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A fumaça vinha, engasgava e enlagrimava. A gente ria. Assim que fevereiro é o mês mindinho: mas é quando todos os cocos do buritizal maduram, e no céu, quando estia, a gente acha reunidas as todas estrelas do ano todo. Mesmas vezes eu ria. Homem dorme com a cabeça para trás, dois dedos no queixo. Era o Pitolô. Um Pitolô, sei lá, cabra destemido, com crimes nos maniçobais perto para cima de Januária; mas era nascido no barranco. No Carinhanha, rio quase preto, muito imponente, comprido e povooso. Ademais que ele contava casos de muito amor; Diadorim às vezes gostava. Mas Diadorim sabia era a guerra. Eu, no gozo de minha idéia, era que o amor virava

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas senvergonhagem.Turvei, tanto. – “Andorinha que vem e que vai, quer é ir bem pousar nas duas torres da matriz de Carinhanha...”

– o Pitolô falava. Eu tinha súbitas outras minhas vontades, de passar devagar a mão na pele branca do corpo de Diadorim, que era um escondido. E em Otacília, eu não pensava? No escasso, pensei. Nela, para ser minha mulher, aqueles usos-frutos. Um dia, eu voltasse para a Santa Catarina, com ela passeava, no laranjal de lá. Otacília, mel do alecrim. Se ela por mim rezava? Rezava. Hoje sei. E era nessas boas horas que eu virava para a banda da direita, por dormir meu sensato sono por cima de estados escuros.

Mas levei minha sina. Mundo, o em que se estava, não era para gente: era um espaço para os de meia-razão. Para ouvir gavião guinchar ou as tantas seriemas que chungavam, e avistar as grandes emas e os veados correndo, entrando e saindo até dos velhos currais de ajuntar gado, em rancharias sem morador? Isso, quando o ermo melhorava de ser só ermo. A chapada é para aqueles casais de antas, que toram trilhas largas no cerradão por aonde, e sem saber de ninguém assopram sua bruta força. Aqui e aqui, os tucanos senhoreantes, enchendo as árvores, de mim a um tiro de pistola – isto resumo mal. Ou o zabelê choco, chamando seus pintos, para esgaravatar terra e com eles os bichinhos comíveis catar. A fim, o birro e o garrixo sigritando.

– 443 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Ah, e o sabiá-preto canta bem. Veredas. No mais, nem mortalma.

Dias inteiros, nada, tudo o nada – nem caça, nem pássaro, nem codorniz. O senhor sabe o mais que é, de se navegar sertão num rumo sem termo, amanhecendo cada manhã num pouso diferente, sem juízo de raiz? Não se tem onde se acostumar os olhos, toda firmeza se dissolve. Isto é assim. Desde o raiar da aurora, o sertão tonteia. Os tamanhos. A alma deles. Mas Zé Bebelo, andante, estava esperdiçando o consistir. E que o Hermógenes só fizesse por se fugir toda a vida, isso ele não entendia. – “Vai cavacando buraco, vai, que tu vê!” – oco da paciência, ele resmungou. Ainda que, nesses dias, ele menos falasse; ou, quando falava, eu não queria ouvir. Digo que, no cível trivial, Zé Bebelo me indispunha com algum enjôo. A antes uma conversa com Alaripe, somente simples, ou com o Fafafa, que estimava irmãmente os cavalos, deles tudo entendia, mestre em doma e em criação. Zé Bebelo só tinha graça para mim era na beira dos acontecimentos – em decisões de necessidade forte e vida virada – horas de se fazer. O traquejar. Se não, aquela mente de prosa já me aborrecia.

A monte andante, ao adiável, aí assim e assaz eu airei meu pensamento. Amor eu pensasse. Amormente. Otacília era, a bem-dizer, minha noiva? Mas eu carecia era de mulher

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas ministrada, da vaca e do leite. De Diadorim eu devia de conservar um nojo. De mim, ou dele? As prisões que estão re-fincadas no vago, na gente. Mas eu aos poucos macio pensava, desses acordados em sonho: e via, o reparado – como ele principiava a rir, quente, nos olhos, antes de expor o riso daquela boca; como ele falava meu nome com um agrado sincero; como ele segurava a rédea e o rifle, naquelas mãos tão finas, brancamente. Esses Gerais em serras planas, beleza por ser tudo tão grande, repondo a gente pequenino. Como se eu estivesse calçando par de chinelo muito flote; e eu queria um sinapismo, botim reiúno, duro, redomão.

Agora – e os outros? – o senhor dirá. Ah, meu senhor, homens guerreiros também têm suas francas horas, homem sozinho sem par supre seus recursos também. Surpreendi um, o Conceiço, que jazia vadio deitado, se ocultando atrás de fechadas moitas; momento que raro se vê, feito o cagar dum bicho bravo.

– “É essa natureza da gente...” – ele disse; eu não tinha perguntado explicação. O que eu queria era um divertimento de alívio. Ali, com a gente, nenhum cantava, ninguém não tinha viola nem nenhum instrumento. No peso ruim do meu corpo, eu ia aos poucos perdendo o bom tremor daqueles versos de Siruiz?

– 445 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Então eu forcejei por variar de mim, que eu estava no não-acontecido nos passados. O senhor me entende?

De Diadorim não me apartava. Cobiçasse de comer e beber os sobejos dele, queria pôr a mão onde ele tinha pegado. Pois, por quê? Eu estava calado, eu estava quieto. Eu estremecia sem tremer. Porque eu desconfiava mesmo de mim, não queria existir em tenção soez. Eu não dizia nada, não tinha coragem. O que tinha era uma esperança? Mesmo parava tempos no pensar numa mulher achada: Nhorinhá, a minha moça Rosa’uarda, aquela mocinha Miosótis. Mas o mundo falava, e em mim tonto sonho se desmanchando, que se esfiapa com o subir do sol, feito neblina noruega movente no frio de agosto.

A noite que houve, em que eu, deitado, confesso, não dormia; com dura mão sofreei meus ímpetos, minha força esperdiçada; de tudo me prostrei.

Ao que me veio uma ânsia. Agora eu queria lavar meu corpo debaixo da cachoeira branca dum riacho, vestir terno novo, sair de tudo o que eu era, para entrar num destino melhor.

Anda que levantei, a pé caminhei em redor do arrancho, antes do romper das horas d’alva. Saí no grande orvalho. Só os pássaros, pássaro de se ouvir sem se ver. Ali se madruga com céu

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas esverdeado. Zé Bebelo podia pautear explicação de tudo: de como a gente ia alcançar os Hermógenes e dar neles grave derrota; podia referir tudo que fosse de bem se guerrear e reger essa política, com suas futuras benfeitorias. De que é que aquilo me servisse? Me cansava. E vim vindo, para a beira da vereda.

Consegui com o frio, esperei a escuridão se afastar. Mas, quando o dia clareou de todo, eu estava diante do buritizal. Um buriti –

tetéia enorme. Aí sendo que eu completei outros versos, para ajuntar com os antigos, porque num homem que eu nem conheci

– aquele Siruiz – eu estava pensando. Versos ditos que foram estes, conforme na memória ainda guardo, descontente de que sejam sem razoável valor:

Trouxe tanto este dinheiro

o quanto, no meu surrão,

p’ra comprar o fim do mundo

no meio do Chapadão.

Urucuia – rio bravo

cantando à minha feição:

é o dizer das claras águas

que turvam na perdição.

Vida é sorte perigosa

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredaspassada na obrigação:

toda noite é rio-abaixo,

todo dia é escuridão...

Mas estes versos não cantei para ninguém ouvir, não valesse a pena. Nem eles me deram refrigério. Acho que porque eu mesmo tinha inventado o inteiro deles. A virtude que tivessem de ter, deu de se recolher de novo em mim, a modo que o truso dum gado mal saído, que em sustos se revolta para o curral, e na estreitez da porteira embola e rela. Sentimento que não espairo; pois eu mesmo nem acerto com o mote disso – o que queria e o que não queria, estória sem final. O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.

O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza! Só assim de repente, na horinha em que se quer, de propósito – por coragem. Será? Era o que eu às vezes achava.

Ao clarear do dia.

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