?” – Zé Bebelo indarguiu.

– “A gente quer voltar para casa... Semos, sim, é do Sucruiú, nhor sim...”

Arte que a aproveitar, ele tornou a atar melhor o resumo de embira, que cinturava aqueles molambos de calças. E se encolhia, temia; e se ria. Que nome era capaz de ter?

– “Guirigó... Minha graça é essa... Sou filho de Zé Câncio, seu criado, sim senhor...”

– 562 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Tão magro, trestriste, tão descriado, aquele menino já devia de ter prática de todos os sofrimentos. Olhos dele eram externados, o preto no meio dum enorme branco de mandioca descascada. O couro escuro dele era que tremia, constante, e tremia pelo miúdo, como que receando em si o que não podia ser bom. E quando espiava para a gente, era de beiços, mostrando a língua à grossa, colada no assoalho da boca, mas como se fosse uma língua demasiada demais, que ali dentro não pudesse caber; em bezerro pesteado, às vezes, se vê assim. Menino muito especial. Jagunço distraído, vendo um desses, do jeito, à primeira, era capaz da bondade de desfechar nele um tiro certo, pensando que padecia agonia, e que carecesse dessa ajuda, por livração.

– “Guirigó, qu’é que vieram caçar aqui? Fala!”

– “O que qu’ a gente veio caçar, sim senhor? Eles vieram, eu também vim... Buscar de comer...”

– “Ih, que’s, menino! Quem te vê comer essa tralha que você amoitou aí no saco...”

O pretinho espichado no chão sacudia a cabeça, que não que não, que parecia ter gosto de poder negar assim. – “Mas o

– 563 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas de comer todo se acabou...” Havia de negar tudo, renegava: até que tivesse tido mãe, nascido dela, até que a doença brava estivesse matando o povo do Sucruiú, os parentes todos dele. A gente queria que aquele traste de menino sentisse em si, e se entristecesse, por tantas suas desditas chorasse uma lágrima, a lagrimazinha só, por um momento que fosse. Ah, ele fizesse logo isso, a gente ficava desconsolado e legítimo no triste, a gente ficava tranqüilizados. Qual, o menino preto negava. O que ele afirmava, no descaramento firme de seu gesto, era que nem era ninguém, nem aceitava regra nenhuma devida do mundo, nem estava ali, defronte dos cascos dos cavalos da gente. Ah, queria salvar seu corpo, queria escape. Se abraçava com qualquer poeira. De mais, não queria saber. – Que podia, que fosse logo embora! – Zé Bebelo consentiu ordem. E ainda jogou um pedaço de rapadura, que ele aparou, fácil, como numa abocada. – “Pra tu adoçar essa tua tripinha preta!” – foi o que Zé Bebelo gritou. E aquele menino, sem fungar, sem olhar para trás, pulou em rumo, maneiro e leviano, se sumiu por onde carecia de ir. Não pensei que fosse tão pequeno, conforme mesmo era.

– “Coitadinho, os dentes dele estavam alumiando de brancos...” – Diadorim disse.

– 564 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas

– “Hem? Hem?” – Zé Bebelo falou. – “O que imponho é se educar e socorrer as infâncias deste sertão!”

Eu ia fazer o sinal-da-cruz, mas com a mão não cheguei a bulir, porque isso me pareceu falta de caridade, pensando no menino pretinho.

E, com o determinado costumeiro, de se espalhar os de vigia, por todas as quatro bandas, mais o movimento de procura dum pasto bem fechado e conveniente, tomamos conta de tudo e entramos naquela casa, para ver o visível e se fazer fogo de aprontar nosso jantar na fornalha de sua grande cozinha.

Virgem! – digo ao senhor: o interior dela dava pena, nunca vi nada tão remexido e roubado. Total o que era de jeito de se carregar, o em arcas e em trouxas, e que no comum duma casa remediada se acha, faltava. Não se encontrou uma peça de roupa, uma lamparina de folha, uma folhinha na parede, um gancho de rede, uma raspadeira, um cabresto pendurado, uma esteira, uma vasilha, uma coisa alguma em que se pegar. Eram só as mesas, os catres, os bancos. Tinham limpado a carne daquele costelame. Por onde andaria o dono? Mas se ficou sabendo que o nome dele não era em verdade Abrão, mas Habão, que assim se chamava. Consoante o diploma de patente,

– 565 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas que no chão, num canto, avistei, lavrado preenchido cerimonial, de que esse Habão era Capitão da Guarda-Nacional, em válidos títulos. Aquele retiro se chamava o Valado. Com pouco mais uns dias que se passassem, o pessoal do Sucruiú era capaz de desmanchar até o prédio da casa, por seus esteios e caibros. Para não falar que, de gado, galinhas e porcos, e cachorros e o mais, nem sinal se divulgava. Sobravam só os passarinhos, soltos, como de toda parte no igual, que piaram uns momentos, pelo acabar da tardinha, alegres assim no empobrecido.

Vai, dentro de lá, num quarto, muito recanto, sediava, no escuro que já fazia, um oratório em armariozinho, construido pregado na parede; que estava com suas poucas imagens e um toco para se acender, de vela-benta. Nisso não tinham desrespeitado de mexer. E nós, então, cada um depois dum, viemos ao quarto-do-oratório beijar a santa maior, que era no seu manto como uma boneca muito perfeita, que era a Minha Nossa Senhora Mãe-de-Todos. Se comeu, se dormiu.

Se acordou, bem o digo. Cada dia é um dia. E o tempo estava alisado. Triste é a vida do jagunço – dirá o senhor. Ah, fico me rindo. O senhor nem não diga nada. “Vida” é noção que a gente completa seguida assim, mas só por lei duma idéia

– 566 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas falsa. Cada dia é um dia. Ora, mais, ordens já para antes do vir da aurora se cumprir, dali Zé Bebelo já tinha dado. E foi se saber: o Suzarte e o Tipote, e outros, com o João Vaqueiro, rastreavam redobrados, onde em redor, remediando o mundo a alho e faro. Tudo eles achavam, tudo sabiam; em pouquinhas horas, tudo tradiziam. O chão, em lugares, guardava molde marcado dos cascos de muitíssimas reses, calcados para um rumo só – um caminho eito. Aqueles rastros tinham vigorado por cima da derradeira lama da derradeira chuva. E – de quantidade e de quanto tinha chovido – eles liam, no capim e nos regos de enxurradas, e na altura da cheia já rebaixada, a deixa, beiradas do ribeirão. Pelo comido pastado das reses, também, muito se reconhecia. Aos passos dos cavaleiros e cachorros. As pessoas da casa tinham viajado para a banda de oestes. Mas o gado, escolhendo por si e sem tocada, mas depois de solto por boa regra, pegara ida espaçada mais virante acima, aonde devia haver, para se lamber, salinas de barreiro. E

bastantes outras coisas eles decifravam assim, vendo espiado o que de graça no geral não se vê. Capaz de divulgarem até os usos e costumes das criaturas ausentes, dizer ao senhor se aquele seô Habão era magro ou gordo, seria forreta ou mão-aberta, canalha inteirado ou razoável homem-de-bem. Porque, dos

– 567 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas centos milhares de assuntos certos que parecem mágica de rastreador, só com o Tipote e o Suzarte o senhor podia rechear livro. E ainda antes do meio-dia subir, desemalocaram duas gordas novilhas, carneadas fartas para a nossa refeição. Um bom entendedor, num bando, faz muita necessidade.

E aquele lugar, o Valado, eu aceitei – o senhor preste atenção! ; para ficar, uns meus tempos, ali, ainda me valia. Senti assim, meu destino. Dormindo com um pano molhado em cima dos olhos e com a nuca repousada numa folha de faca, de noite o destino da gente às vezes conversa, sussurra, explica, até pede para não se atrapalhar o devido, mas ajudar. Crendice? Mas coração não é meio destino? Permanecer, ao menos ali, eu quis.

Mas Zé Bebelo duvidou de ficar. Zé Bebelo suscitado determinou, que a gente fosse mais para adiante. Ele concebia medo. Conheci. Estava.

Zé Bebelo pegou a principiar medo! Por quê? Chega um dia, se tem. Medo dele era da bexiga, do risco de doença e morte: achando que o povo do Sucruiú podiam ter trazido o mau-ar, e que mesmo o Sucruiú ainda demeava vizinho justo demais. Tanto ri. Mas ri por de dentro, e procedi sério feito um pau do campo. Assim mesmo, em errei; disso não sabia. Mas o

– 568 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas cabedal é um só, do misturado viver de todos, que mal vareia, e as coisas cumprem norma. Alguém estiver com medo, por exemplo, próximo, o medo dele quer logo passar para o senhor; mas, se o senhor firme agüentar de não temer, de jeito nenhum, a coragem sua redobra e tresdobra, que até espanta. Pois Zé Bebelo, que sempre se suprira certo de si, tendo tudo por seguro, agora bambeava. Eu comecei a tremeluzir em mim.

Pelo que umas cinco léguas andamos. De modo, meio, conforme decerto, aquele algum seô Habão também tinha se ido. Carecíamos? Merecer logo ao menos uma semana de quieto, é que era justo; pois nenhum não estava mais em sua saúde. Esses homens do Sucruiú, cercados da banda outra pelos catrumanos, ei que só podiam achar espaço por estes lados, eles sim. Nós, no nosso. Eu sei que um se mexer a esmo é sempre fácil; e que com o cansaço é que se tapa o desânimo. Mas, o que eu queria, real, era estar sarado de alguma demorada doença, comendo aos poucos o meu caldo com angu, e, em invernia de chuva fria esfriada, me esquentando perto do borralho de um fogão, e galo de manhã cantando em algum terreiro. Era para ir?

Fôssemos. Disso deslavava. Descemos a Vereda do Porco-Es-pim, que não tinha nome verdadeiro anterior, e assim chamamos, porque um bicho daqueles por lá cruzou. Chapadas de ladeira

– 569 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas pouca. Depois, uma lomba, com o cerradão. E por fim viemos esbarrar em lugar de algum cômodo, mas feio, como feio não se vê. – Tudo é gerais... – eu pensei, por consolo. Um homem, que com a machadinha na mão e sua cabaça a tiracol tratava de desmelar cortiço num pau do mato, esse indicou tudo necessário e deu a menção de onde é que estávamos. Na Coruja, um retiro taperado.

E ali, redizendo o que foi meu primeiro pressentimento, eu ponho: que era por minha sina o lugar demarcado, começo de um grande penar em grandes pecados terríveis. Ali eu não devia nunca de me ter vindo; lá eu não devia de ter ficado. Foi o que assim de leve eu mesmo me disse, no avistar o redondo daquilo, e a velhice da casa. Que mesmo como coruja era – mas da orelhuda, mais mor, de tristes gargalhadas; porque a suindara é tão linda, nela tudo é cor que nem tem comparação nenhuma, por cima de riscas sedas de brancura. E aquele situado lugar não desmentia nenhuma tristeza. A vereda dele demorava uma agüinha chorada, demais. Até os buritis, mesmo, estavam presos.

O que é que buriti diz? É: – Eu sei e não sei... Que é que o boi diz:

Me ensina o que eu sabia... Bobice de todos. Só esta coisa o senhor guarde: meia-légua dali, um outro corgo-vereda, parado, sua água sem-cor por sobre de barro preto. Essas veredas eram

– 570 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas duas, uma perto da outra; e logo depois, alargadas, formavam um tristonho brejão, tão fechado de moitas de plantas, tão apodrecido que em escuro: marimbus que não davam salvação.

Elas tinham um nome conjunto – que eram as Veredas-Mortas.

O senhor guarde bem. No meio do cerrado, ah, no meio do cerrado, para a gente dividir de lá ir, por uma ou por outra, se via uma encruzilhada. Agouro? Eu creio no temor de certos pontos.

Are sens