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Mas eu não ri. Ah, daí, não ri honesto nunca mais, em minha vida. Como que marquei: que a gente ter encontrado aqueles catrumanos, e conversado com eles, desobedecido a eles

– isso podia não dar sorte. A hora tinha de ser o começo de muita aflição, eu pressentia. Raça daqueles homens era diverseada distante, cujos modos e usos, mal ensinada. Esses, mesmo no trivial, tinham capacidade para um ódio tão grosso, de muito alcance, que não custava quase que esforço nenhum deles; e isso com os poderes da pobreza inteira e apartada; e de como assim estavam menos arredados dos bichos do que nós mesmos estamos: porque nenhumas más artes do demônio regedor eles nem divulgavam. Só o mau fato de se topar com eles, dava soloturno sombrio. Apunha algum quebranto. Mas mais que, por conosco não avirem medida, haviam de ter rogado praga. De pensar nisso, eu até estremecia; o que estremecia em mim: terreno do corpo, onde está a raiz da alma.

Aqueles homens eram orelhudos, que a regra da lua tomava conta deles, e dormiam farejando. E para obra e malefícios ti-

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas nham muito governo. Aprendi dos antigos. Capatazia de soprar quente qualquer ódio nas folhas, e secar a árvore; ou de rosnar palavras em buraco pequeno que abriam no chão, tapando depois: para o caminho esperar a passagem de alguém, e a ele fazer mal; ou guardavam um punhado de terra no fechado da mão, no prazo de três noites e três dias, sem abrir, sem largar: e quando jogavam fora aquela terra, em algum lugar, nele com data de três meses ficava sendo uma sepultura... De homem que não possui nenhum poder nenhum, dinheiro nenhum, o senhor tenha todo medo! O que mais digo: convém nunca a gente entrar no meio de pessoas muito diferentes da gente. Mesmo que maldade própria não tenham, eles estão com vida cerrada no costume de si, o senhor é de externos, no sutil o senhor sofre perigos. Tem muitos recantos de muita pele de gente.

Aprendi dos antigos. O que assenta justo é cada um fugir do que bem não se pertence. Parar o bom longe do ruim, o são longe do doente, o vivo longe do morto, o frio longe do quente, o rico longe do pobre. O senhor não descuide desse regulamento, e com as suas duas mãos o senhor puxe a rédea. Numa o senhor põe ouro, na outra prata; depois, para ninguém não ver, elas o senhor fecha bem. E foi o que eu pensei. Aqueles catrumanos pedindo por maldição, como era que eu podia deixar de pensar

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas neles? Há-de, que se eles tivessem me pegado sozinho, eu apeado e precisado, decerto me matavam, para roubar minhas armas, as coisas e minhas roupas. Amargo que acabavam comigo, sem escrúpulos, hom’essa, que nem tinham, porquanto eu era desconhecido e forasteiro. De doente, ou ferido perdendo meu sangue, que eu estivesse, algum deles ia ser capaz de me ceder gole duma cuia d’água? Draste eu duvidava deles.

Duvidava dos fojos do mundo. E por que era que há de haver no mundo tantas qualidades de pessoas – uns já finos de sentir e proceder, acomodados na vida, tão perto de outros, que nem sabem de seu querer, nem da razão bruta do que por necessidades fazem e desfazem. Por quê? Por sustos, para vigiação sem descanso, por castigos? E de repente aqueles homens podiam ser montão, montoeira, aos milhares mis e centos milhentos, vinham se desentocando e formando, do brenhal, enchiam os caminhos todos, tomavam conta das cidades. Como é que iam saber ter poder de serem bons, com regra e conformidade, mesmo que quisessem ser? Nem achavam capacidade disso.

Haviam de querer usufruir depressa de todas as coisas boas que vissem, haviam de uivar e desatinar. Ah, e bebiam, seguro que bebiam as cachaças inteirinhas da Januária. E pegavam as mulheres, e puxavam para as ruas, com pouco nem se tinha

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas mais ruas, nem roupinhas de meninos, nem casas. Era preciso de mandar tocar depressa os sinos das igrejas, urgência implorando de Deus o socorro. E adiantava? Onde é que os moradores iam achar grotas e fundões para se esconderem –

Deus me diga? Nem me diga o senhor que não – aí foi que eu pensei o inferno feio deste mundo: que nele não se pode ver a força carregando nas costas a justiça, e o alto poder existindo só para os braços da maior bondade. Isso foi o que eu pensei, muito redoído, no estufo do calor vingante. E foi por durante quase uma hora, montado no meu cavalo ruim chamado Padrim-Selorico, a passo por aqueles ruins campos, até se chegar perto do povoado do Sucruiú, onde que estava arranchada a horrorosa doença, por cima da pior miséria. Bobéia minha?

Porque os companheiros, indo cuidando de seu ramerrão comum, nenhum não punha tento em dessas idéias. Então era só eu? Era. Eu, que estava mal-invocado por aqueles catrumanos do sertão. Do fundo do sertão. O sertão: o senhor sabe.

Mas em tanto, então levantei o meu entender para Zé Bebelo – dele emprestei uma esperança, apreciei uma luz. Dei tino. Zé Bebelo, em testa, chefe como chefe, como executava nossa ida. Da marca de um homem solidado assim, que era

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas sempre alvissareiro. Por ele eu crescia admiração, e que era estima e fiança, respeito era. Da pessoa dele, da grande cabeça dele, era só que podia se repor nossa guarda de amparo e completa proteção, eu via. Porque Zé Bebelo previa de vir, cá embaixo, no escuro sertão, e, o que ele pensava, queria, e mandava: tal a guerra, por confrontação; e para o sertão retroceder, feito pusesse o sertão para trás! E era o que íamos realizar de fazer. Para mim, ele estava sendo feito o canoeiro mestre, com o remo na mão, no atravessar o rebelo dum rio cheio. – “Carece de ter coragem... Carece de ter muita coragem...” –

eu relembrei. Eu tinha. Diadorim vindo do meu lado, rosável mocinho antigo, sofrido de tudo mas firme, duro de temporal, naquelas constâncias. Sei que amava, não amava? Os outros, os companheiros outros, semelhavam no rigor umas pobres infâncias na relega – que deles a gente precisasse de tomar conta.

Com Zé Bebelo da minha mão direita, e Diadorim da minha banda esquerda: mas, eu, o que é que eu era? Eu ainda não era ainda. Se ia, se ia. O cavalo pombo de Zé Bebelo era o de mais armada vista, o maior de todos. Cavalo selado, montado, e muito chão adiante. Viajar! – mas de outras maneiras: transportar o sim desses horizontes!...

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Desde, porém, como já entrávamos no perto do Sucruiú, conforme as léguas que os cascos de nossos cavalos contando, era de ver que voz Zé Bebelo dava, se queria em reto ou atalho.

Ah, em reto, foi. Mas nenhum de nós teve sobrosso. O que era, era. Aquele desgraçado lugar devia de estar lá acolá, no pião alto do campo, em seu sempre. Obra de um tiro de carabina. E como deviam de estar cozinhando, com tanto fogão, porque subia para o pedaço de céu um povôo de fumaças, feito andassem por lá renovando pastos desfora de tempo. Fazia fole de calor. Mas, entre as vertentes, no corguinho rabo serelepe que passamos, de beiras de terra preta, só os animais foram que beberam a toda sede: que, nós, mesmo da água corrente a gente se receava.

Donde é que decorre a peste? Até o ver o ar. A poeira e miséria.

Azul desbotado puído, sem os realces. O sol carregando de envelhecer antesmente as folhagens – o começo do mês de junho já dava parecença de alto fim de agosto. Aquele ano declarava de não se ter nem frio, pelo legal. De que valeram as tantas chuvas?

Aí este mundo de sertão tinha se perdido – eu mesmo me disse.

Como que íamos atravessar o Sucruiú, lá se chegava. O qual eram as cafuas em suas construções, no entremeio da fumaça. Essas choupanas. Gente? Não se divulgava. E certo que não se tinha medo maior. Antes todos queriam avistar de perto, de passagem,

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas o que aquilo de verdade fosse. Só que se tinha confiança nos bentinhos e verônicas. E de repente correu aviso que Jõe Bexiguento e o Pacamã-de-Presas sabiam reza para São Sebastião e São Camilo de Lélis, que livram de todo mal vago. Como se ter? Como se aprender, também? Tempo não dava. Mas – o que vieram dizendo, de um em um, se virando para trás nos cavalos: que não se carecia. Assim aqueles dois iam praticar resumida a oração, e cada um, da gente, consigo reproduzisse, constantemente, as fortes ave òrarias e padre-nossos, que isso bastava. Assim foi que fizemos. Avante eu rezei.

Algum dia, depois de hoje, hei de esquecer aquilo. Arruado que era até bem largo, mas mal se enxergavam aquelas casas. Ao demais rezando, ao real vendo – eu vim. Casas – coisa humana.

Em frente delas todas, o que estavam era queimando pilhas de bosta seca de vaca. O que subia, enchia, a fumaça acinzentada e esverdeada, no vagaroso. E a poeira que demos fez corpo com aquele fumegar levantante, tanto tapava, nos soturnos. Aí tossi, cuspi, no entrecho de minhas rezas. Voz nem choro não se ouviu, nem outro rumor nenhum, feito fosse decreto de todas as pessoas mortas, e até os cachorros, cada morador. Mas pessoas mor que houvesse: por trás da poeira, para lá da fumaça verdolenga se vislumbravam os vultos, e as tristes caras deles, que

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas branqueavam, tantas máscaras. Aos homens e mulheres, apartados tão estranhos, caladamente, seriam os que estavam jogando todo o tempo mais rodelas de bosta seca nas fogueiras –

isso que deviam de ter por todo remédio. Nem davam fé de nossa vinda, de seus lugares não saíam, não saudavam. Do perigo mesmo que estava maldito na grande doença, eles sabiam ter quanta cláusula. Sofriam a esperança de não morrer. Soubesse eu onde era que estavam gemendo os enfermos. Onde os mortos?

Os mortos ficavam sendo os maus, que condenavam. A reza re-ganhei, com um fervor. Aquela travessia durou só um instantezinho enorme. Mesmo que os cavalos nossos indo iam devagar, que é como se vai, quando todos rezando sozinhos em cima deles, devagar duma procissão. Não se perturbou palavra. E

foi que dali acabamos de surgir – da arrepoeira e fumaça de estrume, e o corusco de labareda alguma, e a mormaceira. Deus que tornasse a tomar conta deles, do Sucruiú, daquele transformado povo.

Olhei o ilustre do céu. Dado dava de um estar soto-livre, conseguido se soltar das possibilidades horrorosas. Revi todos e Diadorim, que era uma cortesia de bondade. Não espiei para trás, não ver de enxergar o fim daquelas casas, no vaporoso pardo-azulado, no exalante. E o que rogava eram coisas de

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas salvação urgente, tão grande: eu queria poder sair depressa dali, para terras que não sei, aonde não houvesse sufocação em incerteza, terras que não fossem aqueles campos tristonhos. Eu levava Diadorim... Mas, de começo, não vi, não fui sentindo que queria poder levar também Otacília, e aquela moça Nhorinhá, filha de Ana Duzuza, e mesmo a velha Ana Duzuza, e Zé Bebelo, Alaripe, os companheiros todos. Depois, todas as demais pessoas, de meu conhecimento, e as que mal tinha visto, além de que a agradecida formosura da boa moça Rosa’uarda, a mocinha Miosótis, meu mestre Lucas, dona Dindinha, o comerciante Assis Wababa, o Vupes – Vusps... Todos, e meu padrinho Selorico Mendes. Todos, que em minha lembrança eu carecia de muitas horas para repassar. Igual, levava, ah, o povo do Sucruiú, e, agora, o do Pubo – os catrumanos escuros. E que para o outro lugar levava restantes os cavalos, os bois, os cachorros, os pássaros, os lugares: acabei que levasse até mesmo esses lugares de campos tão tristes, onde era que então se estava... Todos? Não. Só um era que eu não levava, não podia: e esse um era o Hermógenes!

Aí dele me lembrei, na hora: e esse Hermógenes eu odiasse! Só o denunciar dum rancor – mas como lei minha entranhada, costume quieto definitivo, dos cavos do continuado

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas que tem na gente. Era feito um nojo, por ser. Nem, no meu juízo, para essa aversão não carecia de compor explicação e causa, mas era assim, eu era assim. Que ódio é aquele que não carece de nenhuma razão? Do que acho, para responder ao senhor: a ofensa passada se perdoa; mas, como é que a gente pode remitir inimizade ou agravo que ainda é já por vir e nem se sabe? Isso eu pressentia. Juro de ser. Ah, eu.

Tivesse medo? O medo da confusão das coisas, no mover desses futuros, que tudo é desordem. E, enquanto houver no mundo um vivente medroso, um menino tremor, todos perigam

– o contagioso. Mas ninguém tem a licença de fazer medo nos outros, ninguém tenha. O maior direito que é meu – o que quero e sobrequero : é que ninguém tem o direito de fazer medo em mim!

São os momentos, se sei. Senti um cansaço. Adiantamos ligeiro, depois que passado o vau da mata-virgem, e tenteávamos pelo encontrável. O sol ia entrando, vi o céu nos roxos, nos vermelhos. Misturamos numa baixada, no capim cacheado.

Umas lavourinhas. Daí, lá se estava, no retiro do Abrão, onde o campo largueia. Era uma boa casa. Mas, de dentro, saíram, de

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas repente, por suas portas, uns homens, que fugiam corridos, feito ratos se escapulindo do toucinho de um jacá.

Sendo que Zé Bebelo assim na dianteira sempre cavalhava, vente, superintendeu que não perseguíssemos aqueles tais, nem neles se atirasse por comprazimento. O que estavam era em mão de roubando, se soube; como que tinham até sacos, para carregar dentro as coisas. Num átimo, eu reluzi quem que eles podiam ser. Só acertei. Pois não foi que um deles, errando no abrir da fuga, demorou, e perdeu as facilidades; então, veio do nosso lado, embrafustado, quase debaixo dos cavalos. Era um pretinho.

Um rapazola retinto, mal aperfeiçoado; por dizer, um menino. Nu da cintura para os queixos. As calças, rotas em todas as partes, andavam cai’caindo; ele apertou perna em perna.

Arfava chiado, como quem, por todo engano de pressa, tivesse chupado na boca um gole quente de café demais. Bezerro doente, de mal-de-ano, às vezes faz assim. Cuido que por não perder de todo as calças como vestimenta, ele se ajoelhou –

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