João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas e depois se esconderem, por uns tempos, em fazendas de donos amigos, até que a soldadesca se espairecesse. E era bom e era justo. Era certo. Deus em armas nos guardava.
De mim, vim, com Diadorim, Alaripe, Jesualdo e João Vaqueiro, e o Fafafa. Era para o outro lado, era para os meus Gerais, eu vinha alegre contente. E saímos, com o seguinte risco: o Imbiruçu, a Serra do Pau-d’Arco, o Mingu, a Lagoa dos Marruás, o Dôminus-Vobíscum, o Cruzeiro-das-Embaúbas, o Detrás-das-Duas-Serras. O Brejo dos Mártires, a Cachoeirinha Roxa, o Mocó, a Fazenda Riacho-Abaixo, a Santa Polônia, a Lagoa da Jabuticaba. E daí, por uns atalhos: o Córrego Assombrado, o Sassapo, o Poço d’Anjo, o Barreiro do Muquém.
Nesse meu, caminho fazendo, tirei minha desforra: faceirei.
Severgonhei. Estive com o melhor de mulheres. Na Malhada, comprei roupas. O vau do mundo é a alegria! Mas Diadorim não se fornecia com mulher nenhuma, sempre sério, só se em sonhos. Dele eu ainda mais gostava. E então se deu que tínhamos esbarrado em frente da Lagoa Clara. Já era o do Chico
– o poder dele – largas águas, seu destino. A ver, o porto-de-balsa, que distava pouco. Travessia, ali, podia ser perigosa, com tantos soldados vizinhantes. A gente se apartar? Ah, mas o que bastava o balseiro se chamar: – “Hô, passador! Hô, passador!...”
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– ele viesse. Assim, para uma invenção, que se teve. O balseiro só avistando João Vaqueiro e o Fafafa – estes ele então podia passar, com cinco dos cavalos, falavam que era para uns caçadores. Da outra banda, João Vaqueiro e o Fafafa fossem levando os cavalos para um lugar para cima da barra, no Urucuia, chamado o Olho-d’Agua-das-Outras. Lá a gente se encontrava.
Somente ficados com um cavalinho só, Alaripe e eu, Diadorim e Jesualdo, andamos beira-rio, no vagarosamente. A gente esperava o que acontecesse. Ali mais adiante, era um porto-de-lenha. – “Você tem receio, Riobaldo?” – Diadorim me perguntou. Eu?! Com ele em qualquer parte eu embarcava, até na prancha de Pirapora! – “Vau do mundo é a coragem...” – eu disse. E, com os rifles escorados, acenamos para uma grande barca – aquela, a cara-de-pau que tinha no bico da frente era uma cabeça de touro, boa-sorte nos dava. O barqueiro tocou um berro no buzo, encostaram. A gente os quatro, com o cavalo, era nada – as arrobazinhas. E nós entramos, depois que o patrão nos saudou, em nome de Nosso Senhor CristoJesus, e disse: – “Eu cá sou amigo de todos, segundo a minha condição...” E o Alaripe aceitou dele um gole de cachaça, aceitamos. Jesualdo disse, re-postando: – “Amigo de todos? Rio-abaixo, na canoa, quem governa é o remador!” Bem que rio-acima é que era, mas com
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas remeiros muito bons esforçados. Aí constante, o velejo, vento em pano – nem remeiro com o varejão não carecia de fazer talento. Pediram notícias do sertão. Essa gente estava tão devolvida de tudo, que eu não pude adivinhar a honestidade deles. O sertão nunca dá notícia. Eles serviram à gente farta jacuba. – “Por onde os senhores vieram?” – o patrão indagou. –
“Viemos da Serra Rompe-Dia...” – respondemos. Mentiras d’água. Tanto fazia dizer que tínhamos vindo da de São Felipe. O
barqueiro não acreditou, deu o zé de ombros. Mas levou a gente travessia fácil, frenteando a boca do Urucuia. Ah, o meu Urucuia, as águas dele são claras certas. E ainda por ele entramos, subindo légua e meia, por isso pagamos uma gratificação. Rios bonitos são os que correm para o Norte, e os que vêm do poente – em caminho para se encontrar com o sol. E descemos num pojo, num ponto sem praia, onde essas altas árvores – a caraíba-de-flor
– roxa, tão urucuiana. E o folha-larga, o aderno-preto, o pau-de-sangue; o pau-paraíba, sombroso. O Urucuia, suas abas. E vi meus Gerais!
Aquilo nem era só mata, era até florestas! Montamos direito, no Olhod’Agua-das-Outras, andamos, e demos com a primeira vereda – dividindo as chapadas –: o flaflo de vento agarrado nos buritis, franzido no gradeai de suas folhas altas; e,
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas sassafrazal – como o da alfazema, um cheiro que refresca; e aguadas que molham sempre. Vento que vem de toda parte.
Dando no meu corpo, aquele ar me falou em gritos de liberdade.
Mas liberdade – aposto – ainda é só alegria de um pobre caminhozinho, no dentro do ferro de grandes prisões. Tem uma verdade que se carece de aprender, do encoberto, e que ninguém não ensina: o beco para a liberdade se fazer. Sou um homem ignorante. Mas, me diga o senhor: a vida não é cousa terrível?
Lengalenga. Fomos, fomos.
Assim pois foi, como conforme, que avançamos rompidas marchas, duramente no varo das chapadas, calcando o sapê brabão ou areias de cor em cimento formadas, e cruzando somente com gado transeunte ou com algum boi sozinho caminhador. E como cada vereda, quando beirávamos, por seu resfriado, acenava para a gente um fino sossego sem notícia –
todo buritizal e florestal: ramagem e amar em água. E que, com nosso cansaço, em seguir, sem eu nem saber, o roteiro de Deus nas serras dos Gerais, viemos subindo até chegar de repente na Fazenda Santa Catarina, nos Buritis-Altos, cabeceira de vereda.
Que’s borboletas! E era em maio, pousamos lá dois dias, flor de tudo, como sutil suave, no conhecimento meu com Otacília. O
senhor me ouviu. Em como Otacília e eu ficamos gostando um
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas do outro, conversamos, combinados no noivável, e na sobremanhã eu me despedi, ela com sua cabecinha de gata, alva no topo da alpendrada, me dando a luz de seus olhos; e de lá me fui, com Diadorim e os outros. E de como viemos, em cata do grosso do bando de Medeiro Vaz, que dali a quinze léguas recruzava, da Ratragagem para a Vereda-Funda, e com eles nos ajuntamos, economizando rumo, num lugar chamado o Bom-Buriti. Me alembro, meu é. Ver belo: o céu poente de sol, de tardinha, a roséia daquela cor. E lá é cimo alto: pintassilgo gosta daquelas friagens. Cantam que sim. Na Santa Catarina. Revejo.
Flores pelo vento desfeitas. Quando rezo, penso nisso tudo. Em nome da Santíssima Trindade.
O que o seguinte foi este: o encontro da gente com Medeiro Vaz, no Bom-Buriti, num ressaco, conforme já disse, ele no meio de seus fortes homens, exatos, naquela bocaina de campo. Medeiro Vaz, retrata], barbaça, com grande chapéu rebuçado, aquela pessoa sisuda, circunspecto com todas as velhices, sem nem velho ser. Cujo eu me disse: – “É bom homem...” E ele beijou a testa de Diadorim, e Diadorim beijou aquela mão. A um assim, a gente podia pedir a benção, se prezar.
Medeiro Vaz tomava rapé. Medeiro Vaz, mandando passar as ordens. E tinha quartel-mestre. Subindo em esperança, de lá
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas saímos, para chão e sertão. Sertão bravo: as araras. O só que Medeiro Vaz comandou foi isto: – “Aleluia!” Diadorim tinha comprado um grande lenço preto: que era para ter luto manejável, funo guardado em sobre seu coração. Chapadão de duro. Daí, passamos um rio vadoso – rio de beira baixinha, só buriti ali, os buritis calados. E a flor de caraíba urucuiã – roxo astrazado, um roxo que sobe no céu. Naquele trecho, também me lembro, Diadorim se virou para mim – com um ar quase de meninozinho, em suas miúdas feições. – “Riobaldo, eu estou feliz!...” – ele me disse. Dei um sim completo. E foi assim que a gente principiou a tristonha história de tantas caminhadas e vagos combates, e sofrimentos, que já relatei ao senhor, se não me engano até ao ponto em que Zé Bebelo voltou, com cinco homens, descendo o Rio Paracatu numa balsa de talos de buriti, e herdou brioso comando; e o que debaixo de Zé Bebelo fomos fazendo, bimbando vitórias, acho que eu disse até um fogo que demos, bem dado e bem ganho, na Fazenda São Serafim. Mas, isso, o senhor então já sabe.
Só sim? Ah, meu senhor, mas o que eu acho é que o senhor já sabe mesmo tudo – que tudo lhe fiei. Aqui eu podia pôr ponto. Para tirar o final, para conhecer o resto que falta, o que lhe basta, que menos mais, é pôr atenção no que contei,
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas remexer vivo o que vim dizendo. Porque não narrei nada à-toa: só apontação principal, ao que crer posso. Não esperdiço palavras. Macaco meu veste roupa. O senhor pense, o senhor ache.
O senhor ponha enredo. Vai assim, vem outro café, se pita um bom cigarro. Do jeito é que retorço meus dias: repensando.
Assentado nesta boa cadeira grandalhona de espreguiçar, que é das de Carinhanha. Tenho saquinho de relíquias. Sou um homem ignorante. Gosto de ser. Não é só no escuro que a gente percebe a luzinha dividida? Eu quero ver essas águas, a lume de lua...
Urubu? Um lugar, um baiano lugar, com as ruas e as igrejas, antiqüíssimo – para morarem famílias de gente. Serve meus pensamentos. Serve, para o que digo: eu queria ter remorso; por isso, não tenho. Mas o demônio não existe real.
Deus é que deixa se afinar à vontade o instrumento, até que chegue a hora de se dançar. Travessia, Deus no meio. Quando foi que eu tive minha culpa? Aqui é Minas; lá já é a Bahia?
Estive nessas vilas, velhas, altas cidades... Sertão é o sozinho.
Compadre meu Quelemém diz: que eu sou muito do sertão?